Direito Constitucional

sexta-feira, 07 de novembro de 2008


Continuação

 

Ontem o STF julgou o mérito do habeas corpus de Daniel Dantas. Por 10 x 0, todos os Ministros seguiram a decisão de Gilmar Mendes, que já havia concedido o recurso ao banqueiro. Tentem acompanhar a discussão, pois ela tem tudo a ver com nossas aulas. O que estava em jogo é a prevalência do direito individual contra o processo penal ou então a “perseguição” penal contra o indivíduo, mediante as condições fáticas e jurídicas.

O juiz federal Fausto de Sanctis, que expediu dois mandados de prisão contra Daniel Dantas, foi sobrepujado pelo Supremo Tribunal Federal; está havendo um racha entre a cúpula e base do sistema judiciário brasileiro. De qualquer modo isso ilustra exatamente a jurisdição constitucional, que é o exercício do poder de dizer o direito.
 

Jurisdição constitucional 

A jurisdição constitucional faz o:

Falamos na aula passada sobre o controle concentrado, a ADIN, ADC, ADPF e ADIO. A jurisdição constitucional é o nível de cúpula. Quem pode entrar com ações diretas no STF são apenas entidades com legitimidade ativa para postular no uma ação contra uma lei ou ato, seja no todo ou em parte. Como vimos, os legitimados estão no art. 103 da Constituição: Presidente da República, Mesa do Senado Federal, Mesa da Câmara dos Deputados, Mesa da Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, Governador do estado ou do DF, o Procurador Geral da República, o Conselho Federal da OAB, Partido Político com representação no Congresso e confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. Antes da Constituição de 88 apenas o Procurador Geral da República poderia propor ações de controle de constitucionalidade.

O Supremo não pode controlar a constitucionalidade de atos se não for por provocação.

Neste controle de constitucionalidade não há partes. O autor é a própria entidade propositora da ação, mas quem é o réu? O legislador que elaborou e aprovou a lei? O presidente da república, que a sancionou? O doutrinador que a defende? Não há. Podemos, análoga e impropriamente, imaginar que o réu é a própria lei. Se ela for declarada inconstitucional, ela será removida do ordenamento jurídico, e essa decisão terá eficácia erga omnes.

Coisa diferente acontece quando o Supremo exerce o controle das decisões judiciais. Em geral ele faz o controle difuso de constitucionalidade. Já dissemos aqui que, no Brasil, todo juiz está autorizado a, no julgamento de seus processos, aplicar a Constituição. Nisso, ele mesmo pode identificar uma inconstitucionalidade; nesse caso, a decisão terá eficácia apenas para as partes, no caso concreto, mas a norma não será removida do mundo jurídico. Até porque as decisões estão sujeitas à apelação. Essas decisões, por sua vez, também podem ser novamente controladas pelo STF, por meio do recurso extraordinário.

O recurso extraordinário (RE) é a maneira de levar ao Supremo matérias constitucionais decididas por juízes do Brasil inteiro. Os Tribunais Superiores, os TJs e os TRFs também podem enviar diretamente ao Supremo os REs. Quando se tratam de apelações de decisões judiciais, eles são o veículo, não a ação de controle de constitucionalidade. Só se pode ir diretamente do TJ do estado ao Supremo se a matéria for exclusivamente constitucional.

Note o art. 102, inciso III, que pode cair em prova:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

[...]

III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:

a) contrariar dispositivo desta Constituição;

b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;

c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição.

d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal. (Incluída pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
 

Os sistemas difuso e concentrado têm origens históricas diversas. O difuso começa no mundo no início da história democrática da Suprema Corte Americana, no caso Madison x Marbury, em 1803, em que ela arrogou para si a competência para controlar as decisões judiciais. A Constituição americana é uma Constituição principiológica sintética, formato que permite sua longevidade por tanto tempo. Esse foi o primeiro controle de constitucionalidade que surgiu no mundo.¹ Rui Barbosa o adotou em na Constituição de 1891 para o Brasil.

Entre as décadas de 20 e 30 do século XX, Hans Kelsen criou o controle concentrado de constitucionalidade das ações, para permitir que uma corte de cúpula pudesse exercê-lo, de cima para baixo, justamente para dar mais força normativa à Constituição.

O Brasil pratica os dois, o difuso e o concentrado, por isso diz-se que aqui se pratica o sistema misto. Depois da Emenda Constitucional nº 45, chamada de “emenda da reforma do Judiciário”, surgiram algumas novidades no modelo de controle de constitucionalidade no Brasil. Entre elas, a permissão de que o Supremo adote súmulas com efeito vinculante. Quem as inventou foi Vitor Nunes Leal, na década de 60, como forma de facilitar o tramite dos processos.

Mas, o que é uma súmula? É um resumo. Ao falarmos, por exemplo, “súmula 279”, estamos nos referindo a um “verbete da Súmula da jurisprudência dominante do Supremo”, de acordo com a forma de dizer do Ministro Marco Aurélio Mello. A praxe é trocar o geral pelo especial. Nesse caso, trocamos o S maiúsculo para minúsculo, para nos referirmos exatamente a um verbete (parte integrante, pois) da Súmula Vinculante, e a chamamos simplesmente de "súmula" ou de "súmula ordinária".

A cada momento novas súmulas são aprovadas. Há as ordinárias, hoje (7/11/08) são 736, e as vinculantes, apenas 13. Ontem, no julgamento de Daniel Dantas, estava em discussão a súmula 691, que diz que o Supremo não pode reconhecer habeas corpus com supressão à distancia (resumidamente).

Súmula 691

NÃO COMPETE AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL CONHECER DE "HABEAS CORPUS"
IMPETRADO CONTRA DECISÃO DO RELATOR QUE, EM "HABEAS CORPUS" REQUERIDO A TRIBUNAL SUPERIOR, INDEFERE A LIMINAR.

Fonte de Publicação
DJ de 9/10/2003, p. 5; DJ de 10/10/2003, p. 5; DJ de 13/10/2003, p. 5.

Legislação
Constituição Federal de 1988, art. 102, I, "i". 

Precedentes

HC 70648
HC 76347 QO
HC 79238
HC 79350
HC 79748
HC 80287
HC 80316
HC 80631
HC 80550
HC 80081

Observação

No julgamento do HC 85185, o Tribunal Pleno rejeitou a proposta de cancelamento da Súmula

691, formulada pelo relator.


Isso porque o judiciário é organizado em graus. Se alguém sofre uma coação por parte de uma autoridade judiciária ou policial, que interfere no direito de ir e vir do indivíduo, ele tem direito a impetrar um habeas corpus, que pode ser preventivo ou liberatório. O primeiro é usado quando se têm fundadas razões para acreditar que a liberdade de um indivíduo será violada, por ato legal ou abusivo. O habeas corpus é concedido no primeiro grau. No caso de Dantas, ele foi negado em primeiro grau. Recorreu para o TJ, depois para o TRF, STJ, e só então foi ao STF. Ao chegar ao Supremo, o sujeito já estava preso, então o ministro Gilmar Mendes converteu o habeas corpus de preventivo para liberatório. Na tarde do mesmo dia, ele é novamente preso, desta vez por causa de um mandado de prisão preventiva expedido pelo juiz federal Fausto de Sanctis. Nesta segunda vez, seus advogados deram entrada com habeas corpus diretamente no Supremo. Aí vem o debate. O STF cumpre ou não sua própria jurisprudência? Veja bem: existe a súmula 279; veja o que ela diz:

Súmula 279

PARA SIMPLES REEXAME DE PROVA NÃO CABE RECURSO EXTRAORDINÁRIO.

Fonte de Publicação
Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal - Anexo ao Regimento
Interno. Edição: Imprensa Nacional, 1964, p. 127.

Legislação
Constituição Federal de 1946, art. 101, III.
Lei 3396/1958, art. 7º.
Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal de 1940, art. 190, § 1º, "a"; art. 193.

Precedentes
AI 29710
CT 3713


O Supremo afastou sua própria súmula, estabelecendo uma cláusula de exceção.

Porque Dantas foi diretamente ao Supremo no segundo habeas corpus? Porque o advogado se sentiu à vontade por achar que o juiz do primeiro grau havia descumprido a ordem do Ministro Gilmar Mendes por ter expedido um mandado de prisão para seu cliente bem no mesmo dia em que recebeu o direito de permanecer em liberdade.

Essa “guerra de recursos”, em que os advogados esgotam todas as possibilidades de haver preservados os direitos de seu cliente, com direito inclusive a troca de farpas entre juízes de diferentes graus não costuma aparecer num crime comum. Este é um crime de colarinho branco. O que ficou em jogo? O processo penal contra a liberdade individual. Para a população que tem os veículos midiáticos como principal fonte de informação, isso soa como impunidade. Já sabemos que não é bem assim.

A primeira coisa a se destacar na Emenda 45 foi a possibilidade de dar a essas súmulas, esses verbetes o mesmo efeito de uma ação direta de inconstitucionalidade. Hoje, uma decisão do STF tomada em recurso extraordinário, portanto no controle difuso, pode ganhar, pela via da transformação dessa decisão, a mesma forma de uma ação de controle concentrado.

Qual a diferença? Vejamos o polêmico caso do FGTS. Os trabalhadores têm direito a que seu patrão deposite mensalmente, numa conta bloqueada para saques, um percentual de seu salário. Calculado sobre esse salário, esse dinheiro é depositado como se fosse um seguro do trabalhador. Quando havia inflação voraz no país, todos os ativos financeiros tinham correção monetária, para compensar a perda do valor da moeda, com a “ciranda financeira”. Antes de o Plano Real conseguir acabar com essa crise inflacionaria crônica, havia mecanismos de correção monetária que desencadeavam mês a mês. Fazia-se um cálculo sobre o FGTS. Durante o mês, apurava-se quanto foi perdido devido à inflação e repunha-se esse valor para o empregado.

Antes do Plano Real, houve outras tentativas. Sarney, Collor 1 e 2, etc... todos fracassados. Quando houve os expurgos inflacionários, que eram o descarte dos rendimentos que o trabalhador deveria ter direito relativo aos dias anteriores, dentro de um mês, àquele em que o ajuste econômico entrou em vigor para equilibrar o efeito da inflação, milhões de ações na justiça foram impetradas. Qual foi o impacto disso no poder judiciário? Foram tramitando até chegar ao STF em recurso extraordinário. Os papéis dos processos entupiam os gabinetes dos Ministros. Como o controle era difuso, todos eles teriam que ser julgados um a um. Então, com a Emenda 45, um único processo daquela matéria foi levado ao plenário e julgado, em três ou quatro sessões. A Caixa Econômica Federal, personagem chave da crise, até reclamou que iria perder cerca de 80 bilhões de Cruzados. O Supremo concedeu dois dos cinco períodos reivindicados pela população. Aquela decisão valeu apenas para aquele caso. Julgavam-se os casos um a um.

Isso era impraticável. A Emenda 45 trouxe, portanto, uma saída para essa situação. De um lado, ela passou a exigir que os advogados apresentem razões para que aquela petição seja reconhecida como de repercussão geral, não apenas para seu cliente, e por isso merecer ser julgada pelo STF. Assim, o Supremo escolhe os recursos que vai julgar. Se for negado, é porque se entendeu que aquele caso não tem repercussão geral. Os Ministros votam eletronicamente seu parecer sobre a repercussão geral. Com isso se reduz muito o abuso dos recursos extraordinários.

Por outro lado, o RE se aproximou da característica do controle concentrado. Por quê? O instituto da repercussão geral foi criado. Ao mesmo tempo, criou-se a Súmula Vinculante. O sistema foi ficando cada vez mais objetivo e concentrado no Supremo Tribunal Federal.

Porque de um lado e de outro? Porque elas têm sentidos opostos. Com repercussão geral, evita-se a subida de REs ao Supremo, já que agora os casos só são selecionados se entender-se que são de repercussão geral. Com isso, valoriza-se a jurisdição inferior, pois prevalecerá a decisão dos juízes de instâncias menores caso vote-se que o caso não é de grande repercussão. Mas, uma vez decidida a matéria de repercussão geral, eles propõem imediatamente a edição de uma nova Súmula Vinculante. Isso significa que uma decisão de repercussão geral passa a ter efeito vinculante, portanto passa a ter a mesma força de decisão em relação à ADIN. Não existe ação específica que se pode propor para a revisão de uma súmula; apenas no decorrer do trâmite que, em meio à argumentação, pode-se entender que aquela súmula perdeu a razoabilidade.

O que nos interessa é saber que a jurisdição constitucional é efetivamente a maneira pela qual as Constituições ganham força normativa. Sem jurisdição constitucional, as Constituições no mundo inteiro seriam meras folhas de papel sim. No caso brasileiro, a jurisdição constitucional se exerce sobre as normas, atos e decisões judiciais. O controle das normas se dá de modo concentrado (direto) ou difuso. O concentrado é feito principalmente pela ADIN, mas também pode ser feito pela ADC, ADPF e ADIO.

Questão: com essas mudanças na forma ou nos procedimentos, nos efeitos do RE, temos também uma mudança profunda no sistema de controle difuso. Quando o Supremo adota determinado padrão como com efeito vinculante, nenhum juiz pode mais julgar ao contrário. Se descumprir, cabe inclusive reclamação direta ao STF contra aquele magistrado.