Crime culposo
Do ponto de vista do resultado, os crimes dolosos e culposos são iguais. Um sujeito pode matar uma pessoa atropelando-a com um carro ou atirando contra ela. O resultado é o mesmo: matar alguém. Pode-se também lesionar alguém agredindo-a ou tropeçando sobre ela. É fácil ver que os crimes culposos e dolosos não se distinguem em termos do resultado. Mas, do ponto de vista da ação, seu desvalor é tratado diferentemente. Portanto também o é o desvalor do resultado: valoramos de forma diversa as conseqüências de um crime cometido culposamente e um crime cometido dolosamente. No passado nem era punível a ação culposa. Mas, com o tempo, passamos a distinguir dolo e culpa, por conseguinte o Direito também passou a fazer essa distinção. É importante saber disso por algumas razões:
Seção
II Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor: Penas - detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. Parágrafo único. No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de um terço à metade, se o agente: I - não possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação; II - praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada; III - deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente; IV - no exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros. |
A
distinção entre dolo e culpa
não preexiste à interpretação, mas é dela resultado. Isso significa que
um
mesmo fato pode ser entendido ora como doloso, ora como culposo, a
depender dos
interesses em causa. É uma imputação feita ao sujeito. Na verdade nunca
saberemos
se ele praticou um crime doloso ou culposo.
Há três conceitos: o legal, o doutrinário e o conceito de acordo com a moderna teoria da imputação objetiva.
De acordo com o conceito do próprio Código Penal, há crime culposo quando o sujeito dá causa ao resultado mediante negligência, imperícia ou imprudência. O que vem a ser cada uma dessas coisas? São conceitos bem vagos, e alguns autores dizem que a imprudência abrange a imperícia e a negligência, enquanto outros falam o mesmo da negligência.
Normalmente
essas três coisas estão
associadas. O sujeito pode praticar uma ação
negligente, mas ao mesmo tempo imprudente e imperita. O bêbado ao
volante, que
já é imprudente, em razão disso não tem perícia para dirigir. Por isso
ele
poderá cometer diversas negligências ² enquanto dirigindo, como por
exemplo não
sinalizar com as setas a intenção de fazer uma curva.
Este conceito é bastante comum: “há crime culposo quando o agente viola o dever objetivo de cuidado.” Pode ser, por exemplo, o de dirigir sóbrio, ou o dever de não atender telefone ao dirigir.
Conceito de acordo com a moderna teoria da imputação objetiva
Diz
que “há crime
culposo quando o agente cria um perigo juridicamente proibido e realiza
esse
risco no resultado”. Só se pode falar em crime culposo quando houver a
criação
de risco proibido. Deve haver, finalmente, a produção de um resultado
lesivo a determinado bem jurídico. A
realização do risco no resultado é o nexo causal. Às vezes alguém pode
criar um
risco proibido, mas não haver nexo causal entre a criação desse risco e
a
realização do resultado. Exemplo: dirigir alcoolizado, porém a apenas
40 km/h,
e atropelar um transeunte imprudente. Neste caso, não importa o “estado
etílico”
do motorista; a conseqüência teria sido a mesma, estando ele embriagado
ou
sóbrio. Para entender de vez, podemos pensar assim: “não foi a bebida
que
causou aquele estrago, mas a imprudência do pedestre. Logo, não houve
nexo
causal, e, mesmo que o motorista tenha criado aquele risco
juridicamente
proibido por estar dirigindo bêbado, não foi devido a esse risco que se
deu causa ao resultado”.
Vamos entendê-lo exemplificativamente.
Estabelece que não há crime culposo quando o agente atua de acordo com esse princípio. Quem dirige confia que as pessoas respeitarão a sinalização. Por sua vez, as pessoas que estão caminhando confiam que o motorista também respeitará a sinalização. O médico, ao fazer uma cirurgia, confia em sua equipe para que atuem correta e prudentemente. O princípio da confiança afasta a possibilidade da imputação de crime culposo acreditando que essas pessoas, naquelas circunstâncias, atuam conforme o esperado de um homem médio. Aqui em Brasília, quando percebemos que há um pedestre na faixa, vemos que ele dá o sinal de vida, confiando que vamos parar. Se ele for atropelado, dizemos o princípio da confiança foi violado pelo motorista. Portanto, ele responderá penalmente por crime culposo. O que é princípio da confiança varia de cidade para cidade dependendo também do tempo. O que a lei determina deve prevalecer frente ao costume local, o que significa que, mesmo que não seja o costume respeitar a faixa de pedestres na Bahia, como há a previsão legal de que o motorista deve parar na faixa, entende-se que o pedestre confiará que o motorista irá parar e não irá atropelá-lo.
O andarilho que, com frio, resolve dormir debaixo de um caminhão e, quando o motorista dá a partida, engata à ré e esmaga-o, violou o princípio da confiança, já que não é razoável imaginar que o motorista, ao acordar às 5 horas da manhã, já com pressa para transportar sua carga, vá sempre verificar se há um sujeito dormindo sob seu caminhão.
É um critério de afirmação ou negação da culpa para os agentes que violam a confiança na prática de determinada função. O princípio serve para afirmar mais ainda o risco permitido.
Tentativa de definição do princípio da confiança: “o sujeito, ao praticar uma ação potencialmente perigosa, confia que os candidatos a vítima, na condição de homo medius, se comportarão de maneira a não se tornar vítimas de fato.”
Exemplo
associado ao trânsito: o sujeito é o
motorista, a ação potencialmente perigosa é dirigir (que pode
eventualmente
causar estragos), a confiança é inerente ao motorista, os candidatos a
vítima
são todos os transeuntes e demais motoristas que o sujeito encontrar em
seu
percurso, desde que hajam como o “homem médio”; o comportamento dos
transeuntes
de maneira a não se tornarem vítimas de fato seria, no caso, respeitar
a
sinalização voltada aos pedestres. ³
Essencialmente, a estrutura do crime culposo é idêntica à do crime doloso. Logo, pressupõe-se que o crime culposo é típico, ilícito e culpável. Causar dano culposamente é fato atípico, pois não existe o crime de dano na forma culposa. É possível falar de excludente de tipicidade e tudo mais do que já falamos sobre crime doloso. Alguém pode inclusive alegar erro de tipo. Exemplo: um sujeito está dirigindo numa estrada para a Chapada dos Veadeiros e um delinqüente virou a placa de sinalização, fazendo com que os motoristas entendessem que a via que era contramão passou a ser mão e vice-versa, e por conta disso atropelou um ciclista, que veio a morrer. Por que excludente de tipicidade? Porque se considerou que ali era mão mas era contramão, logo foi um erro sobre a interpretação do fato. Não é erro de proibição, cuidado. Com relação à ilicitude: o fato será ilícito se não houver nenhuma excludente de ilicitude em favor do sujeito. Tem como alguém praticar crime culposo em legítima defesa? Em tese sim. Policial, contra uma passeata que caminha em sua direção, atira para o alto em tom de advertência, mas acerta e mata alguém. Neste caso, foi um crime culposo praticado em legítima defesa.
Quando há alguns anos houve um seqüestro em que o policial mirou no criminoso e acertou a refém, aconteceu legítima defesa de terceiro com aberratio ictus.
Se, na ocasião do atentado ao WTC, os caças F-16 tivessem abatido o avião dominado por terroristas, haveria legítima defesa contra os eles, que praticavam uma agressão injusta e atual, e estado de necessidade em relação aos passageiros, pois não estariam praticando nenhuma ação contra o ordenamento jurídico já que eram vítimas. Portanto é possível a convivência das duas situações no mesmo caso.
A
culpabilidade: não haverá crime
se o sujeito estiver amparado por alguma excludente de culpabilidade.
Coação
moral irresistível, erro de proibição, inimputabilidade,
inexigibilidade de
conduta diversa, alienação mental...
Auto e heterocolocação em risco
A autocolocação em risco ocorre quando o agente ou vítima conscientemente coloca em uma situação de perigo sua própria vida ou integridade física. Se daí resulta uma lesão ou morte, o sujeito não responderá penalmente. O andarilho se colocou em risco, bem como os aventureiros que praticam “surf ferroviário” ou rodoviário. Quando há autocolocação em risco, por vítimas responsáveis, o autor não responde penalmente. O "autor", no caso dos mirins que resolvem surfar sobre o ônibus, seria o motorista do veículo. Mas o sujeito responderá penalmente quando ele, propositadamente, ao perceber essa auto-colocação em risco, aumenta os riscos do agente. O agente pode inclusive ser processado por crime doloso. Exemplo: motorista de caminhonete que, ao ver que um skatista colou e segurou em sua caçamba, acelera e freia bruscamente, para que aquele se lesione e “aprenda a lição”.
Além
da autocolocação em risco,
que afasta a possibilidade de crime culposo, existe a heterocolocação
em risco,
que também afasta, em princípio, o crime culposo. Ocorre quando é a
vítima quem se
coloca em risco por meio de estímulo ao agente, como o chofer sob
ordens de
dirigir bêbado, que vem a matar seu patrão em razão de um acidente.
Exemplo da
jurisprudência alemã: usuários de drogas: o sujeito é usuário e pede ao
amigo
que lhe aplique uma injeção de determina substância no braço, causando
sua
morte. É uma heterocolocação em risco: ele praticou a ação perigosa.
Entendeu-se que não houve crime culposo. Em princípio tanto uma quanto
outra
excluem o crime culposo.
Em
geral os autores se referem a
duas formas: culpa consciente e culpa inconsciente = culpa com previsão
e culpa
sem previsão, respectivamente. A culpa inconsciente é o que normalmente
ocorre.
Não há nenhum tipo de previsão em relação ao resultado. A forma
excepcional é a
culpa consciente. Ocorre quando o agente prevê o resultado, mas
acredita que ele
não ocorrerá, confiando em sua perícia. Como o atirador de facas de
circo que
lesionou o braço da mulher-alvo. É um ato culposo. O mesmo em filmagens
de
filmes de ação, quando os dublês confiam que não causarão incidentes
desagradáveis, já que são profissionais, mas eventualmente os causam. É o
que
provavelmente os advogados de Paulo César Timponi irão alegar. A
diferença
entre o dolo eventual e a culpa consciente é que naquele o agente não
quer o
resultado, mas assume o risco de produzi-lo. Como os motoristas que
apostam
corridas em vias públicas praticando descaso com a possibilidade de
haver
pessoas atravessando a rua no momento em que estiverem a 190 km/h. No
dolo
eventual o agente fica indiferente quanto ao risco.