Direito Penal

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Princípios Penais

Frase do dia: “O bom advogado não é aquele que decora artigos da lei penal, mas que sabe seus princípios.”

Tópicos:

  1. Introdução aos princípios penais
  2. As Ordenações Filipinas e o Princípio da Legalidade
  3. Princípio da Irretroatividade
  4. Princípio da Taxatividade
  5. Princípio da Reserva Legal
  6. Princípio da Proporcionalidade

Introdução aos princípios penais

Os princípios são idéias derivadas do entendimento da lei. Ao estudar o Código Penal, deparamos com vários. Um deles é o princípio da pessoalidade da pena, também chamado de princípio da responsabilidade penal subjetiva, que veremos com melhores detalhes depois. Eis apenas um exemplo ilustrativo: alguém manda matar o prefeito de uma cidade. Com ele, por acaso havia dois seguranças, que também acabaram mortos, mas a ordem de matar foi somente contra o prefeito. O mandante responde apenas pelo homicídio do prefeito; já os executores responderão pelos três homicídios.

Vejamos agora o caso do psico-assassino-traficante-corruptor que retalhou a adolescente inglesa em Goiás: mesmo confessando, é necessário o trânsito em julgado até que ele seja juridicamente considerado culpado. Há um princípio constitucional que prevê isso: é o princípio da presunção de inocência.

Passaremos agora por uma discussão sobre o porquê de o Direito ser tão “bondoso” com os criminosos, o porquê de não se admitir provas obtidas ilicitamente, o porquê de a lei retroagir apenas para favorecer, nunca para prejudicar, o porquê da existência de um princípio da presunção de inocência e não da presunção de culpa. Partiremos, então, das Ordenações Filipinas, que era a legislação vigente no Brasil durante séc. XVII, portanto anterior ao Iluminismo.

As Ordenações Filipinas e o princípio da legalidade 

Comecemos pelo Princípio da Legalidade, que surgiu historicamente como uma forma de proteção do indivíduo contra os abusos. Qualquer conduta poderia ser considerada crime de acordo com o Livro V das Ordenações Filipinas. Tudo era bem fácil de ser enquadrado, geralmente com pena de morte. Boa parte do livro continha dispositivos para reprimir diversas práticas sexuais. Por exemplo, o sexo com animais. Se ocorresse, o “sedutor” seria morto, bem como o animal, que seria queimado. Hoje trata-se apenas de um crime ambiental. Havia também a proibição específica do sexo envolvendo padres, freiras e membros da família. Hoje em dia trata-se apenas de uma questão moral. Pelo teor das matérias sobre as quais o livro dispunha, dizia-se que, ao abri-lo, sentia-se cheiro de sexo, numa alusão à repressão à prática sexual; ao espremê-lo, jorrava sangue, aludindo à cominação da pena de morte para quase todos os tipos de delitos. Portanto, ele recebeu de alguns estudiosos posteriores o apelido de “perereca menstruada”.

Apenas com o Iluminismo do séc. XVIII, principalmente com Montesquieu e Beccaria, respectivamente por suas obras Do Espírito das Leis (1748) e Dos Crimes e Penas (1764), que veremos em criminologia, surgiu um sistema de garantias para proteção dos indivíduos. A lei protege a liberdade de todos.

O princípio da legalidade traz consigo um brocardo latino muito famoso: “nullum crimen, nulla poena, sine lege’’, que significa: não há crime nem pena sem lei anterior que os defina. Nenhuma outra fonte, que não a lei, pode definir crimes ou estabelecer penas. Isto serve, entre outras coisas, para limitar o poder do Estado.
 

Princípio da irretroatividade 

Englobado também pelo princípio da legalidade. Está no art. 5º, inciso II da Constituição de 1988:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

Quanto à mudança da lei que passa, eventualmente, a mudar o tratamento para com o praticante de determinada conduta, damos algumas denominações especiais a esses eventos jurídicos:

Novatio legis in pejus: uma conduta que já era crime, e lei posterior passa a dar tratmento mais duro aos agressores. Lei 8072/90 – Lei de Crimes Hediondos. Matar já era crime de homicídio, mas a lei de 1990 agravou as consequências do delito. A lei não retroage. Só atinge os crimes praticados posteriormente à sua entrada em vigor.

Caso Daniela Perez, 1992: até então, homicídio qualificado não era crime hediondo. Graças à manifestação liderada por Glória Perez, a legislação passou a considerar o homicídio como crime hediondo. Infelizmente, a lei não retroagiu a ponto de atingir o condenado, Guilherme de Pádua, cujo caso já havia transitado em julgado quando a lei que redefiniu a classificação do crime de homicídio qualificado para hediondo entrou em vigor, ou seja, o próprio caso que motivara a mudança da lei permaneceu inalterado.

No entanto, a lei pode retroagir para favorecer o réu. Ex: abolitio criminis ou descriminalização. Em 2001, foi descriminalizado o adultério, ou seja, removido do Código Penal, permanecendo apenas como ilícito civil. O mesmo para a sedução de mulher virgem. Se um indivíduo já se encontrava condenado por um desses crimes, por meio da abolitio criminis ele voltará a ser réu primário imediatamente, e sua ficha criminal será apagada. A abolitio criminis pode se dar por meio de lei ou interpretação. O STF pode vir a entender, por exemplo, que a Lei de Contravenções Penais não está de acordo com a Constituição Federal de 1988. A jurisprudência também pode gerar abolitio criminis. Além disso, pode ocorrer a...

Novatio legis in mellius: a conduta não deixou de ser crime, mas a pena ficou mais branda por conta de lei nova. Nesse caso, a lei retroage para favorecer o réu. Exemplo: a lei de drogas em relação aos usuários. Certa feita, um sujeito chamado Marcelo Anthony foi beneficiado por esta lei por portar cerca de trezentos gramas de maconha. Não existe mais pena de prisão; há advertência, tratamento, obrigação de frequentar cursos...

O princípio da irretroatividade também fala sobre o Processo Penal? Suponhamos, então, que uma nova lei determine que todas as penas que variem de 10 a 20 anos passem a variar, em vez disso, de 20 a 30 anos. A lei retroage? Não. Mas e na parte processual penal? Diga-se, por exemplo, que lei nova passe a prever prisão preventiva obrigatória. Ou então, extingue-se a liberdade provisória. De acordo com os processualistas, as leis processuais penais têm aplicação imediata, logo podem retroagir para prejudicar o réu. Isto está no art. 2º do Código de Processo Penal: 

Art. 2º - A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.

Claro que há a crítica a esse fenômeno. Como esses dispositivos foram criados para impedir abusos do Estado em relação ao indivíduo, não importa, na opinião dos críticos, se a norma é penal ou processual penal. Ela não deveria retroagir, pois; isso deveria ser aplicado ao Código Penal, ao Código de Processo Penal e à Lei de Execuções Penais. Aury Lopes Jr. Defende que as três leis devem caminhar juntas, e não deve haver retroatividade em nenhuma delas, exceto para beneficiar o réu. Elmir Duclere concorda com Lopes.

Caso Fernandinho Beiramar: depois de transitada em julgado a decisão, o caso motivou a criação do RDD, o Regime Disciplinar Diferenciado, que é um regime fechadíssimo. A colocação ou não de um condenado em RDD é assunto processual. Entretanto, entendeu-se que a norma que criou o RDD pode retroagir, e o próprio Beiramar ficou a ele sujeito.

Princípio da taxatividade 

Não basta que a lei defina o crime e comine a pena; ela deve dizer o mais claramente possível em que consiste o crime e qual é a pena. O Princípio da Taxatividade diz que a lei deve redigir muito exatamente a conduta para que sejam evitados os abusos do juiz. Sem este princípio, a lei poderia ser burlada facilmente. Ex: ato obsceno em lugar público. Outro: estupro. Sexo anal, oral e outras variações não são consideradas estupro, pois a lei o define, no art. 213 do Código Penal, como: ¹

Art. 213 - Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça [...]

Note que a lei deve deixar claro que a vítima deve ser mulher, e definir exatamente que tipo de sexo forçado é considerado estupro. Outro exemplo é o furto: “subtrair coisa alheia móvel, para si ou para outrem.” Pelo princípio da taxatividade, a lei deve deixar claro, como de fato o deixou, que a o objeto roubado deve ser móvel e pertencente a outra pessoa. Pode parecer uma exigência débil, mas isto é para deixar claro, por exemplo, que não é considerado furto a subtração de coisa móvel que lhe pertença, como um veículo que você possa ter deixado como garantia em uma transação.
 

Princípio da reserva legal

Há um grupo de leis chamadas “leis penais em branco”. De acordo com Karl Binding, a lei penal em branco é “uma alma errante em busca de um corpo”. São normas incompletas que remetem sua complementação a uma outra norma. Vejamos o tráfico: a lei de drogas o define como exportar, importar, trazer consigo, expor à venda e mais outros 14 verbos. Mas que droga? Anabolizantes? Medicamentos comprados em farmácia? Bagulho? Há pessoas que já foram presas pelo porte de qualquer desses tipos. Para melhor definir que drogas exatamente que podem ser associadas ao crime de tráfico, é necessária uma portaria da ANVISA. No caso, é uma norma penal em branco heterogênea, que remete a uma norma de hierarquia inferior. Normas penais em branco homogêneas, portanto, são aquelas do Código Penal, ou de outra lei ordinária que remetem a outra lei de igual hierarquia, como o Código Civil.

Para alguns autores, o princípio da reserva legal é o mesmo princípio da legalidade em sentido amplo. No Direito Civil e no Direito Administrativo, há o princípio da legalidade mas não como reserva legal. Aqui no Direito Penal sim, a legalidade é vista como reserva legal. O legislador não pode criminalizar fatos por outras fontes que não a lei. Por exemplo: medida provisória. Em princípio, as MPs não podem dispor sobre matéria penal, nem decretos, nem regulamentos nem portarias. A única fonte do Direito Penal é a lei, e só ela pode definir crimes e cominar penas. Se outra fonte o fizer, esta fonte não será válida; será inconstitucional. Há uma discussão, entretanto, sobre a possibilidade de a MP dispor favoravelmente em relação ao réu. “Não pode o presidente Lula abolir a contravenção do jogo do bicho por MP?” Nesse caso, não haveria violação do caráter garantista desse princípio.

Há quem questione as disposições heterogêneas, porque supostamente estão violando alguns princípios: o da divisão de poderes e o da reserva legal. Isso porque na verdade é o Executivo que está legislando em matéria penal por simples portaria, afinal a ANVISA é subordinada ao Ministério da Saúde, e isso é inconstitucional. Mas, que juiz terá coragem de permitir o tráfico? Os defensores desse questionamento, basicamente gaúchos, são: Andrei Schmidt, Rogério Greco, Zaffaroni e outros. Os tribunais nada pensam sobre isso, ainda.
 

Princípio da proporcionalidade: garantia  individual que surgiu historicamente, para a proteção do indivíduo contra o Estado.  Estabelece que a intervenção do Direito Penal só deve ocorrer quando a consequência imposta for absolutamente proporcional à gravidade da conduta praticada. Deve haver proporcionalidade entre crime e o castigo, mas não apenas isso; este é o significado antigo da proporcionalidade, mas hoje ela tem uma característica mais ampla. A proporcionalidade, como é entendida hoje, tem três dimensões: a necessidade, a adequação e a proporcionalidade em sentido estrito. Em matéria penal isso quer dizer:

  1. A proporcionalidade prevista em lei;
  2. A individualização da pena ou proporcionalidade concreta ou judicial;
  3. A proporcionalidade durante a execução da pena: opção de progressão do regime.

 Próxima aula: princípio ne bis in idem e princípio da insignificância.


  1. Nova redação do art. 213 do Código Penal, dada pela Lei nº 12.015, de 2009: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. [...] Ainda assim, a redação velha do caput do art. 213 do CP é excelente para ilustrar o princípio da taxatividade.
  2. Não deu tempo de perguntar isso, infelizmente.
  3. Uma pequena crítica a essa posicionamento está aqui.