Concurso de crimes
Frase
do dia: A
distinção entre conflito aparente de normas e concurso de crimes não
preexiste
à interpretação mas é dela resultado.
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Não devemos confundir o concurso de crimes com o conflito aparente de normas. É algo bem freqüente. Sobre um determinado fato podem incidir diversos tipos penais. Homicídio, por exemplo, pode significar latrocínio, estupro seguido de morte, homicídio mesmo, lesão corporal seguida de morte, etc.
Agora imaginem um seqüestro relâmpago que chegou a durar sete horas. Isso é só roubo com privação da liberdade ou também houve extorsão? É, portanto, uma questão de conflito aparente de normas ou um concurso de crimes? O juiz de primeira instância entendeu que houve não só roubo como também extorsão, mas o desembargador que apreciou o caso entendeu que houve apenas o primeiro crime. O conflito aparente de normas ocorre quando há vários tipos penais, e só um, em princípio, pode ser aplicado.
No concurso de crimes, há vários crimes, portanto várias penas. Um princípio subjacente a isso é o ne bis in idem. Então a diferença entre o conflito aparente de normas e o concurso de crimes é que no primeiro há, em princípio, um único crime, em que parecem poder incidir várias normas penais. No segundo há vários crimes. Mas os dois institutos não são incompatíveis. Podem-se discutir as duas coisas num mesmo caso. Alguém pode ser condenado por um único crime dúbio, em que ficou difícil o entendimento sobre os tipos penais praticados pelo agente, mas ainda assim discutir-se se houve um crime, dois, três, etc.
A distinção entre conflito aparente de normas e concurso de crimes não preexiste à interpretação mas é dela resultado. Ou seja, o mesmo fato pode ser ora entendido como conflito aparente de normas ou concurso de crimes. Não se pode pretender distingui-los objetivo-formalmente. No primeiro caso é, dessa maneira, entendido que houve só um crime.
Especialidade, consunção e absorção são princípios que afastam o conflito aparente de normas.
Os desembargadores que apreciaram o
caso de roubo/extorsão
acima entenderam que o juiz de primeira instância havia errado, mas
poderiam
ter mantido a interpretação dele.
O Código Penal prevê três formas de
concurso: material,
formal e crime continuado.
Ocorre concurso material quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão pratica dois ou mais crimes. Também conhecido como concurso real de crimes. Exemplo: um sujeito entra na sala, agride alguém, entra em outra, agride outra pessoa, depois foge de carro e atropela alguém. Houve três ações, três crimes.
Maníaco do parque: matava e estuprava uma mulher mais ou menos a cada semana. Vários crimes, várias penas. Outro exemplo: um juiz (funcionário público) é corrupto e recebe dinheiro para dar uma sentença em determinado sentido. Se fizer uma vez por mês, configuram-se vários crimes. No concurso material, como há várias ações e vários crimes, as penas são aplicadas cumulativamente, podendo, inclusive, as penas excederem a 30 anos. Se ocorrer, o juiz deverá proceder à unificação das penas para 30 anos.
Massacre do Carandiru: entendeu-se que houve concurso material. O Coronel Ubiratã Guimarães não deveria cumprir 666 anos por ter matado 111 presos, levando 6 anos para cada um, mas 30.
O sujeito tem direito a livramento condicional depois de cumprir 1/3 da pena. Esse 1/3 é calculado sobre os 666 ou sobre os 3?
Quanto a isso, há dois posicionamentos:
O majoritário, inclusive prestigiado pela súmula 715 Do STF ¹, que diz que o cálculo deve ser feito com base na pena aplicada, e não na pena unificada. Deu-se, portanto, a pior pena para o réu.
Súmula
715 A PENA
UNIFICADA PARA ATENDER AO LIMITE DE TRINTA
ANOS DE CUMPRIMENTO, |
Por outro lado, há o pensamento minoritário, que entende que a fração de pena cumprida depois da qual o sujeito terá direito ao livramento condicional é calculada sobre a pena unificada, no caso, de 30 anos, portanto 1/3 de 30 = 10 anos. Dez anos seria o que o sujeito deveria cumprir em regime fechado para poder ter direito à condicional.
Um problema seríssimo para o qual o professor não tem resposta é: mediante mais de uma ação ou omissão, os autores fazem uma distinção entre ação e atos: exemplo: o sujeito decide praticar um furto, e pratica uma ação de furtar. Para isso, ele põe a escada na parede, sobe, entra no quarto, subtrai uma jóia, desce, volta ao carro, guarda a jóia, retorna à casa, furta um notebook, etc. É portanto uma ação de furtar desdobrada em vários atos. Portanto, não há vários furtos, mesmo que o ladrão vá ao carro e volte várias vezes.
E se forem vários bens?
Os autores dão também o seguinte exemplo de uma única ação desdobrada: a quadrilha aborda um ônibus à noite e subtrai dinheiro de 50 passageiros. Entende-se que houve só um furto. Agora veja. O mesmo exemplo, se for não de furto, mas de homicídio, entende-se que cada ato de matar, autonomamente considerado, é um crime de homicídio. Portanto, é uma distinção que é fácil apenas à primeira vista.
Os autores também fazem uma distinção entre
concurso homogêneo e heterogêneo.
O primeiro é quando o sujeito pratica vários crimes iguais. O
heterogêneo é
quando ele pratica crimes distintos.
O mais comum é o concurso material. O formal é a exceção: ocorre quando o agente, mediante uma única ação ou omissão, pratica vários crimes. Exemplo de Paulo César Timponi: bater contra um veículo e matar três pessoas. Ou então matar duas pessoas com um tiro só, com a intenção de matar apenas a primeira.
Enquanto no concurso material são aplicadas várias penas, no concurso formal é aplicada apenas uma: a mais grave, se houver distinção quanto a elas. É o que ocorre em caso de concurso heterogêneo. Se a pena for idêntica, ou seja, se o concurso for homogêneo, aplica-se ela, com aumento de 1/6 a 1/2. O concurso formal também é conhecido como concurso ideal de crimes.
Concurso formal Art. 70 - Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior. Parágrafo único - Não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do art. 69 deste Código. |
No concurso formal, pode acontecer de a pena ser superior à do concurso material. Digamos que o sujeito atira contra uma pessoa, que morre, e lesiona uma terceira. Mediante concurso formal, ele matou uma e acabou lesionando outra. O sujeito só responderá por homicídio simples. O juiz aplica 12 anos + 1/3 desta pena = 16 anos. Se ele tratasse isso como concurso material, ele aplicaria 12 anos, que é a pena mais branda para homicídio qualificado, mais a pena máxima da lesão corporal leve = 1 ano. Logo, seriam 13. Pode o juiz fazer isso? Não, pois isso não é conforme o princípio da proporcionalidade: entende-se que o concurso formal é o mais favorável ao réu, logo o Código traz a regra de que a pena do concurso formal em nenhuma hipótese pode exceder a pena que seria cabível à pena para o concurso material. Os advogados devem estar atentos a isso.
Por isso que os juízes aplicam as penas isoladamente e só então aplicam o aumento. Para ficar claro, inclusive.
Outra coisa importante: existe a
figura do concurso formal impróprio.
Ocorre quando
o agente, mediante uma única ação ou omissão, pratica vários crimes,
mas cada
um deles tendo decorrido de um dolo autônomo, ou seja, o sujeito queria
mesmo
todos os resultados decorrentes daquela ação única. Exemplo: usar uma
bomba
para matar um indivíduo, e matando outros dois. Nesse caso, aplica-se a
regra
do concurso material. Por quê? Porque embora se trate, a rigor, de
concurso formal,
o sujeito quis matar os três indivíduos, previa o resultado e não foi
algo
acidental. Isso é, de fato, um concurso material, apesar de ter
aparência de
concurso formal. É uma situação excepcionalíssima.
Já vimos, mas agora veremos esse instituto com mais profundidade.
Ocorre quando o agente, pretendendo praticar um crime contra uma pessoa, por erro na execução ele ofende pessoas diversas da que ele quis atingir. Também conhecido como “erro no ataque”. Exemplo: o sujeito deseja matar o pai e acerta um estranho. O Código Penal Brasileiro adotou a teoria da equivalência. Se um estranho é morto por um agente que pretendia matar o próprio pai, ele responde como se tivesse matado o pai. Isso significa que o agente estará sujeito à pena para o crime de homicídio com um agravante, que é ter praticado o crime contra ascendente.
Quando, no aberratio ictus, houver a produção de mais de um resultado, como mirar em um e acertar outros dois, aplica-se a regra do concurso formal. Quando se atingir mais de uma pessoa, responde-se apenas por um crime, o mais grave, contra àquele que se quis atingir. Um homicídio com aumento de pena contra a vítima potencial ou virtual (não a real). Tem tratamento de concurso formal sempre que houver várias vítimas. O agente responde como se tivesse praticado o crime contra o agente que pretendeu atingir. Este concurso formal não é incompatível com a legítima defesa. Para entender, imagine o exemplo: Little Chino, que está perto de Biney e Lila, avança na direção de Dexter, com uma arma, pretendendo matá-lo. Dexter saca sua própria pistola calibre .50 antes e atira, em legítima defesa, contra Little Chino, matando-o, mas a bala atravessa seu corpo e atinge Biney na cabeça (que também vem a óbito) e fere Lila. Aqui, aplica-se a regra do concurso formal, mas a ação inicial está amparada pela excludente de ilicitude da legítima defesa. Como se responde apenas pelo crime de homicídio, contra aquele que se quis atingir (Chino), Dexter não será punível.
Teoria da concretização: de acordo com ela, o sujeito responde pelo que de fato aconteceu. É a teoria que não foi adotada pelo Código. No já visto caso da mulher que envenenou a comida do marido, pretendendo matá-lo, mas que acabou matando os filhos que comeram a refeição antes do marido, haveria dois homicídios culposos consumados (contra os filhos) e um homicídio doloso tentado (contra o marido).
Pergunta de prova: a polícia sabe de
uma extorsão mediante seqüestro
em andamento, sabe que a vítima está sendo maltratada, que há risco de
morte,
mas não sabe onde é o cativeiro, mas sabe que a mãe dos seqüestradores
sabe dessa
informação e se recusa a dizer, pois se mantém na defesa dos filhos. Em tese, o que os policiais podem
invocar, ao
torturá-la pela informação da localização do cativeiro? Estado de
necessidade.
Várias ações ou omissões, mas tratados como se fossem um único crime. O crime continuado na verdade é um concurso material tratado como concurso formal. É uma figura híbrida, mista, sui generis. O sujeito não responde por concurso material embora de fato o seja; ele recebe o tratamento de concurso formal: responde por um único crime.
Crime continuado Art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços. [...] |
Ocorre quando entende-se que os crimes subseqüentes são havidos como continuação do primeiro. O que está subjacente a essa discussão é o princípio da proporcionalidade. Isso surgiu antigamente, com a pretensão de evitar a pena de morte para o terceiro furto. Havia uma norma que dizia que "aquele que cometer o terceiro crime seria condenado à morte". Também se deve a razões de política criminal. A pena é aumentada, ficando ligeiramente maior que o concurso formal.
Exemplo: alguém deseja furtar uma
coleção de quadros que só
têm valor no conjunto. Então o sujeito vai ao museu um dia e furta o
primeiro,
outro dia furta outro, etc. É um caso de crime continuado. É também o
caso da
empregada que um dia subtrai uma jóia da patroa, depois umas lingeries,
depois
uns dólares, depois um saco de macarrão... a tese de crime continuado
tem sido
reconhecida com freqüência em casos de sonegação tributária. Se o
sujeito
sonega várias vezes por meses, é comum que ele responda apenas por um,
com pena
aumentada. É uma reiteração de crimes, portanto concurso material,
tratado como
concurso formal para evitar penas excessivamente altas.
Conceito formal de crime continuado
Primeiro de tudo: não confundamos com
crime habitual. Este é
um único crime, sendo que cada ato por si só não constitui um crime. Só
há
crime se houver configuração da habitualidade no exercício da medicina
(art.
282), por exemplo, ou do curandeirismo (art. 284), ou mesmo da reunião
de um
grupo criminoso para que seja configurado o crime de bando ou quadrilha
(art.
288). A diferença que há entre crime habitual e crime continuado é que,
no
continuado, cada ato constitui um crime.
Na prática, a tendência é reconhecer
a continuidade quando o
crime for leve. Se for rechaçada a tese de crime continuado para um crime grave, é comum que o réu leve a pena máxima.
É uma forma mais dura de apenação do crime continuado.
Crime continuado Art. 71 – [...] Parágrafo único - Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código. |
Ocorre quando, presentes todos os elementos do crime continuado, houver a presença dos seguintes elementos: crimes dolosos, violência ou grave ameaça, contra vítimas diferentes, circunstâncias favoráveis a ser levadas em conta pelo juiz. A pena pode ser aumentada até o triplo.
Há uma sumula do STF, anterior à reforma de 84, que portanto está revogada, que dizia que o crime continuado poderia ser contra vítimas diferentes, mas não mais.
De todo modo, se a pena se tornar maior que 30 anos, ela deverá ser unificada para 30.