O conceito de dolo é um dos mais fundamentais do Direito Penal. Do ponto de vista do resultado, não há diferença entre crime culposo e doloso. Tanto faz matar alguém dirigindo embriagado ou com uma espingarda. O resultado é o mesmo: matar alguém. Mas é que valoramos diferentemente as ações dolosas das culposas. Historicamente os crimes culposos nem eram punidos. Exatamente por isso que o tratamento dado a uma coisa e outra é bem diferente.
Primeiro lugar, pela regra, só são puníveis os crimes dolosos. Só excepcionalmente, quando expressamente previsto, que se pune a forma culposa. Se a lei se omitir, é porque aquela ação não é punível na forma culposa. Exemplos: aborto, estupro e furto.
Poucos são os crimes no código penal que admitem a forma culposa. Basicamente, homicídio e lesão corporal. Fora do código penal, a legislação arrola mais crimes culposos. Código Nacional de Trânsito por exemplo. Infrações puníveis na forma culposa. Cada vez mais há uma tendência a punir mais freqüentemente os crimes culposos, diferentemente do que ocorreu no passado; há uma tendência a mudar. Inclusive há autores, entre eles Beck, que dizem que vivemos numa sociedade de risco: cada vez mais os riscos decorrem da tecnologia. Essa exposição a perigos tem levado a ampliarem-se os crimes de perigo e culposos. Entretanto essa é uma teoria fraca por causa dos “dois gumes da faca da tecnologia.”
Podemos até sentir isso, mas na pratica a tecnologia trouxe mais avanços e segurança do que riscos. Ninguém pensa seriamente sobre isso. Kaufmann parece contestar isso.
Por que essa regra? Principalmente em razão do caráter subsidiário do Direito Penal. Em geral, não consideramos graves as ações meramente culposas. Ou seja, primeiro, a excepcionalidade dos crimes culposos decorre dessa menor importância dada a eles. Segundo, alguns crimes são incompatíveis com a idéia de culposo.
Há um livro muito interessante sobre dolo: I. Puppe. Fala de vários casos que foram apreciados pela jurisprudência alemã. Um deles é um caso de sadomasô, em que um casal regularmente praticava atos de violência como fetiche, e, certa vez, o marido pediu para a mulher lhe embeber em gasolina e atear-lhe fogo. Ela recusou. Depois de muita insistência, ela acaba concordando com a idéia. O fogo foi tocado, o marido morreu, e ela foi processada por homicídio doloso. Conseguiu provar que teve apenas culpa, e não dolo, mesmo em meio a essas circunstâncias que, aqui no Brasil, dificilmente seriam levadas a sério.
Há dolo quando o agente quer o resultado (conceito legal de dolo) ou assume o risco de produzi-lo. No código penal, há o conceito de dolo direto e o de dolo eventual. Art. 18:
Crime doloso I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; Crime culposo II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. Parágrafo único - Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente. |
O agente quer praticar o crime e vai até o fim. Dolo indireto ou eventual: o agente não quer diretamente o resultado, mas sabe que a ação é perigosa e mantém essa ação. Exemplo: mirar em uma pessoa e acertar outra; colocar bomba em avião, com o objetivo de matar uma única pessoa. Com relação à pessoa que ele quer matar, há dolo direto. Com relação às outras, dolo indireto ou eventual.
Dolo natural (dolo de tipo) x "dolus malus"
Há uma discussão doutrinária quase pacificada sobre esses dois conceitos. Antigamente, os autores chamados causalistas ou naturalistas conceituavam dolo como dolus malus: entendiam que só há dolo quando o agente sabe que está atuando contrariamente ao Direito. O agente tem consciência da ilicitude do ato praticado. Se lhe faltar essa consciência de ilicitude, então não há dolo. Dolus malus = “dolo mau”.
Com o finalismo, a partir de 1930, Hans Welzel defende que, para que o sujeito aja dolosamente, não há necessidade de dolus malus, basta que o sujeito queira realizar o tipo. O dolo dispensa a consciência da ilicitude. Para a teoria finalista, que é a adotada pelo Código Penal brasileiro, desde a reforma de 1984, o dolo não precisa ser do tipo malus, basta a vontade de se realizar o fato típico (previsto no Código).
Exemplo: se um sujeito holandês acha que pode usar drogas quando vem à Bahia passar o carnaval, ele diria "eu não sabia! Vim pra cá pensando que isso era permitido aqui também!” E faltava-lhe a consciência da ilicitude. Para a teoria causa lista, ele não agiu com dolo. Já para a teoria finalista, desde que ele soubesse que se tratava de cocaína, não importa que ele não tenha consciência da ilicitude. Sabia que era cocaína, sabia que era cocaína é droga e droga é ilícito.
Outro exemplo: alguém é preso no CEUB por tirar xerox de livro: "mas todo mundo faz isso!" Analogamente, pela teoria causalista, o aluno que tira cópia de livros não age com dolo, enquanto que para a teoria finalista há dolo nessa conduta.
Então, o conceito finalista de dolo é realizar os elementos do tipo. Para a causalista, é exatamente isso mais a consciência da ilicitude. Dolo natural = dolo finalista = dolo de tipo.
Elementos do dolo: vontade e representação
Elementos: de acordo com a teoria adotada pelo Código, o dolo se compõe de vontade e representação, que são respectivamente o elemento volitivo e o elemento cognitivo. O elemento cognitivo ou representativo significa que, para que haja dolo, é necessário que o sujeito tenha consciência da lesividade de sua ação no caso concreto. Se um sujeito tem uma arma em mãos, carregada, e sabe que se apontar para alguém e atirar ele mata, então podemos dizer que há o elemento representativo ou cognitivo. A representação compreende a lesividade do instrumento criminoso. Outro exemplo: se se sabe que determinada menina é menor de 14 anos, e que, ainda que ela queira a relação sexual isso está proibido, então se o sujeito fizer sexo com ela haverá estupro com violência presumida. Se, todavia, o agente possui uma arma de fogo e pensa que é uma arma de brinquedo, então não há dolo: falta o elemento cognitivo. Ou então estar convencido que as balas aqui na arma são balas de festim. Falta a consciência, o elemento essencial para a realização. Se o sujeito acredita que a menina com quem está prestes a ter sexo tem pelo menos 18 anos mas tem apenas 13, então lhe faltará a consciência da ilicitude, e não haverá dolo.
O elemento volitivo é a vontade, a intenção.
Tortura psicológica com tiros de esculacho que dá errado e mata o interrogando: carece do elemento volitivo por parte do executor. Não pode haver dolo sem o conhecimento nem sem a vontade. Logo, o interrogador não poderá ser acusado de homicídio.
Os livros antigos são cheios de classificações do dolo. As espécies importantes são: dolo direto e dolo eventual, já discutidos. Há dolo eventual quando o agente sabe que sua ação é perigosa mas ainda assim segue adiante. Dessa ação perigosa, há a produção de resultado. O difícil é distinguir...
Dolo eventual e culpa consciente
Culpa consciente ocorre quando o agente não quer o resultado mas pratica uma ação que ele sabe que é perigosa e sabe que pode resultar em lesão a alguém. Ele segue e a lesão ocorre. Exemplo: médicos que fazem cirurgias extremamente perigosas. Se resulta em morte, haverá, possivelmente ou não, culpa consciente, mas não dolo. Culpa é imprudência, negligência ou imperícia.
Atirador de facas de circo que acertou o braço da mulher-alvo: houve imprudência dele. Ocorre muito também em estúdios de cinema. Caso Brandon Lee: Michael Massee, que contracenava com o ator, pegou uma arma, que supunha carregada de balas de festim e, seguindo a ordem do diretor e do roteiro, disparou contra Brandon. Havia, entretanto, balas de verdade na arma, e Brandon foi morto durante as filmagens de The Crow.¹ O mesmo com os mágicos, que executam números perigosos, com facas, serras, cimento de secagem ultrarápida, explosivos, etc. Culpa consciente: culpa com previsão, sem a intenção direta ou eventual de lesionar ninguém. A diferença é: há previsão nos dois, a diferença se da no plano subjetivo.
Alemanha, Espanha e alguns autores nacionais fazem essa distinção: dolo de primeiro grau e dolo de segundo grau. Dolo de primeiro grau é previsto no Código Penal alemão: tem a ver com dolo direto; é uma variação. Compreende todo o resultado normal daquela ação. Se atira-se contra alguém, o sujeito sabe que vai matar a pessoa. É o resultado normal de uma ação dolosa ou perigosa. Mas há vários resultados que podem decorrer do dolo mas não fazem parte do desdobramento causal normal daquela ação. Por exemplo: quero matar o vizinho que está roubando minha água. Adiciono veneno ao tanque, querendo dar um fim ao vizinho. Antes de o plano dar certo, meus filhos bebem a água primeiro, e morrem. Difícil dar exemplos precisos, e essa matéria não está no Código Penal brasileiro ².
Só há dolo quando ele é contemporâneo da ação ou omissão. Vale dizer: não existe dolo antecedente nem dolo subseqüente. Exemplo: A deseja matar B. A vai à casa de B, aponta-lhe a arma, B pede desculpas, A fica triste, começa a tremer e, em meio ao nervosismo, puxa o gatilho. O dolo de matar é anterior à ação de matar. Logo não há dolo. Outro exemplo: mato alguém culposamente e depois descubro que havia um testamento para mim, que poderia me influenciar a matá-lo se eu soubesse. Não houve dolo porque a vontade não era contemporânea à ação de matar. Se for anterior ou posterior, não há dolo.
E mais um exemplo: adquirir carro em condições normais, e depois o comprador fica sabendo que o sujeito que lhe vendeu está preso por roubo de carro. Não há dolo de receptação porque o dolo não foi contemporâneo. O crime de receptação é do tipo acessório, que depende de outro crime para que ocorra, e só se pode ser acusado de receptação de objeto que se sabe ser produto de crime.
É o erro de tipo. Ocorre quando o agente não tem a exata representação do fato, ou mesmo nenhuma. Então falta tanto o elemento cognitivo e o volitivo. Havendo o erro de tipo, o dolo é afastado. Exemplo: levar celular de outra pessoa pensando ser seu. Você não responde por crime. Pode existir, na pior das hipóteses, crime culposo, se aquele fato for punível na forma culposa. Carregar a mala de um mala ou plantar maconha sem saber no próprio jardim, por influência de um vizinho que dizia se tratar de “nutritivas ervas para o solo”. Ter cocaína em casa e pensar que é maizena. Menina que parece ter 18 anos mas tem apenas 13. Atirar em veado e ver, só depois, que era uma pessoa: erro de tipo sobre matar "alguém”. Art. 155, furto: subtrair coisa "alheia" móvel. O sujeito que leva celular do colega pensando ser seu próprio celular não pode ser acusado porque lhe faltou o dolo, já que ele não tinha, na ocasião, a consciência de que o celular em questão era “alheio”.
O erro pode ser evitável ou inevitável. Se for inevitável, remove-se o dolo e a culpa. Se flor evitável, significa que o agente não tomou o devido cuidado. Então o dolo é excluído, mas não a culpa.