Direito Penal

segunda-feira, 13 de outubro de 2008


Excludentes de ilicitude: a legítima defesa


Tópicos:
  1. Introdução
  2. Conceito
  3. Fundamento
  4. Espécies
  5. Requisitos
  6. Algumas situações nas quais é possível invocar a legítima defesa
  7. Ofendículos
  8. Agente infiltrado
  9. Questões controvertidas
  10. Consentimento do ofendido

Introdução

A legítima defesa é a excludente de ilicitude mais importante e mais antiga. Especialmente no júri é extremamente freqüente o recurso à legítima defesa. Qualquer direito pode ser por ela protegido: atentado contra a vida, à honra, ao patrimônio, etc; tudo isso pode ser amparado pela legítima defesa. Freqüentemente se invoca a legítima defesa em crimes contra a vida. Mas, também, é possível invocá-la, em tese, para amparar qualquer direito ou a defesa de qualquer bem jurídico. Inclusive crimes contra a honra, que é até hoje um tema controvertido, principalmente quando um homem consegue a absolvição no Tribunal do Júri por ter assassinado a esposa que o traíra alegando legítima defesa da honra. Injúria: responder com outra injúria. Entende-se que essa retorsão é uma forma de legítima defesa, desde que seja  proporcional. Não se pode, entretanto, responder a uma injúria com tiro. Essencialmente, em toda excludente, é necessário que haja proporcionalidade. Portanto, não pode um proprietário de sítio responder a tentativa de furto de suas goiabas com tiros de espingarda calibre 12.

Também discute-se a proporcionalidade no recente caso do agente da Delegacia de Operações Especiais que atirou contra três ladrões, matando dois e ferindo o terceiro. Há uma pequena chance de esse caso ir a júri, mas, se for, é provável que o policial seja absolvido.

 

Conceito

Existe legítima defesa quando o agente, para rechaçar uma lesão a direito próprio ou de terceiro, lesiona um bem jurídico do agressor. A legítima defesa, obviamente, pressupõe um ataque. Ela é configurada por uma lesão ao agressor.
 

Fundamento

Quem atua em legítima defesa atua conforme o Direito e, portanto, protege um bem jurídico. Quem atua em legítima defesa afirma o Direito. Sendo a legítima defesa uma excludente de ilicitude, portanto também de antijuridicidade (palavras sinônimas, neste caso), resta que a ação da legítima defesa é propriamente jurídica, portanto conforme o Direito. Deve ser, portanto, sempre proporcional. É entretanto aplicável apenas numa situação de urgência, em que não haveria tempo para reclamar ao Estado que providencie o meio usual para a defesa do direito.

Espécies

Há a legítima defesa própria e a legítima defesa de terceiro. Serve para a proteção do próprio ofendido ou de uma terceira pessoa, não necessariamente parente nem pessoa cujo agente tem a obrigação de proteger.

Também pode haver a legítima defesa real ou a legítima defesa putativa. A real é quando o sujeito está numa situação real de agressão e reage com outra agressão. A putativa é uma situação imaginária: o sujeito imagina estar atuando em legítima defesa, mas na verdade não está. Exemplo: dono de casa que vê um vulto no seu interior durante a noite, e atira contra o estranho, supondo ser um invasor. Quando vê, era seu filho, que voltara de viagem e pretendia fazer uma surpresa. Também no caso Jean Charles de Menezes: o policial que executou o brasileiro imaginava se tratar de um terrorista pronto para detonar uma bomba presa ao corpo, e o “incapacitou”.¹

 
Requisitos

A legítima defesa é uma defesa, então, é necessário que haja um ataque, mais chamado de agressão. Essa agressão deve ser injusta. “Injusta”, aqui, deve ser entendida como “não amparada pelo Direito”. Normalmente trata-se de uma ação violenta, mas não necessariamente é criminosa ou violenta. Essa agressão tem que ser necessariamente humana. Animal não agride, animal apenas “ataca”. Pode-se alegar estado de necessidade se for o caso de um sujeito ser atacado por um cão. A agressão humana pode, no entanto, partir de animais treinados para o ataque. Nesse caso, a resposta ao ataque do animal será legítima defesa, não estado de necessidade. Um sujeito que tenha sido legalmente preso poderá usar da legítima defesa se o delegado, durante o interrogatório, usar de tortura para extrair-lhe informações.

A agressão só pode partir de pessoa física. Não cabe legítima defesa contra atuação de pessoa jurídica. O que pode acontecer é legítima defesa contra uma pessoa física que atua em nome de uma pessoa jurídica. Por exemplo: um policial que atua em nome do Estado, mas de forma ilegal.

Só pode haver legítima defesa contra ações conscientes. Contra pessoas hipnotizadas ou sonâmbulas não há legítima defesa de acordo com os autores, mas estado de necessidade. Ébrios: também há discussão doutrinária a respeito deles, mas em geral se entende que é legítima defesa mesmo e não estado de necessidade.

A agressão tem que ser atual ou iminente. Só pode alegar legítima defesa quem estiver sofrendo uma agressão que está se consumando. No caso do agente da DOE acima citado, a agressão já havia cessado porque os ladrões já haviam lhe subtraído o dinheiro. Entretanto o crime não estava consumado porque eles não haviam fugido ainda. Também pode a legítima defesa ser usada diante de uma agressão iminente, que está para se consumar. Por exemplo: estupro, no momento em que o sujeito já anunciou o que fará, já prendeu a vítima, e está a caminho do local que escolhera para o crime. Não se pode alegar legítima defesa diante de uma agressão passada ou futura, pois isso se tratará de mera vingança.

Outro requisito: necessidade dos meios empregados. Além de existir uma agressão, é necessário que aquela legítima defesa seja indispensável para a proteção do bem jurídico sob ataque. Só pode invocar legítima defesa quem estiver em situação de necessidade de recurso à ela; não pode haver outra saída. O que está subjacente a isso é o princípio da proporcionalidade. A necessidade dos meios deve ser analisada concretamente, e não apenas abstratamente.

A legítima defesa só deve ser admitida quando não se puder fazer cessar a lesão por outros meios. Se for possível correr, não se deve matar o ofensor e alegar legítima defesa. Cuidado! Isto aqui dito significa que deve-se haver a necessidade da legítima defesa em si, e não estamos falando da necessidade dos meios empregados. São coisas diferentes.

Além da necessidade, é requerida a moderação dos meios empregados. O excesso caracteriza a imoderação, portanto, o agente responderá por um crime, doloso ou culposo conforme o caso. O agressor passa a ser agredido, e pode haver legítima defesa sucessiva. O que estava atuando conforme a lei passa a atuar contrariamente a ela e vice-versa. Dessa forma, se Charada estava agredindo Duas Caras, com a intenção única de lhe causar lesão corporal, mas este puxa uma pistola para impedir a investida daquele, Charada poderá, se conseguir, atuar em legítima defesa sucessiva, se possível, puxando rapidamente seu canivete suíço e desferindo um golpe moral contra Duas Caras, e ainda assim estará atuando conforme o Direito.

Resumo dos requisitos da defesa legítima:

  1. Agressão, injusta, humana, atual ou iminente, partindo de pessoas físicas absolutamente capazes;
  2. Ação consciente do agressor;
  3. Necessidade dos meios empregados;
  4. Moderação dos meios empregados;
  5. Ser a legítima defesa o último recurso disponível para a proteção do bem jurídico.

Algumas situações em que é possível invocar a legítima defesa

Antes de 2001, assédio sexual não era crime, mas naquela época já se poderia reagir legitimamente com um tapa no sujeito.

É possível legítima defesa contra omissão ilegal. Como na expedição de um alvará de soltura: se o delegado se recusar a liberar o preso que acaba de ser beneficiado com um habeas corpus, o preso poderá aproveitar do descuido do guarda ou usar a força para evadir-se. Ou, então, se um paciente receber alta do hospital, e não quiserem liberá-lo antes de pagar pelo tratamento, ele poderá sair de fininho em legítima defesa da liberdade.

Também pode haver legítima defesa diante de ações culposas. Como a direção perigosa de um carro por um embriagado, em alta velocidade, fazendo zig-zag. Pode outro motorista, se se julgar capaz, usar da violência para fazê-lo parar, como aplicando alguma manobra para imprensá-lo ou dar um “totó”. Ou ainda, um passageiro do carro conduzido pelo embriagado poderá, inclusive com o uso de arma, forçá-lo a parar o veículo.

A legítima defesa deve ser empregada apenas para a proteção de direito próprio ou alheio. Qualquer direito pode ser protegido pela legítima defesa. No caso da honra, discutir-se-ão a necessidade e moderação dos meios, especialmente se um novo traído quiser invocar a legítima defesa da honra para escapar da condenação por matar a mulher que tinha um caso.

É possível legítima defesa contra crianças e velhos, isso não importa; também contra relativamente incapacitados, como cadeirantes. É, entretanto, necessário observar a os meios empregados: a necessidade e a moderação.

Como o fundamento da legítima defesa é a própria afirmação do Direito, e ainda pelo fato de ela se caracterizar pela resposta a uma agressão injusta, essa agressão não precisará ser uma infração penal. “Injusta”, como vimos, é uma palavra empregada em sentido amplo, então a agressão também pode ensejar legítima defesa de bens não tutelados pelo Código Penal, como a posse, que é tratada no Código Civil.

 

Ofendículos

Instrumentos utilizados para a proteção da propriedade. Cerca de arame farpado, metralhadora de parede, cães de guarda, cerca eletrificada, minas terrestres, etc.

Se um ladrão invade uma casa e morre por causa dos ofendículos, será isso considerado legítima defesa? Quanto a isso, há dois posicionamentos:

  1. Sim, é legítima defesa, porque no momento em que o ladrão está furtando e sofre a ação dos ofendículos, o proprietário está reagindo a uma agressão atual ao patrimônio (que está se consumando).
  2. Não, mas trata-se de exercício regular do direito.

Só pode alegar legítima defesa para esses casos quando há o uso moderado dos meios; a ação dos ofendículos deve ser proporcional. Se os tiros da metralhadora ativada por sensor atingirem um inocente (aberratio ictus), o proprietário responderá por homicídio culposo, ou até homicídio com dolo eventual, a depender do caso concreto.
 

Agente infiltrado

Tomemos um policial que mata para ganhar confiança do chefe da quadrilha em que está infiltrado. Está ele agindo em legítima defesa? Quem alega que sim o faz porque, se o agente se recusar a cumprir a ordem do chefe, ele será desmascarado e morto. O problema é que, entre nós, ainda não é permitido que o agente infiltrado possa praticar crimes. Alguns entendem que o agente infiltrado é um criminoso que atua em nome do Estado. Se um juiz autorizar um policial a praticar atrocidades, haverá concurso de crimes praticados pelo juiz e pelo policial. Se o sujeito se infiltra e não pratica nenhum crime mas se encontra numa situação em que precisa matar para não morrer (já que, caso se recuse, será descoberto), então sim, esta é uma situação de legítima defesa. Não há prévia autorização legal para tais pessoas praticarem crimes.
 

Questões controvertidas

É possível legítima defesa contra legítima defesa? Não. Pelo menos não em legítima defesa real, pois um dos agentes necessariamente deverá praticar uma ação não autorizada pelo Direito, enquanto que o que atua em legítima defesa atua conforme o Direito. Então, não pode haver legítima defesa real contra legítima defesa real, pois isso seria um paradoxo. Mas pode haver legítima defesa real contra legítima defesa putativa. Por exemplo: Coringa é jurado de morte por Pinguim, com quem teve uma briga. Coringa sabe que Pinguim fala sério, então se previne e passa a andar armado. Certo dia, os dois se encontram, e o que fora ameaçado (Coringa) vê aquele que o  ameaçara (Pinguim) puxar um objeto do bolso. Coringa, precavido, atira contra seu inimigo, antes de saber que, na verdade, ele não estava puxando uma arma, mas outro objeto. Mas, se Pinguim conseguir pegar sua própria arma em tempo, ele estará numa situação de legítima defesa real: foi uma legítima defesa real contra uma legítima defesa putativa, respectivamente praticadas por Pinguim e Coringa.

Se Jean Charles conseguisse matar o policial em Stockwell depois de levar o primeiro tiro, ele estaria em situação de legítima defesa real contra uma situação de legítima defesa putativa. ²

Também não é possível legítima defesa real contra estado de necessidade real. Necessariamente alguém deve estar atuando ilegalmente. Ou então legítima defesa real contra estrito cumprimento do dever legal real ou exercício regular da profissão real. Sempre deve haver pelo menos uma das partes atuando contrariamente ao Direito para que haja uma legítima defesa.

Duelos: antigamente eram comuns. Hoje em dia, se duas pessoas resolverem fazer um duelo, que é crime, não pode ser invocada a legítima defesa. Quem morreu, morto está; quem sobreviveu responderá por homicídio. O mesmo para situações de desafios em geral.

Provocação: ela afasta a legítima defesa? Como a esposa traidora flagrada no motel com seu amante. Por terem provocado essa situação, eles podem usar a legítima defesa contra o marido traído, caso este venha armado se vingar? Sim. A provocação não afasta a legítima defesa, até porque há uma desproporção entre ação e reação. Se houver, entretanto, simulação, não há legítima defesa, como uma emboscada para matar alguém e parecer que ocorreu legítima defesa.

É possível, como dito acima, a legítima defesa contra crianças, velhos, bêbados, etc. Inclusive entre duas pessoas especiais em igual situação. Mas o que se vai analisar é o requisito da necessidade e moderação dos meios.
 

Consentimento do ofendido

Não tem previsão legal; é uma criação essencialmente doutrinária. Alguns crimes só existem se houver dissentimento, ou melhor, se faltar o consentimento. Ora se exige o consentimento explícita ora implicitamente.

Por exemplo: há o crime de introdução de animais em propriedade alheia sem autorização do dono. Esse termo "sem autorização" é a falta de consentimento. Se houver a autorização, não há crime algum pois o fato se torna atípico.

        Introdução ou abandono de animais em propriedade alheia

        Art. 164 - Introduzir ou deixar animais em propriedade alheia, sem consentimento de quem de direito, desde que o fato resulte prejuízo:

        Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, ou multa.


Violação de domicilio sem a autorização dos donos: é crime, por causa da própria redação do tipo. Se houver a autorização, não há crime.

SEÇÃO II
DOS CRIMES CONTRA A INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO

        Violação de domicílio

        Art. 150 - Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências:

        Pena - detenção, de um a três meses, ou multa.

[...]


O mesmo para violação de correspondência. O consentimento do destinatário integra o próprio tipo penal.

SEÇÃO III
DOS CRIMES CONTRA A
INVIOLABILIDADE DE CORRESPONDÊNCIA

        Violação de correspondência

        Art. 151 - Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada, dirigida a outrem:

        Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.


O que doutrina diz? Quando o consentimento faz parte do tipo penal, a tipicidade é excluída. É o que diz a corrente tradicional. Violar correspondência com autorização é fato atípico. Mas há crimes em que o consentimento não faz parte do tipo nem implícita nem explicitamente.

Por exemplo: lesão corporal. As lesões feitas no corpo de alguém por um cirurgião ou tatuador será típico, porem não ilícito porque houve o consentimento do “ofendido” (aquele que teve o bem jurídico lesado). Esse consentimento é uma excludente de ilicitude nos tipos penais em que não se exige o consentimento.

Mas hoje os autores alemães, como Roxin e Rudolph, entendem que o consentimento do ofendido sempre exclui a própria tipicidade, não apenas a ilicitude. Por quê? Porque no momento em que o médico faz a cirurgia, ele está praticando uma ação penalmente irrelevante, pois não há o dolo de lesionar ninguém. Portanto, não pode haver o crime de lesão pois ele está atuando conforme a vontade do titular do direito à integridade física. Não é assim, entretanto, que pensa a doutrina tradicional.

Só há o consentimento do ofendido se forem preenchidos dois requisitos:

  1. Capacidade do agente: só podem consentir os maiores de 18 anos. Mas há situações em que essa idade é bem menor. Com relação a crimes sexuais, por exemplo, a capacidade começa aos 14 anos, já que estupro, no Brasil, só existe na forma "com violência presumida" contra meninas menores de catorze anos ou contra doentes mentais. Essa violência é relativa, pelo entendimento do Supremo.
  2. Tem que se tratar de bem jurídico disponível. Um sujeito não pode consentir que tirem sua vida, pelo menos não aqui no Brasil. Na Holanda e Bélgica há eutanásia; inclusive há o caso do Dr. Morte (Jack Krevorkian), médico americano que se especializou em praticar eutanásia de maneira bem suave. O que está por trás disso também é um fator religioso e a relação entre Direito, moral e religião.

1- “não temos ordens para matar, mas para incapacitar os suspeitos.” – Policial londrino em entrevista a documentário do Discovery Channel.
2- Abstraindo as possíveis diferenças entre a legislação brasileira e inglesa no tratamento da legítima defesa putativa.