Direito Penal

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Direito e Interpretação

 Dica do dia: “assistam umas Sessões do Tribunal do Júri e dêem importância à oratória.”

Tópicos:

  1. Introdução
  2. O crime existe?
  3. Conceito analítico de crime
  4. Possibilidades de interpretação
  5. Limites da interpretação
  6. (Ir)relevância dos métodos de interpretação


Introdução

Praticamente todos os livros, ainda hoje, tratam de interpretação como métodos de interpretação. Método blá, método blé, bli bló blu.

Os livros também ainda estudam a interpretação numa perspectiva metodológica. Há alguns autores que, quando discutem esse assunto, partem de alguns pressupostos. Resumimos assim: interpretação é estudar métodos; há uma confusão entre Direito e interpretação. O pressuposto do qual partem é que estudar interpretação é encontrar ou descobrir o sentido correto e exato da lei, ou seja, que o Direito já está previamente dado pela lei, e a interpretação é um ato lógico/formal de subsunção.

Poderíamos dizer ainda o seguinte: a interpretação jurídica correta depende da lei, e não o contrario, ou melhor, depende do Direito.

Exemplo: Nelson Hungria defende que a fonte única do Direito Penal é a norma legal. Não há Direito fora da lei escrita. A lei penal é um sistema fechado, ainda que se apresente omisso ou incompleto. Para isso, devem-se usar a analogia e princípios gerais do Direito. ¹

Mas, isso é o que se chama hoje de Filosofia da Consciência.

Já a Filosofia da Linguagem busca entender que a interpretação é um fenômeno lingüístico. Parte-se do pressuposto que a lei não contém nenhum sentido; esse sentido é atribuído pelas pessoas. Isso quer dizer que as leis não proíbem, não autorizam nem permitem nada. Então podemos dizer que dentro de um mesmo texto pode haver vários “subtextos”, dependendo de quem interpreta. É como os seguidores de diferentes religiões interpretam as mesmas escrituras, por exemplo: isso vai depender de vários fatores: a idade, sexo, origem, preconceitos, etc.

No entanto, vamos interpretar pela Filosofia da Consciência. Como Montesquieu dizia: “o juiz é a boca que pronuncia as palavras da lei”. Cabe a ele, honesta e imparcialmente, e de forma neutra, aplicar ao caso concreto a lei.

O crime existe?

Desde Nietzsche, vimos que não existem fenômenos morais, mas uma interpretação moral dos fenômenos, e o mesmo vale para o mundo jurídico. A rigor, o Direito não existe, mas é algo que tem um sentido atribuído.

Cadastrem-se no informativo do STF. Na tarde de 12 de agosto deste ano, foi acatada uma petição que invocava o princípio da insignificância e concedeu-se habeas corpus para uma mulher que furtara um liquidificador. No mesmo informativo, conta-se que um soldado teve um pedido de habeas corpus negado porque ele foi encontrado com 1g de maconha. O mesmo tribunal ora defende, ora nega. Isso significa que o Direito não existe não está previamente dado, ele é construído, arbitrariamente, a cada caso ocorrido.

Tudo depende de interpretação. Ter escravos era, até pouco tempo atrás, algo dentro do Direito. A Suprema Corte americana entendia, até meados da década de 1950, que o racismo era conforme a Constituição. Já em 70, o raciocínio foi considerado parcialmente inconstitucional, e, mais recentemente, toda a forma de racismo foi declarada inconstitucional. Porém o texto da Constituição americana permanece inalterado desde 1787. O que mudou foram as pessoas que olhavam para o texto.

O Direito não está previamente dado; ele é socialmente construído. O universo de cada tipo de pessoa é diferente. 

Matar crianças é contra o Direito? Há tribos indígenas que praticam infanticídio quando nascem gêmeos. Isso ainda acontece no Brasil com a proteção da FUNAI. Sobre isso há o caso Hakani ². Em casos desses, não há sequer inquérito.

Para entender como o entendimento da sociedade muda com relação aos mesmos fatos, podemos ler a obra“A Fabricação da Loucura” do psiquiatra Thomas Szasz. Ele mostra os comportamentos que já foram considerados doentios. Homossexualidade e masturbação, por exemplo.

Enfim, o que é crime ou o que não é depende de como reagimos. Com um pouco de boa vontade, podemos dizer que os fenômenos jurídicos também são fenômenos estéticos.
 

Conceito analítico de crime: como fato típico, ilícito, culpável: também depende de interpretação. Exemplo: matar a própria esposa porque ela está tendo um caso. É crime ou não? Antigamente, não, porque alegava-se legítima defesa da honra. Se o marido traído não o fizesse, alguém iria fazê-lo. No Tribunal do Júri, o marido que se vingava da esposa costumava ser absolvido por 7x0, inclusive com mulheres no corpo de jurados. Mulheres são tão ou mais machistas que os homens, diz o professor.

Nossos preconceitos também são fundamentais para a definição dos casos concretos. Não no sentido pejorativo. Eles condicionam nossas decisões. A pessoa do intérprete está coimplicada no processo interpretativo. A interpretação varia conforme sua maturidade, coragem, e sensibilidade. Em última análise, a interpretação é uma fotografia da alma do interprete. Veja o caso do jogador Richarlyson, que se sentiu constrangido ao ser chamado de homossexual. O juiz disse, ao indeferir a ação: “ele que crie sua própria federação.”

Possibilidades de interpretação

O Direito é socialmente construído... Não há uma única possibilidade de interpretação, mas várias possibilidades, sempre. Um único caso pode permitir várias interpretações. Quantidade de drogas com um sujeito que foi preso é um caso que pode gerar inúmeras interpretações. Porte para consumo: invoca-se a insignificância, pede-se a pena mínima, até mesmo pena abaixo da mínima; alega-se inconstitucionalidade, pois trata-se de uma norma penal em branco, que remete a uma outra norma que não é lei em sentido estrito, mas portaria, ou então o sujeito pode ser condenado a 25 anos de reclusão. Há autores que dizem que as possibilidades de interpretação são infinitas, Umberto Eco por exemplo. Jacques Derrida também. Qual é a interpretação usada, se há várias? Aquela que com que o juiz se sentir mais confortável. Em geral, a que segue a linha do Tribunal.

Toda interpretação é um ato de verdade e vontade. Interpretar é argumentar corretamente um sistema aberto.
 

Limites da interpretação

Significa que qualquer interpretação é possível, só porque há várias disponíveis? Pode hoje um juiz dizer que mulher não pode ser vitima de estupro do próprio marido? Ainda sim. O Direito é feito da interpretação, e não o contrário. Não há regra que dispense interpretação. Até mesmo parar em vaga especial para idosos: só o motorista que precisa ter 60 anos ou mais? Ou então plantar bananeira na grama com plaquinha dizendo “não pise na grama”. Por fim, o que é constranger?

Existem limites à interpretação dados pela tradição moral, religiosa, jurídica, jurisprudência, precedentes, e uma série de outras fontes. Mas uma coisa é certa: os limites de uma interpretação são dados por outra interpretação. Ao dizer que determinada coisa é um absurdo, então isso também é uma interpretação. A interpretação que prevalece é daquele que tem poder constituído pra dizer qual é a certa.

Quem tem o poder diz o que é o Direito.
 

(Ir)relevância dos métodos de interpretação

Quando um juiz decide um caso, ele não recorre a nenhum método de interpretação. Se o juiz usar algum método, será para justificar alguma decisão já tomada em um caso passado independente do método.

Gustav Radbruch dizia: “o método só se escolhe depois que o resultado já foi escolhido.”

Não se usa um método para eleger um método. O juiz é senhor do método, se ele eventualmente quiser utilizar um. Essa idéia foi trazida das ciências naturais, onde há a impessoalidade do método, que deve levar sempre ao mesmo resultado. A universalidade dos métodos não se aplica ao Direito porque a pessoa do método está implicada no processo hermenêutico.

O Direito e a lei dependem da interpretação, não o contrario. A interpretação é a forma de produção do Direito.


  1. Conforme a Lei de Introdução ao Código Civil, exceto que esta também cita os costumes. Não tenho conhecimento ainda se casos de Direito Penal podem ser resolvidos pelos costumes.
  2. Fonte: http://www.hakani.org/pt/amale_pt.asp