Estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular do direito
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Estado de necessidade: introdução
O estado de necessidade, em tese, pode ser aplicado a qualquer crime. Mas, se analisarmos a jurisprudência, veremos que os casos mais freqüentes são de aplicação a crimes patrimoniais, como furto e sonegação. Empresários falidos alegam que não pagaram tributos em razão do estado de necessidade, já que existe uma prioridade de se pagar os funcionários antes dos impostos. Até homicídio pode admitir. Às vezes rechaça-se o estado de necessidade e alega-se a inexigibilidade de conduta diversa como excludente de culpabilidade.
Pode
decorrer de ação humana. Digamos
alguém toca fogo num navio ou em uma casa, e, para não morrer, deve-se
lesionar
um bem jurídico alheio. Também em razão de fenômenos da Natureza,
calamidades e
ações de animais. A distinção entre estado de necessidade e legítima
defesa é
que, nela, necessariamente, há uma agressão humana
injusta, ilegal, proibida e, para se rechaçá-la, o sujeito
tem que usar
moderadamente os meios necessários para a proteção de direito próprio
ou
alheio. Já no estado de necessidade não há agressão humana e ilegal; há
uma
situação de colisão de interesses entre
titulares de direitos ou de bens jurídicos. O que pode
acontecer no estado
de necessidade, quando houver ação humana, é que várias pessoas se
encontram
numa situação em que é necessário lesar os outros para se salvar. Num
caso de
naufrágio, por exemplo, tirar colete de uma criança para usá-lo,
deixando-a
morrer. Por isso é perfeitamente possível estado de necessidade contra
estado
de necessidade, inclusive real: o pai da criança poderá matar o sujeito
que removera
seu colete para devolvê-la. Mais comum ainda é a ocorrência de estado
de
necessidade real contra estado de necessidade putativo.
Há estado de necessidade quando o agente, para proteção de direito próprio ou alheio, em razão de uma situação de perigo atual ou inevitável, lesiona ou sacrifica um bem jurídico alheio. Aqui é perigo; enquanto que na legítima defesa é agressão injusta. Lembrando que não cabe legítima defesa contra estado de necessidade real, pois necessariamente alguém deve estar atuando contrariamente ao direito.
Definição adotada pelo Código Penal
Há o estado de necessidade real e o putativo.
Como na história narrada no livro O Caso dos Exploradores de Caverna, alguém pode se encontrar numa situação real de estado de necessidade e, para sobreviver, deve-se comer os que já morreram. Então, não haverá crime de vilipêndio a cadáver. Não deixe de ler o livro!
Também
há a situação putativa. O
sujeito imagina estar em estado de necessidade, mas não está. A única
excludente de ilicitude é o estado de necessidade real; o tipo de
excludente do
estado de necessidade putativo ainda está imerso em discussões
doutrinárias, o
professor mesmo não tem certeza. Pode ser sui
generis, de tipicidade ou de culpabilidade.
Primeiro: deve haver uma situação de perigo atual real. Na legítima defesa se fala de agressão atual ou iminente. Aqui fala-se apenas em perigo atual. Mas o dano pode ser iminente. A atualidade diz respeito ao perigo, não ao dano. Novamente olhando um caso de naufrágio, se o perigo é passado (já chegou a guarda costeira), então não há mais estado de necessidade, pois o perigo já cessou. O perigo passado não permite estado de necessidade, mas em alguns casos pode-se alegar estado de necessidade putativo. Perigo futuro também não permite.
Segundo: perigo inevitável. Ou seja, não há como sair dessa situação senão sacrificando o bem jurídico alheio. Na verdade, não é bem um perigo inevitável, mas o observe o código. Se alguém puder nadar tranquilamente até a costa, não se pode alegar estado de necessidade. Se o sujeito possui colete salva-vidas, também não poderá invocá-lo.
Terceiro: inexigibilidade do sacrifício do bem ameaçado. Também chamado de inevitabilidade. Significa que, naquela situação, ele não poderia sobreviver senão sacrificando o bem jurídico. Logo, não cabe invocar estado de necessidade inclusive se o bem jurídico que se quer proteger é menos importante do que aquele sacrificado. É o requisito da proporcionalidade. O sujeito, para proteger seu cão, mata alguém para pegar o colete salva-vidas. Entre cão e pessoa humana, deve-se salvar a pessoa.
Quarto: não estar em situação de garante. Não pode invocar o estado de necessidade quem tem o dever legal de enfrentar a situação de perigo. Nem policial nem bombeiro podem se omitir. Mas esses profissionais não têm obrigação de atuar como heróis ou santos; então, mesmo eles, em algumas situações especiais, poderão invocar estado de necessidade, logo, a proibição não é absoluta. Por exemplo, muitos bombeiros morreram depois do ataque ao World Trade Center, e muitos deixaram de entrar porque viram que não poderiam salvar mais ninguém mesmo. Obs: Pai e mãe são garantes em relação aos filhos.
Quinto: não ter sido
o próprio
agente o provocador ou causador da situação de perigo. Ou seja, se
alguém, para
receber um seguro sobre o patrimônio, coloca fogo na casa, e, em meio
ao fogo,
precisa se evadir do local em vez de socorrer uma pessoa que está
dormindo, em
tese praticando o crime de omissão de socorro, o incendiário não poderá
alegar
estado de necessidade para evitar a acusação pela omissão. Também há
discussão
sobre aquele que provocar a situação dolosa ou culposamente. Admite-se
que quem
provoca dolosamente não pode invocar. Mas o que provoca um incêndio
culposamente está envolto em discussões doutrinárias. Vários autores
sustentam
que a maioria das situações é provocada por ação humana decorrente de
negligência, imperícia ou imprudência, portanto não se afasta a
possibilidade
de se invocar o estado de necessidade. Ainda é um assunto
controvertido. Leia o
livro de Alberto Silva Franco: Código
Penal Interpretado na Doutrina e na Jurisprudência. O autor
usa muito a
doutrina estrangeira. Trata de todo o código, não apenas a parte geral,
mas também
a especial.
Observações sobre os requisitos
Resumo dos requisitos do estado de necessidade
Como
visto, ninguém pode invocar
estado de necessidade para proteger bem jurídico de menor importância
com o sacrifício
de bem jurídico de maior importância. A lei prevê a redução de 1/3 a
2/3 para
pessoas que não podem ser favorecidas com estado de necessidade, mas
que
estavam numa situação semelhante a uma em que o estado de necessidade
poderia
ser invocado. Por conta disso, o código admite uma redução de pena.
Estrito cumprimento do dever legal
Em relação ao estrito cumprimento do dever legal, discute-se se ele é um excludente de ilicitude ou um excludente de tipicidade. Entende-se que o que pratica algo em estrito cumprimento do dever legal não pratica crimes justamente porque era o dever legal, logo, em conformidade com o Direito. Então, todas essas pessoas, se não fizerem o que tão obrigadas a fazer, estariam cometendo um crime de prevaricação ou uma infração administrativa.
Prevaricação Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. Art. 319-A. Deixar o Diretor de Penitenciária e/ou agente público, de cumprir seu dever de vedar ao preso o acesso a aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo: Pena: detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano. |
Então, se é dever do sujeito praticar essas ações, elas não podem ser consideradas sequer típicas. Por uma razão tautológica, não seria uma excludente de ilicitude, mas da própria tipicidade. Mas, no Código Penal, o estrito cumprimento do dever legal está classificado como excludente de ilicitude. A doutrina questiona essa classificação adotada pelo Código.
Quem pode, em princípio, invocar o estrito cumprimento do dever legal? Basicamente funcionário público no cumprimento do serviço. Também particulares que estão a serviço do poder público, como mesários em época de eleição.
É muito comum se perguntar: o policial que mata criminosos está no estrito cumprimento do dever legal? Não, pois não há, entre nós, o dever legal de matar. Isso na verdade se encaixa na descrição de grupos de extermínio. Policial que diz ter matado os criminosos durante um assalto em geral não está em estrito cumprimento do dever legal, talvez em legítima defesa.
Carrascos,
nos países com pena de
morte: também estão em estrito cumprimento do dever legal, logo não
podem ser
processados por homicídio.
O estrito cumprimento do dever legal também pode ser real ou putativo.
Requisitos:
Observações
sobre o estrito
cumprimento do dever legal
Pode ocorrer de policiais prenderem pessoas, que reagem e, para não morrer, matam. Para não morrer, tiveram que atirar para matar. Além do estrito cumprimento do dever legal, há a situação de legítima defesa. Então, é possível, em uma mesma situação, alegar mais de uma excludente de ilicitude: é possível invocar legítima defesa no ato do cumprimento do estrito cumprimento do dever legal.
Sentinelas
de presídios que
atiram nos presos quando iniciam uma fuga: podem os atiradores alegar
estrito cumprimento
do dever legal? Não, pois, como já dito, não há o dever legal de matar.
E,
ainda que houvesse, se exigiria o requisito da moderação e
proporcionalidade.
Há quem diga inclusive que o preso tem o direito de fugir, e contra o
exercício
desse direito não cabe alegar essa excludente. Poderia o sentinela
alegar
legítima defesa? Em tese sim, mas não há proporcionalidade entre ação e
reação.
Se possível, deve-se mirar no pé dos fugitivos. Um caso desses, se for
a júri,
pode dar qualquer resultado.
Também chamado de exercício regular da profissão. A distinção entre este e o anterior é que lá há um dever legal imposto a funcionário público. No exercício regular do direito, o sujeito exerce, em sua faculdade, sem o dever legal de agir. Qualquer pessoa que, exercendo normalmente seu direito, moderadamente lesione bem jurídico alheio, pode alegar exercício regular do direito. Por exemplo: pais em relação aos filhos, com castigos moderados. Os pais às vezes agridem verbalmente, o que em tese haveria atentado à honra. Mas pode-se invocar o exercício regular do direito neste caso. Quem prende alguém em flagrante sendo particular não pode alegar estrito cumprimento do dever legal, mas exercício regular do direito. Logo, o pressuposto do exercício regular do direito é, obviamente, a existência de um direito. Segundo, o exercício regular e moderado desse direito. No passado, poderiam os senhores de engenho bater nos escravos e deixá-los com fome. Seria uma situação de exercício regular do direito. Logo, o exercício regular do direito varia no espaço e no tempo.