Direito Penal

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Conflito aparente de normas penais


Tópicos:

  1. Conclusão da aula passada: analogia e interpretação analógica
  2. Conflito aparente de normas: introdução
  3. Distinções
  4. Concursos de crimes
  5. Importância do dolo
  6. Princípios aplicáveis

Conclusão da aula passada: analogia e interpretação analógica

Os autores fazem essa distinção. É comum também ser cobrada em provas. Ocorre analogia quando a norma não prevê uma determinada situação e o juiz tem que recorrer à analogia. É usada quando há uma lacuna legal ou omissão legal. Por exemplo: o Código Penal prevê que, no caso de gravidez resultante de estupro, a mulher que abortar será isenta de pena. É uma hipótese de autorização legal de aborto, em caso de estupro. Art. 128:

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:

Aborto necessário

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Existe também um crime com a mesma pena do estupro: atentado violento ao pudor. Art. 214:¹

Atentado violento ao pudor

Art. 214 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal:

Pena - reclusão, de seis a dez anos.

Pode ocorrer, ainda que mais dificilmente, de a mulher engravidar não de estupro, mas de atentado violento ao pudor. O crime e os tipos penais são diferentes, mas é o mesmo tipo de violência (contra a liberdade sexual) com o mesmo resultado. É uma situação muito parecida e análoga. A jurisprudência e a doutrina também admitem, em caso de atentado violento ao pudor, que a mulher possa abortar. Analogia é admissível em Direito Penal desde que se trate de analogia in bonam partem: a analogia para favorecer o réu. Não se admite a analogia in malam partem, ou seja, para prejudicar o réu. O sujeito de crime seria não o estuprador, mas a mulher que, em tese, responderia pelo crime de aborto.

É também possível considerar o assedio sexual algo como quase estupro.

Outro exemplo: o Código Penal prevê a remição por trabalho. O preso que está trabalhando tem o direito de diminuir sua pena em um dia para cada três trabalhados. Com a construção do entendimento auxiliado pela analogia, foi editada a Súmula 341 do STJ: o estudo também enseja a remição. É uma construção jurisprudencial, uma analogia in bonan partem.

Interpretação analógica: quando a lei expressamente admite a possibilidade de o juiz se valer de recursos analógicos. A própria lacuna é conhecida pelo legislador que, de alguma forma, oferece alternativas. Por exemplo: "embriaguez por álcool ou substância de efeito análogo"; ou "traição, emboscada, ou outro recurso que dificultou a defesa da vitima" Encontramos a interpretação analógica quando o legislador não tem como enumerar tudo que é possível. Um autor que fala sobre isso é Antônio Castanheira Neves. 

Analogia expressa e analogia tácita: tudo é analogia, e essa distinção é falsa. A própria interpretação exige uma espécie de analogia, pois cada caso é um caso. Apenas as variáveis de tempo e espaço tornam cada ação humana singularíssima, portanto não há um caso idêntico a outro. Matar uma criança, um velho, um adulto, um pataxó, dolosamente, culposamente, tudo isso é variável. Matar sendo primário ou reincidente. Os casos são mais ou menos semelhantes. Ao fazer um juízo de valor, recorremos à nossa própria experiência sobre aquilo.
 

Conflito aparente de normas

O conflito aparente de normas também é chamado de unidade de crimes ou concurso de normas. Mas a expressão mais comum é mesmo conflito aparente de normas. O conflito aparente de normas ou de leis é cada vez mais freqüente e mais comum em nossa sociedade. Não raro é difícil resolver esse problema, que necessariamente demanda interpretação. O que é o conflito aparente de normas? É um conflito que ocorre quando, sobre uma dada situação, com um mesmo crime, mesmo fato, incidem várias normas penais. Quando isso ocorre, podemos aplicar todas ao mesmo tempo? Não, pois haveria a violação de um princípio: o da proporcionalidade e mais exatamente o princípio ne bis in idem, que veda a múltipla penalização de um mesmo comportamento. Também relaciona-se com o princípio da legalidade. Sobre a conduta de matar alguém, pelo Código Penal, podem incidir várias normas, em tese: homicídio (art. 121), infanticídio (art. 123), aborto (art. 124), latrocínio (conforme o § 3º, parte final, do art. 157),  entre outros fatos.

O conflito aparente de normas é cada vez mais freqüente porque a cada dia há novas normas definindo certas condutas como criminosas.
 

Distinções


Concursos de crimes

Material: ocorre quando, mediante varias ações, o sujeito pratica vários crimes. Roubo de um veículo, atropelamento de um pedestre, atentado violento ao pudor. Não há incompatibilidade entre concurso material e conflito aparente de normas. Art. 69:

Concurso material

Art. 69 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela.

§ 1º - Na hipótese deste artigo, quando ao agente tiver sido aplicada pena privativa de liberdade, não suspensa, por um dos crimes, para os demais será incabível a substituição de que trata o art. 44 deste Código.

§ 2º - Quando forem aplicadas penas restritivas de direitos, o condenado cumprirá simultaneamente as que forem compatíveis entre si e sucessivamente as demais.

Formal: há concurso formal quando, mediante uma única ação, o sujeito pratica dois ou mais crimes. Ex: dirigindo embriagado, o agente invade um local de passageiros, atropela cinco pessoas. Atirar em uma pessoa e acertar várias: haverá uma única pena. A mais grave das penas combinadas, com aumento, se forem diferentes os crimes. Atirar em mulher grávida: idem. Consta no art. 70:

Concurso formal

Art. 70 - Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.

Parágrafo único - Não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do art. 69 deste Código.

Continuado: é uma variável do concurso material: no crime continuado, o sujeito, com varias ações ou omissões, comete dois ou mais crimes. A diferença é: o legislador trata diferentemente; dá o mesmo tratamento deste que dá ao concurso formal: uma única pena com aumento. Art. 71:

Crime continuado

Art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.

Parágrafo único - Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.

Caso do maníaco do parque: a defesa alegou concurso continuado. O argumento era que local de execução e modus operandi eram muito semelhantes. A tese não foi aceita.
A diferenciação entre concurso continuado e concurso material é um dos mais vagos temas do Direito. Quando entende-se que não houve concurso material, adota-se o concurso continuado. É o princípio da proporcionalidade. Houve um caso em que hackers que invadiram um Internet Banking e furtaram dinheiro de múltiplas contas foram processados e receberam 15 anos de pena de reclusão porque se entendeu que houve concurso material. A defesa recorreu ao STJ, que só então entendeu que foi um concurso continuado. Este é um ocorrido que reforça a tese do professor de que o Direito não está previamente dado; ele é construído a todo tempo. ²
 

Importância do dolo

Como saberemos resolver os problemas de conflito aparente de normas, como a diferenciação entre latrocínio e homicídio? A doutrina propõe princípios para isso. Mas um fator importantíssimo que é o dolo do agente. É, na opinião do professor, o que há de mais importante: a intenção do agente. Se houve, então sim, é doloso. Se não, é culposo. Primeiro, é identificar o elemento subjetivo: dolo ou culpa. Por exemplo: digamos que alguém queira torturar para obter uma confissão. A violência que um delegado usou num suspeito resultou em sua morte. Qual era a intenção? Torturar; então o dolo era de torturar. Tortura + resultado morte = tortura qualificada: Lei 9455/97, art. 1º, § 3º:

Art. 1º Constitui crime de tortura:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena - reclusão, de dois a oito anos.

[...]

§ 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.

E se a intenção do sujeito não era torturar, mas matar, desde o início? Matar aos pouquinhos, ou matar mediante tortura: o dolo é de matar, ou seja, homicídio. Homicídio + tortura = homicídio qualificado. Então entra o Código Penal, art. 121, § 2º:

Homicídio qualificado

§ 2° Se o homicídio é cometido:

[...]

III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;

[...]

Pena - reclusão, de doze a trinta anos.

Há uma outra situação, parecida, entretanto: o delegado deseja apenas torturar o suspeito. Ele ontem a confissão. Alguém presencia o interrogatório, em seguida denuncia o delegado ao Ministério Público. Ele obviamente não gosta disso e mata o denunciante. Há, então, um concurso material de crimes: Tortura e homicídio. Mas são dois crimes autônomos, previstos em leis diferentes, a tortura simples e o homicídio simples. Se um deles for qualificado, então há bis in idem: tortura seguida de morte é tortura qualificada; homicídio mediante tortura é homicídio qualificado. Ambas as formas qualificadas já tem pena majorada em função disso.

O dolo é fundamental para se saber qual é a lei que incidirá sobre o caso.
 

Princípios aplicáveis

São três: o da especialidade, o da consunção ou absorção e o da subsidiariedade.

  1. Princípio da especialidade: Jakobs diz: todos os demais princípios são uma dimensão do princípio da especialidade. Devemos recorrer aos demais apenas em caráter subsidiário. O que é: há relação de especialidade e generalidade quando há uma norma geral que descreve o tipo penal de uma forma genérica e há um outro tipo penal que descreve aquela mesma conduta de uma forma mais especifica. Ambas tratando o mesmo crime, a mesma conduta. Homicídio: norma geral. Mas no mesmo Código Penal temos uma norma especial: o infanticídio: "matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após": estas são especializantes. Quando isso acontecer, a norma especial prevalecerá sempre sobre a norma geral. Lex specialialis derogat legi generali. Outro exemplo: estelionato “geral”, previsto no Código Penal, e estelionato contra o Sistema Financeiro Nacional. Falsificar documento para sonegar tributos: idem. Mesmo dentro do Código Penal há tipos especiais e gerais. Toda violação à norma especial é também violação à norma geral, mas não vice-versa. A norma geral contém a norma especial.
  2. Princípio da consunção ou absorção: aplicado quando uma norma mais ampla absorve ou tem na sua descrição a menos ampla, ou quando há uma relação entre continente e conteúdo. O homicídio em relação às lesões corporais: o homicídio já compreende as lesões corporais. Extorsão mediante seqüestro já contém o seqüestro. Roubo compreende o furto. Latrocínio compreende o roubo. É possível ocorrer o contrario, ou seja, o menos grave absorver o mais grave? Em tese, não; mas, na pratica, sim: muitas vezes o legislador descreve, por absoluta falta de técnica, um crime menos grave com pena mais severa que o mais grave.
    Súmula 17 do STJ: o estelionato contém a fraude.
  3. Princípio da subsidiaridade: aplicado quando uma conduta se enquadra em mais de um tipo penal, sendo um geral e outro específico, ou melhor, quando o primeiro abrange o segundo. O princípio da subsidiariedade determina que o todo prevalece sobre a parte, ou seja, determina a aplicação da norma primária, que é mais abrangente, em detrimento da subsidiária, que é menos abrangente, devendo esta ser aplicada somente quando a primária não puder ser aplicada. É uma mesma violação a um bem jurídico, mas o Código estabelece gradações. O subsidiário só é aplicado quando não for possível a aplicação do tipo principal. Os tipos tentados são subsidiários em relação aos consumados. Os crimes de perigo são subsidiários em relação aos de dano. A subsidiaridade pode ser expressa ou tácita. Será expressa quando determinada conduta só for crime se não for crime mais grave.

  4. Perigo para a vida ou saúde de outrem

    Art. 132 - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:

    Pena - detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.

    A conduta de expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente só será crime se não constituir crime mais grave. O juiz poderá entender que foi um homicídio tentado. Subsidiariedade tácita: não há nenhuma lei prevista, mas o entendimento de subsidiariedade decorre de interpretação. O assedio sexual é um tipo subsidiário em relação ao estupro. Se chegar a ocorrer o estupro, então não há assédio. Só se aplica o subsidiário quando não houver ocorrido o tipo principal. Injuria é acessório em relação à calunia. As contravenções são subsidiarias em relação aos crimes. É uma subsidiariedade tácita.

  1. Hoje, com a Lei 12015/2009, não existe mais o tipo penal do atentado violento ao pudor, que foi absorvido pelo crime de estupro, mas o exemplo continua válido para ilustrar a analogia.
  2. Há também uma terceira distinção, mas o professor não se recorda agora.