Vamos continuar a ver os elementos do crime. A tipicidade já sabemos o que é: conformidade do fato praticado com a norma penal incriminadora. Ilicitude é a contrariedade do fato ao ordenamento jurídico como um todo. Vamos ver, hoje, a culpabilidade.
Basicamente, culpabilidade = exibilidade. Ou seja, alguém é culpável quando, num dado contexto, se entende que era perfeitamente possível e exigível um comportamento diverso. O sujeito deveria ter agido conforme o Direito, se abstido de roubar, seqüestrar, matar, etc. O ser humano é livre e racional, portanto poderia agir razoavelmente.
Não haverá culpabilidade quando entendermos que não era exigível o comportamento diverso. Doente mental, não conhecimento da proibição, etc.
Mas isso é bem arbitrário. Para nós, que analisamos de fora, é um pensamento valido. É complicado, entretanto, nos colocarmos no lugar daquele que está no epicentro da situação. Portanto, mais que a possibilidade, deve haver um dever de agir de forma diversa.
Ler o texto: Deus e o Direito, que está no site do professor. O autor parte do pressuposto que não é exigível o comportamento diverso. Fala de Adão e Eva.
É muito fácil, portanto, falar que determinado sujeito não deve ter relações sexuais com crianças. No entanto, para quem vive na situação de permanente desejo, o controle é muito difícil. Dizem os deterministas que o homem não é dotado de livre arbítrio, porém em geral não se adota esse posicionamento; entende-se que o homem é capaz de agir de outra forma.
Alguns autores, por exemplo Damásio, Delmanto e Mirabete, defendem que a culpabilidade não pertence ao conceito de crime, não é um elemento dele, mas um pressuposto da pena. Tanto é assim que, se o sujeito é inculpável, ele pratica o fato criminoso, embora não seja culpável; são submetidos a medidas de segurança e não a pena. Só no Brasil defendem isso; hoje esse entendimento é minoritário. Então, entende-se que a culpabilidade é sim elemento do fato criminoso. Se faltar a culpabilidade, não há crime. Exatamente por isso, a exceção da culpabilidade leva à absolvição.
A medida de segurança é aplicada aos loucos em razão de política criminal, pois entendeu-se que não se deve “enclausurá-los em uma prisão”. Entretanto, o hospital de tratamento e custódia funciona como uma prisão da mesma forma. E mais, quem é condenado a pena tem direito a indulto, progressão, anistia, etc., o que aquele que foi submetido a medida de segurança não terá.
O conceito de doença mental também é socialmente construído.
Desses vários, o que nos interessa é o específico como o elemento do fato-crime. Ouviremos falar muito em princípio da culpabilidade. É uma coisa já vista no início do curso: um postulado político-criminal, também conhecido como pessoalidade da pena ou responsabilidade penal subjetiva. O sujeito só pode responder penalmente por ato próprio. Portanto, só o autor, co-autor ou participe que respondem. Na época em que vigorava o Livro V das Ordenações Filipinas, isso era possível, como ocorreu com Tiradentes e seus descendentes.
Outro significado é como princípio da não-culpabilidade ou princípio da presunção de inocência. É um princípio de caráter processual penal. Cabe ao MP provar que o sujeito praticou um fato típico, ilícito e culpável. A culpa penal só ocorre quando houver a sentença transitada em julgado.
Culpabilidade também é sinônimo de crime culposo. É um crime praticado por negligência, imperícia ou imprudência. Ocorre quando há uma criação de risco proibido e há a realização do resultado decorrente da prática desse risco. Existe também nos crimes dolosos, não apenas nos culposos, daí a impropriedade dessa acepção. Culpabilidade deve ser avaliada nos dois tipos de crimes. Não confundam, pois.
Outro significado é de acordo com o art. 59 do Código Penal:
CAPÍTULO
III
DA APLICAÇÃO DA PENA Fixação da pena Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I - as penas aplicáveis dentre as cominadas; II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível |
O artigo fala sobre as circunstâncias judiciais para a aplicação da pena. Culpabilidade é exigibilidade, enquanto inculpabilidade é inexigibilidade. Num crime de seqüestro, por exemplo, o grau de culpabilidade varia de acordo com as atribuições de cada um dos seqüestradores, do cabeça até a faxineira do cativeiro. Existem, portanto, graus diversos de culpabilidade. Agora, é uma circunstância judicial que será levada em conta para a aplicação da pena. Os mais culpáveis sofrerão maior pena, e vice-versa. A culpabilidade que nos interessa é pressuposto da condenação. Se o sujeito é culpável, ele deve ser condenado. Se não, absolve-se. É o artigo no qual o juiz se baseia. Ao observar essas circunstâncias, é comum o juiz incorrer em erro. “Considerando que era exigível o comportamento diverso, aumento a pena em X anos”. Isto é um bis in idem, pois outro indivíduo, que tenha praticado o mesmo crime, porém sob circunstâncias diferentes, poderia vir a receber a metade dessa pena, portanto o primeiro sujeito estaria, em tese, pagando duas vezes. É um juízo de constatação ou juízo qualitativo. Depois, faz-se o juízo quantitativo. Quanto mais culpável, maior a pena.
Quinto significado: alguns autores usam a palavra culpabilidade como co-culpabilidade. O termo está inclusive em alguns Códigos Penais latino-americanos. Zaffaroni, Cirino e outros.
Algumas pessoas vivem uma situação de tal modo diversas que sua pena deveria ser a menor possível, especialmente em relação a crimes patrimoniais. Então há uma co-culpabilidade tendo o Estado na outra ponta, ou até mesmo o cenário internacional. É caso de punição, não absolvição, mas que, segundo tais autores, deve ser um fator atenuante, porém somente quando houver relação direta entre o crime e a situação. Um sujeito marginalizado, que de vez em quando pratique furtos em razão do estado de necessidade, não pode estuprar, pois não há relação entre sua condição adversa e o fato praticado. A co-culpabilidade se assemelha ao estado de necessidade, mas é subsidiária em relação a ele. Ou seja, primeiro, avalia-se se é possível inferir que houve estado de necessidade real na conduta do sujeito. Se não, invoca-se a co-culpabilidade de forma subsidiária. Também pode ser alegada em crimes de sonegação.
O que nos interessa não é nenhum desses. Seria o sexto: culpabilidade enquanto elemento do fato criminoso. O fato é típico, ilícito e culpável. O que é a culpabilidade? É um juízo de reprovação que incide sobre o autor do fato típico e ilícito por se entender que era exigível concreta e razoavelmente um comportamento diverso. O juiz condena porque o sujeito é culpável. Ele será inculpável quando houver, em seu favor, alguma excludente de culpabilidade. Quais são? O código prevê. Em geral, o fato típico e ilícito também é culpável, exceto quando há:
Etc.
Então, o sujeito é culpável em princípio, exceto se ele estiver em uma dessas situações. Em geral não há essas excludentes em seu favor.
Os autores discutem se é possível o juiz adotar excludentes que o Código Penal não prevê. Roxin diz que não. Se o Código não adota, o juiz não pode admitir. Para ele e outros autores estrangeiros, as excludentes de culpabilidade são taxativas, e não meramente exemplificativas. Não é o mesmo que acontece para com a jurisprudência brasileira. É possível adotar, aqui, excludentes de culpabilidade que não tenham previsão no Código. Se não dá para alegar legítima defesa, usa-se alguma outra, a inexigibilidade de conduta diversa, que é, por sinal, um nome generalíssimo. É uma invenção doutrinária e jurisprudencial. Estado de necessidade alegado diante de uma acusação de sonegação tributária porque a empresa está falida e, subsidiariamente, inexigibilidade de conduta diversa dos administradores, que deveriam, primeiramente, pagar os funcionários.
Há
uma discussão se é possível alegar
excludentes imaginários,
como ocorre com a legítima defesa. As discriminantes putativas em
relação às
causas de justificação têm previsão no código. É possível alegar
excludentes de
culpabilidade imaginárias? Damásio diz que sim, que podemos invocar
excludentes
putativas de culpabilidade. O
professor
concorda com a possibilidade, especialmente numa ocasião de coação
moral irresistível
putativa.
Evolução do conceito de culpabilidade
O conceito mais antigo vem do causalismo, também conhecido como naturalismo, que pretende trazer para o Direito a certeza e o rigor próprio das ciências naturais. O principal autor é Franz Von Liszt.
Culpabilidade é a relação psíquica entre o autor e seu fato. É o primeiro conceito, que era, portanto, psicológico, que é dado pelo causalismo. A culpabilidade, assim, compreende o dolo e a culpa. Essa relação psicológica se realiza através do dolo ou culpa. O dolo é entendido como dolus malus (aquele que compreende a consciência da ilicitude) por Liszt. Se faltar, não há dolo. É uma idéia que está sendo retomada hoje em dia. É o conceito clássico.
Ainda no causalismo, alguns autores posteriores a Liszt começaram a discutir e entenderam o seguinte: a culpabilidade é mesmo a relação entre o autor e seu fato. Mas, por vezes, o fato não é culpável. Logo, a culpabilidade não se exaure no dolo e na culpa. Então, um novo requisito foi adicionado, que é o juízo normativo de reprovação. Também chamado de reprovabilidade, censurabilidade, reprochabilidade. Os autores passaram a entender que o conceito psicológico era válido, porém não suficiente, então entrou na moda doutrinária o conceito psicológico-normativo. É o conceito psicológico acrescido da reprovabilidade.
Mas, por volta da década de 30 do século XX, Hans Welzel diz que toda ação humana é também uma ação final. Logo, o sujeito que quer matar já decidiu a forma, a vítima, como ocultar, como seqüestrar, etc. É o finalismo. O dolo e a culpa, que faziam parte da culpabilidade, foram, então, deslocados para a tipicidade. A culpabilidade passa a ser um conceito relacionado à imputabilidade, enquanto o dolo, culpa e reprovabilidade passam para um conceito puramente normativo da culpabilidade.
Resumo: o causalismo afirma um conceito psicológico.
Depois, ainda no causalismo, alguns autores divergiram e adotaram o conceito psicológico-normativo. Não basta que exista essa relação entre e o autor e o fato. Por exemplo se houve coação moral irresistível.
Superado o causalismo com o finalismo, abandona-se o fator psicológico, que vai para a tipicidade. Ao se adotar o dolo, adota-se um conceito natural de dolo, com ou sem a consciência da ilicitude. A consciência da ilicitude continua na culpabilidade, mas sem fazer parte do conceito dela. Com o finalismo passou-se a adotar um conceito normativo puro da culpabilidade. É agora um juízo de reprovação sobre um fato típico e ilícito.
O conceito de dolus malus evolui para dolo natural. A consciência da ilicitude nada tem a ver com o dolo.
Hoje estamos no conceito do funcionalismo. Surge por volta de 1970, com Roxin. O que há em comum entre causalismo e finalismo? Acredita-se que é possível construir uma ciência do Direito Penal neutra em relação à política. Os juízes devem fazer um juízo lógico de subsunção de um fato a um tipo penal, sem submeter a uma conveniência política. Roxin diz que decisões jurídicas são decisões políticas. Mudando as pessoas, muda-se a forma de interpretação. O Direito é interpretação, conforme Nietzsche. Roxin diz que a dogmática penal deve estar politicamente orientada, ou seja, os juízes devem sempre se filiar a uma determinada concepção política. Até mesmo se ele adotar a postura de seguir a lei cegamente, ele adota uma postura política mesmo assim, qual seja, a do legislador. Por que isso repercute sobre o conceito de culpabilidade? O que está em discussão hoje são duas grandes vertentes: a de Roxin e Jakobs. Roxin diz que a culpabilidade é o limite à intervenção do Estado, portanto tem uma função garantista. Serve para proteger o indivíduo de possíveis abusos do poder estatal. Por mais que interesse ao Estado aplicar uma pena muito alta a uma determinada pessoa por ser perigoso, isso não deve acontecer porque a pena deve ser medida de acordo com a culpabilidade do agente. E mais: a culpa deve ser conforme a culpabilidade. Quanto maior a culpabilidade, maior e pena; quanto menor a culpabilidade, menor a pena. Poderá haver situações em que, apesar de culpável, a pena não seja necessária. Então, Roxin passa a trabalhar com o conceito de responsabilidade. Seria a culpabilidade + necessidade preventiva. Logo, o sujeito deve ser absolvido, embora culpável. O autor do crime sofre tanto ou mais que a vítima. Como Christiane Torloni que matou o filho ao dar à ré no carro. Não deveria ser considerado responsável em razão do sofrimento que a própria autora sofreu.
O que importa é: para Roxin, culpabilidade é um limite para a intervenção do estado.
Jakobs: um autor que não se importa muito com a liberdade individual. O que importa é o sistema, não as pessoas. Para ele, a culpabilidade é um obstáculo à prevenção de crimes. Em alguns casos, portanto, a culpabilidade deveria inclusive ser abolida. A partir de 2001, quando houve o atentado ao World Trade Center, ele passou a defender o “Direito Penal do Inimigo”, que dizia: há pessoas que atuam como inimigos do Estado e portanto não deveriam ter garantias. Então, dever-se-ia trabalhar com dois Direitos Penais: o Direito Penal Cidadão e o Direito Penal do Inimigo. A eficácia do controle social sobre o crime dispensaria o recurso à idéia de culpabilidade. Ele pretende abolir uma série de direitos e garantias individuais. Jakobs pensa na sociedade em detrimento do indivíduo.