História e Cultura Jurídica Brasileira

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

O Processo Canônico

Tópicos:

  1. Introdução e contexto histórico
  2. O processo canônico
  3. Processo inquisitorial
  4. Esquema do quadro e avisos

Vamos terminar hoje o texto do Direito pela história e Direito Canônico.

Introdução e contexto histórico

O texto fala de muitas coisas, especialmente da revolução gregoriana. O tema de hoje é o processo canônico. Ele foi possível graças à revolução gregoriana, por todas as medidas que trouxe, como a revolução da escrita, a hermenêutica jurídica, a compilação e interpretação de textos, os comentários e o questionamento do poder do imperador. Esses trabalhos permitiram a construção de um conjunto de novos textos que serviriam para embasar a produção e a criação jurídica. Isso é um detalhe importante que precisamos prestar atenção. Tudo isso que falamos até agora são, na verdade, pré-condições para o processo canônico, sem as quais ele não se efetivaria.

Primeiramente, o processo canônico implica uma nova classe de pessoas, com novas tarefas, como um corpo de funcionários altamente treinados e especializados, cuja divisão do trabalho é cada vez mais aperfeiçoada e detalhada. Esses profissionais do Direito se dedicavam a tudo aquilo: interpretação, complicação, comentários. Note que tudo isso implica em pressuposto da transição da oralidade para a escrita. Essa transição é fundamental para a posterior positivação do Direito. Nós, por exemplo, em nosso mundo contemporâneo, também estamos passando por uma transição muito importante: da escrita para a imagem. Não é por outro motivo que gostamos de ler menos que as gerações anteriores. Os aspectos visuais chamam muito mais a atenção. Notou a semelhança com o processo que ocorria há 1000 anos?

O fato é que o processo canônico, fundado em tudo isso, permite um conjunto de avanços. Permite uniformização, centralização e concentração do poder. Se o professor perguntar, basta dizer: todo esse processo tem a ver com essas três coisas (uniformização, centralização e concentração do poder, a repetição é para fixarmos logo de uma vez, já que tratam-se exatamente dos atributos do governo em um Estado moderno). Tudo isso que falamos são elementos constitutivos que servem para, paulatinamente, centralizar o modelo do Estado do Ocidente. Estamos nos séculos XIV e XV, período que desemboca no poder absoluto dos monarcas.

O processo canônico se funda e se alicerça na perspectiva investigativa. Antigamente havia a perspectiva adversarial (havia um problema jurídico apenas quando duas partes se punham em conflito, que era arbitrado pelo rei em função dos costumes e das tradições), só então passando pela inquisitorial - não há problema jurídico apenas quando há um conflito entre partes, mas agora também há problemas jurídicos quando há infração da lei, independente de ter havido prejuízo ou dano a quaisquer partes. Como fumar maconha: é um ilícito que, em tese, não está prejudicando mais ninguém. Essa perspectiva inquisitorial-investigativa tem como pressuposto a uniformização, concentração e centralização do poder, que será o embrião do Estado, um corpus jurídico, que garanta a perenidade das leis e a segurança jurídica.

Outra coisa importante é a distinção dos foros. Antes de tudo, a Igreja era uma espécie de comunidade espiritual, não havia nem leis, apenas regras, que tinham a ver com o sacramento. Os foros, antes da revolução gregoriana, tinham muito mais a ver com a consciência e problemas de ordem moral e infrações às regras sacramentais do que a partir dela. Depois da revolução gregoriana, a Igreja se preocupa não mais apenas em regras procedimentais, baseadas na liturgia, mas em leis positivadas. É, portanto, a transição do foro de consciência para o foro jurídico. As leis positivadas são universalizantes.

Jurisdição e formalização do processo canônico: são coisas que vão sendo separadas em razão das pessoas e em razão da matéria. A jurisdição está dividida nesses dois ramos. É em função desses dois aspectos que ocorrerá a formalização dos processos. Cada classe de pessoas tem um Direito diferente  já que estamos falando ainda da Idade Média (lembrem-se das "máscaras" que cada indivíduo tinha na sociedade). “Transição” significa que nem uma coisa anterior foi completamente abandonada nem algo novo foi completamente adotado. A transição é a hibridação desses dois elementos. O foro passou a não ser mais de consciência, mas jurídico; a perspectiva não é mais adversarial, mas investigativa-inquisitorial. Mas há coisas da Idade Média presentes em tudo isso, ainda. Não vimos que a sociedade medieval é uma sociedade que se dividia em estamentos, corporativa, e baseava-se na idéia de ordem natural?  Vocês vão lembrar que Idade Medieval pensava na igualdade, mas não do jeito que temos hoje. Para a Idade Média, a igualdade era “entre iguais”, uma igualdade interior aos estamentos. Para essa sociedade estamental, não faz sentido um Direito que vem para transformar a idéia de igualdade e introduzir a idéia de indivíduo nos moldes da modernidade. Havia a idéia de persona, de máscara, aquele que cumpre um papel na sociedade.

Portanto, para uma sociedade em que não havia indivíduo, mas pessoa, ou seja, alguém que desempenhava um papel independente de quem ele seja em seu imo não faz sentido um Direito universal que seja igual para todas as pessoas quaisquer que sejam suas origens e estamentos.

Em razão da matéria: o que tem a ver com isso? Como já foi dito, a Igreja se fundava antes em ideologia, sacramento, liturgia e regras. É plausível, então, que pensemos que essa transição começa nos sacramentos. Matrimônio, em particular. Isso é o princípio do Direito de família. Para falar em matrimonio, automaticamente fala-se também em heresia, usura, adultério, testamentos e inventários. Decorrem dai também as idéias de Direito de sucessões, contrato e processo penal.

O processo canônico

  1. Quando falamos em formalização do processo, falamos na organização do próprio processo. Ele começa a ser organizado em fases. De novo a importância da escrita ao invés da oralidade. Começa no libelo: a queixa. O querelante vai ao tribunal, não ao rei, fazer a sua queixa. Não se vai também mais ao adversário diretamente. Ao fazer isso, estamos legitimando uma instituição, cuja função é a administração da justiça, que, no âmbito da Idade Média, é uma atribuição quase divina. Não é por outro motivo que até hoje vemos o Estado de maneira quase divina: ele é responsável pela administração da justiça. Note que até mesmo Hegel, no século XIX, tinha a respeito do Estado uma concepção ético-humanista, denominada espírito vivente, razão encarnada, deus terreno. ¹
  2. Depois do libelo, as exceções. Existe agora a figura do advogado, que não existia antes, que garante o Direito de defesa das partes. O que é exceção? O advogado elenca um conjunto de impedimentos para que aquele processo não ande. Falhas no processo, na acusação, lacunas no conjunto de elementos que será apreciado.
  3. Contestação: fase em que o advogado contesta a queixa. Ele está reclamando de que? “Isto não aconteceu! Isto está sendo reclamando infundadamente!”
  4. Apresentação e colheita de provas. Essas provas mudaram de caráter desde então.
  5. E, finalmente, o julgamento.

 
Para nós, isso é óbvio, as fases são essas mesmas, basicamente. Mas não para eles, já que estão a cerca de um milênio de distância em relação a nós.

Essas provas eram produzidas por ordálios, todavia não com caráter de objetividade e racionalidade, mas com um caráter mágico. Como conseguir provas? Seriam provas unilaterais, bilaterais e purgatórias:

Princípios de aceitabilidade das provas: as provas passaram a se fundar numa suposta neutralidade e imparcialidade, para o exercício da razão.

Havia provas supérfluas, impertinentes, antinaturais e inacreditáveis.

Ocorre então o inicio da autonomia da razão, e progressivo abandono da idéia de intervenção do Criador.  Abre-se a porta para a ciência e para a razão. Tudo o que é mágico ou antinatural começa a ser recusado. Tudo que tem como fruto a não-objetividade da razão começa a ser recusado.

Processo inquisitorial

O que significa toda essa transição? Uma nova forma de exercício do poder. Toda essa transição do oral pro escrito, do foro de consciência para o foro do juízo, fases do processo, formalização, funcionários profissionais, tudo isso tem a ver com a formação do Estado, e com uma nova forma de exercício do poder. Há a bipartição entre origem religiosa e estatal-administrativa do poder. Tudo isso que vimos se resume a novas técnicas de administração de poder. Com o poder mais organizadamente administrado, torna-se fértil o terreno para a implantação do Estado moderno.


Esquema do quadro:

Profissionais em Direito

|-> separação da jurisdição e formalização do processo

A) em razão das pessoas (a cada “classe” de pessoas, um determinado Direito)

B) em razão da matéria
                |-> relativa aas causas que envolvem os sacramentos (matrimonio, por exemplo)
                               |-> Direito de família
                                               |-> testamentos, inventários, adultério, usura, heresia
                                               |-> Direito de sucessões, contrato, processo penal, etc.

 Organização das fases do processo

|-> Fim do sistema de provas irracionais
                |-> oradálio -> caráter mágico (não-investigativo)
                |-> abandono progressivo da invocação de Deus como explicação
                |-> cresce a autonomia da razão

Princípios de aceitabilidade das provas
                |-> probabilidade, relevância, materialidade
                                |-> supérfluas -> obscuras
                                |-> impertinentes -> gerais
                                |-> inacreditáveis -> antinaturais

Sistemas de provas legais
                |-> flagrante
                |-> notorium ivrium
                |-> confissão 

Presunção:

                |-> praesumptiones iuris
                |-> prova plena
                |-> probatio semiplena (um só, documentos particulares, farra, fuga)
                |-> indicium
                               |-> nascimento da “magia do escrito”

                Ordálios: provas unilaterais:

                                |-> ferro em brasa 
                                |-> água fervente 
                                |-> prova do cadáver

                                Bilaterais x purgatórias:  x {automaldição, imprecação, juramento de inocencia

                                |-> judicium crucis
                                |->duelo

                                Purgatórias:

                                |->automaldição 
                                |->imprecação
                                |->juramento de inocência


Processo inquisitorial:
Nova forma de exercer o poder
                |-> dupla origem -> religiosa e administativa-estatal
                               |-> fazer perguntas
                                               |-> técnicas de poder e administração
                                                               |-> procedimentos ordenados e raciocínio.

 


1- Fonte: http://www.mundodosfilosofos.com.br/hegel2.htm

Texto para ler: A Construção da Ordem, capítulo 2
Lembrete: prova dia 18!