História e Cultura Jurídica Brasileira

quinta-feira, 6 de agosto de 2008


A História do Direito na Formação dos Juristas

 

Temos que estudar a História porque é um campo do conhecimento essencial para nós. Não apenas a história jurídica, mas a história como um todo, pois temos que compreender o problema do método e do objeto.

O professor nos indicou um texto que procura fazer o link entre a História e o Direito, que será precisamente o primeiro capítulo do livro Cultura Jurídica Européia – A Síntese de um Milênio, de Antonio Manuel Hespanha. Pode ir à biblioteca, suba as escadas, vá na direção da ala norte, e procure nas primeiras seções, mais precisamente na de História do Direito, que fica embaixo. Antes de ver, você deve passar pela seção de Justiça do Trabalho. A chamada do livro é 34(091) H585c. Os livros talvez estejam emprestados, mas o Panorama Histórico da Cultura Jurídica Européia, de número 34(091) H585p, do mesmo autor, e encontrado no mesmo lugar do primeiro, também serve, pelo menos pelo conteúdo do primeiro capitulo.

Qual a importância da História do Direito? Essa deve ser a primeira pergunta que deve justificar nossa presença nesta disciplina. Dito pelos próprios juristas, a História é fundamental para eles, para sua própria formação como juristas. O historiador logo diz: “que bom que sou importante pra você!”

Em seguida, o historiador pergunta ao jurista: “...mas como, de que maneira você se apropria das minhas ferramentas, dos meus instrumentos de trabalho?”

Essa curiosidade é respondida pelos juristas assim: “A História é uma disciplina formativa, e também porque sem a ela não conseguimos entender o Direito de hoje. A História é muito importante para a compreensão do Direito atual; sem a ela, isso é impossível. Também usamos a História para legitimar o Direito da forma como ele é hoje. E, imanentes ao Direito, há valores jurídicos tão milenares que chamamos de naturais: são aqueles que estão lá desde sempre, e, como nunca desapareceram, provaram sua permanente atualidade e coerência com a nossa sociedade atual.”

Então o historiador logo fica desconfiado. Conhecedor da História e de seu método, ele defende que “nada no mundo humano e nada do construto humano é natural. Natural é aquilo que se refere à Natureza, na sua estrutura interna, por exemplo o fato de sermos animais. Somos animais e isso não é questionável, em outras palavras, a “animalidade” é algo da nossa própria natureza. Entretanto há produtos que nós mesmo construímos, e que, portanto, não são naturais. A história é algo que nós próprios construímos, ela é um construto humano.”

E não é mesmo? Ou seria a História uma fatalidade? Ao nascermos, já existe história, ou temos que fazê-la? Vejamos nossa infância...

Ser criança é algo que faz parte da natureza? Sim, também é inerente ao ser humano, e nenhum de nós chegou a esta idade sem ter, por exemplo, passado pelos cinco anos de idade. Mas o “ser criança” não é natural na perspectiva da História. Ser criança também é um construto, e depende de como nós definimos o que é ser criança.No séc XVIII, ser criança era o mesmo que "ser um pequeno adulto”, ou seja, poderia possuir as mesmas atribuições do adulto, grosseiramente comparando. Pelos quadros da época, vemos que as vestimentas infantis são iguais às do adulto, em menor tamanho. Hoje em dia temos uma nova concepção do que é “ser criança”, e nossa sociedade concorda com isso: a criança deve ser um ser livre para gozar sua infância, por isso que se criou o ECA – o Estatuto da Criança e do Adolescente – para proteger esse direito que a ela foi conferido. O ECA, por exemplo, proíbe o trabalho infantil. Isso é mais uma garantia trazida expressamente no estatuto: assim, ela será livre para brincar. Portanto, o conceito biológico de criança, que seria aquele mais ligado a como a ciência natural – a Biologia – trata desse pequeno ser, é diferente do conceito histórico do que vem a ser a criança. A sociedade, motivada por vários fatores, se viu compelida a criar esse construto para entender a criança como um ser que deve ser protegido.

A História é mudança. Nelson Rodrigues disse: o óbvio também precisa ser dito. As idéias do que sejam as coisas também mudam. Quando a Historiador olha para o entendimento dos juristas de tais valores – aqueles que foram denominados “naturais” – ele já o faz enviesado. “Como é que tais valores podem ser da Natureza, se são construções humanas?” – pergunta o historiador. “E como podem ser naturais se mudam o tempo todo? Como podem ser eternos e permanecerem do jeito que estão desde sempre?” Os valores são redefinidos, reinterpretados, então o historiador deixa o sentimento de importância que teve antes e percebe que irá brigar com os juristas. É que muitas vezes os juristas usam a História de forma bem mecânica. Buscam, na verdade, conferir erudição ao discurso. Os historiadores, então, dizem que os juristas usam a História apenas para embelezar o conhecimento jurídico, as sentenças e obras. Pelo menos em um ponto os juristas têm razão, na opinião dos historiadores: a História é mesmo uma disciplina formativa.

Mas, à medida que os historiadores profissionais vão entrando na área do Direito, isso tende a mudar. O professor René, assim como António Hespanha, pensa no campo do Direito não como uma forma de legitimar as estruturas de poder, mas como uma forma de problematizar. A História serve sim para o Direito, e também na formação dos juristas, mas não estudaremos nada sobre legitimação de práticas aqui.

O que significa problematizar? Ser crítico, certo? Mas, aqui, "crítico" significa problematizar pressupostos, aquelas suposições anteriores aos raciocínios, que os fundamentam, e que raramente ou praticamente nunca são questionados. Os fundamentos não são avaliados; eles são quase axiomatizados, como os postulados da Matemática e da Geometria. E como o Direito poderia se renovar, se há pressupostos imutáveis? Justamente por reavaliar seus próprios fundamentos. O Direito pretende ser uma ciência, então ele precisa, para isso, de um método.

René Descartes: cria o método científico racionalista, que se opõe ao método vigente da época, que é a fé. A fé deve, então, ser colocada face a face com seu oposto, que é a dúvida. A dúvida é a estruturação do método científico. A duvida do método científico é uma duvida estrutural, metodológica, que põe e repõe a própria dúvida depois de cada conclusão parcial. Enfim, duvida-se de tudo.

Os juristas dizem que o Direito atual é racional, necessário e definitivo, e mais ainda: que é uma ciência. Para o historiador, isso é tudo um absurdo. Nada é necessário nem definitivo, e a racionalidade precisa ser questionada, criticada e avaliada.

As soluções jurídicas são sempre contingentes, ou seja, dependentes das circunstâncias históricas específicas. Não há, para os historiadores, valores eternos nem imutáveis. Há valores produzidos pelo homem, num determinado momento histórico concreto, que são concebidos de acordo com as necessidades e circunstâncias.

No século XIX, o Direito foi invadido por várias outras disciplinas, como a Filosofia, a Antropologia, a História, e Sociologia, a Economia e outras. Não há como abrir mão dessas demais disciplinas, nem mesmo para ser um simples operador do Direito. Essa invasão de outras perspectivas de analisar o fenômeno jurídico perturbou muito os juristas. Eles propuseram que deveria ser feita, portanto, a separação entre fatos e normas.

Existem fatos? Sim, mas eles estão atrelados ao sentido. Se daqui a cem anos eu disser: “Corinthians foi rebaixado”, o que isso significará? Aí deverá entrar o historiador, que, depois de dar uma breve descrição do que estava ocorrendo na ocasião (hoje), dirá o significado, para aquele contexto, do que significa ser rebaixado: inferioridade, time envolvido em escândalos, administradores metidos com a máfia, equipe pouco hábil, torcedores estranhos ¹, etc.

Portanto, não há como separar fatos de normas, estas produzem aqueles.

Ex: há algo no Direito de hoje que é pouco normatizado: o transsexualismo. Outra coisa que está apenas engatinhando na jurisprudência é a união civil de homossexuais. Em relação ao Direito, o transsexualismo só é um fato na medida em que está associado a uma norma.

“O que não está nos autos não existe.” – Frase comum no senso comum dos juristas.

O Direito, por causa de tudo isso, acaba se constituindo como sistema de legitimação para fomentar a obediência. A função crítica da história do Direito não é destruir, mas entender os pressupostos do Direito que explicam a legitimidade das normas. Entretanto o Direito precisa dele próprio se legitimar. E como ele se legitima?

Isso será visto posteriormente.


1- http://www.youtube.com/watch?v=Z0wSaYYigZc