História e Cultura Jurídica Brasileira

quarta-feira, 07 de agosto de 2008


Continuação

A relação entre o Direito e a História parecia ser muito harmoniosa. Depois vimos que esse casamento é conturbado. São áreas do conhecimento diferentes; têm objetos e metodologias diferentes, e não seria difícil imaginar que a relação entre História e Direito não seria a mais amistosa. O texto indicado ontem, então, foi trazido para problematizar essa questão. Uma delas é a de como o Direito deve se apropriar da História, ou melhor, é de como parte dos juristas devem se apropriar dela. Com isso, chegamos à noção de durabilidade das normas.

Temos, assim, a impressão de que as normas jurídicas são boas porque resistiram “à história”. Mas não é bem assim. A história não é esse ente poderoso, que decide os acontecimentos, que dela dependem todos os eventos, que regula o caminhar do mundo; primeiramente, seria mais adequado que se usasse a expressão “resistiram ao tempo” ao invés de “resistiram à história.” Os juristas devem afirmar: “se sobreviveram ao tempo, então é porque mostraram sua permanente atualidade.” Essa é uma das formas como o Direito se apropria da História.

Outra forma é: os valores jurídicos são categorizados como “naturais”, que são imutáveis. E mais forma de apropriação do Direito pela História é a maneira com que ele a usa: como um adereço, um adorno, que embeleza os textos e perfuma as sentenças.

A idéia de durabilidade da norma traz um profundo equívoco: o de que a norma é fruto de um consenso histórico, em que várias gerações de juristas deram seu aval àquela norma. Por isso, elas seriam boas, e deveriam permanecer. Essa idéia de plebiscito, em que os juristas dão aval e legitimação a tais normas, é uma idéia no mínimo muito complicada. A idéia é que uma voz solitária estaria negando toda a tradição de legitimidade que foi sendo dada durante todo esse tempo. Então, aquele que questiona deve estar errado! “Seria fantástico acreditar que apenas eu estou certo e todos eles estão errado, né?” Isso, na verdade, é uma indução à falácia. Esse plebiscito não existe. Estamos falando de coisas diferentes por completo.

Categorias jurídicas que supostamente pertencem à natureza das coisas: liberdade, Estado, idéia de público e privado e de família.  “Se perduraram por milênios, então é porque são instituições boas e atuais!” Mas o que não se percebe é que tais instituições não são as mesmas ao longo da história, apenas em palavra. Liberdade, por exemplo, significa algo muito diferente para nós do que significava para os antigos. Bem como a concepção do que é público e o que é privado: o Código Civil atual, apesar de fundado no Direito Romano, trata bem diferentemente o que é público e o que é privado. A família só conserva mesmo o nome: na época do Império Romano, a família incluía parentes, não-parentes, animais, móveis da casa, ancestrais, escravos... para nós, hoje, esse conceito nada tem a ver. Esse consenso só poderia existir se estivéssemos falando da mesma coisa, mas não é o que de fato acontece: os juristas tentam dizer que, na comparação com a antiguidade, a família de então era semelhante à família típica atual. A História é o estudo das mudanças, e não faria sentido haver História se não houvesse mudança alguma. Por isso o consenso não pode dar aval a uma coisa que não é a mesma.

Portanto, a apropriação da História pelo Direito é apenas visando à legitimação da estrutura de poder. E o Direito é a estrutura de poder que, por sua vez, legitima a obediência. Mas o Direito deve legitimar-se primeiro.

No século XVII, o Estado era “a pessoa do bem”. Não existia o Estado como a estrutura que temos hoje. L’État c’est moi - “O Estado sou eu” era uma frase do rei Luís XIV que refletia o caráter personalista do Estado, que era centralizado num só soberano, durante o tempo do absolutismo. Hoje o Estado não é a personificação por uma pessoa, mas é uma estrutura ocupada por pessoas que se sucedem. Naquele século, havia a linhagem real.

Outro motivo do campo jurídico para se apropriar da História é para atestar a linearidade do progresso. É outra estratégia de poder falaciosa. Cada momento histórico constrói seus significados em torno das necessidades e das demandas que o presente lhes apresenta. Por exemplo: na antiguidade, a liberdade, o Estado, a família e a noção de público e privado estavam articulados de outras formas na época, de acordo com as necessidades do período.

Há cerca de 17 anos, não tínhamos celular. Há uns 19, não tínhamos computador. Mas essas inovações mudam completamente a forma de interação, especialmente no que tange à idéia de público/privado. A intimidade, por exemplo, já mudou radicalmente; hoje é mais fácil entrar na vida das pessoas. As leis escutam às demandas e respondem às necessidades do presente. Se o judiciário de hoje em dia está emitindo pareceres sobre uniões civis de homossexuais, então é porque há uma demanda para isso. A evolução coloca, para o Direito, determinadas tarefas. Veja, por exemplo, o Direito de Família. Hoje há muito mais tipos de famílias do que antigamente: família monoparental, família de pais não casados...

Outra estratégia: a História também é usada para a legitimação da corporação dos juristas. A idéia de que os juristas são imparciais, neutros, é falsa; não existe neutralidade no âmbito social. E não que eles sejam vigaristas ou tendenciosos; é que tal neutralidade não é possível não por força do caráter de ninguém, mas por que, dentro da sociedade, todos têm um ponto de vista. Esse ponto de vista depende da classe social à qual o indivíduo pertence, do lugar onde ele nasceu, dos valores familiares dele, da sua ideologia política e de inúmeros outros fatores. É como imaginar que o juiz, ao vestir a toga, despe-se completamente de seus valores acumulados e preconceitos.

Até mesmo o historiador, ao elaborar um tratado, seleciona os documentos que lhe servirão de base.

Livro interessante: “Se Tudo é História, Então História não Existe”. É humanamente impossível estudar toda a História pois não tem como investigar todos os documentos disponíveis. Isso sem contar os que ainda estão para ser resgatados, ou os que nunca serão. A leitura feita de um documento, por sua vez, é outra história, diferente do testemunho de cada participante do evento narrado. Isso porque o historiador também tem sua pré-compreensão, sua ideologia e seus preconceitos.

A História é poiésis, que quer dizer “criação”; o historiador é quase um poeta, já que não existe verdade absoluta na História.

Numa sociedade livre, só é livre aquele que tem poder de escolha, portanto, é responsável por essa escolha. Se escolhe, então é livre.