“O Direito não apenas regula e recebe valores, ele também os cria.”
“Antes de organizar, o Direito imagina a sociedade.”
Renascimento do pensamento jurídico ocidental
A temporalidade da política na Europa muda muito rapidamente, e o tempo cronológico é apenas um dentre vários referenciais. Temos diversas maneiras de nos relacionar com aquilo que chamamos de “real”. Há a esfera política, a esfera econômica e a esfera do imaginário. São essas as três estruturas com relação às quais podemos pensar historicamente. No que tange à concepção de público e privado, o tempo caminha de maneira diferente. O que se considerava como de ordem pública e de ordem privada na antiguidade é bem diferente do que é considerado nos dias atuais. Nas conjunturas políticas, por exemplo, a temporalidade é rápida. Os eventos e fenômenos políticos se sucedem uns atrás dos outros; a simples morte de um rei, que é sucedido pelo herdeiro pode mudar todo o panorama das relações políticas de seu território. No plano econômico essa sensação é mais lenta; o tempo é menos fluido para as coisas acontecerem. No campo do imaginário, os valores e coisas são ainda mais lentos; pode demorar séculos ou até milênios para que o imaginário com relação a qualquer aspecto mude. Há valores que perduram por muito tempo com força vinculativa, mesmo com o passar das idades.
Vejamos primeiro a dimensão econômica. A estrutura econômica estava mudando rapidamente no final dos anos 1000 (séc. XI). A sociedade medieval se organizava em torno dos feudos; o feudo era o centro da sociedade. O feudalismo, como formação social, começa a entrar em declínio no final do primeiro milênio d.C. Então, como essa estrutura do sistema feudal se compunha? Em torno das grandes propriedades, vastas porções de terra, num contexto social de baixa densidade populacional. Depois do fim do Império Romano do Ocidente, ocorreu o esvaziamento das cidades e centros urbanos. O contexto social do feudalismo é um contexto rural, agrário, exceto nas grandes cidades que permaneceram existindo, onde, porém, a vida era paupérrima.
As porções de terra eram auto-suficientes, praticamente. Havia aldeias e enclaves de camponeses que, junto a essas propriedades, sobreviviam quase que completamente daquilo que produziam. Havia, portanto, uma sociedade agrária, feudal, estruturada em torno de grandes propriedades, porém pouco povoadas.
Num contexto desses, é evidente que não havia a vigência de centros urbanos. A sociedade possuía poucos centros, que eram mais decorativos, e não cumpriam uma função fundamental na estruturação dessa ordem econômica feudal. As propriedades, como dito, eram auto-suficientes; numa sociedade desse tipo, algo muito importante do ponto de vista do capitalismo ainda inexiste: a moeda. Para que ela serviria? Não havia comércio... o que mais havia de fato eram pestes e guerras camponesas.
Se houvesse necessidades, que se trocasse com o vizinho, fazendo uma espécie de escambo. A cunhagem de moedas em geral é algo feito por um Estado central e forte, coisa que ainda não existia naquela época. O comércio feudal não necessitava de moeda; ela surgiu, posteriormente, como um facilitador.
Sem moeda, e sem acumulação primitiva de capital, o que seria o comércio? Trocas, apenas. Não havia, então, como pagar salários. A estrutura econômica se fundava sobre um instrumento que era a servidão. Todavia, essa servidão não era uma sociedade comercial, nem um instrumento exatamente econômico, mas havia um conjunto de valores em torno do instituto da servidão. A ordem política se fundava nas relações de suserania e vassalagem, em que o primeiro suserano era o rei. Ele tinha vassalos: os nobres, muitas vezes seus parentes. Eles, por sua vez, eram suseranos de outros vassalos, e assim sucessivamente.
Essa cadeia tem óbvia relação com a economia, mas também é uma relação que implica em obrigações. Obrigações, como bem sabemos, é uma palavra que lembra o que? O Direito. Note a temporalidade: estamos falando do século XI, o anterior ao surgimento das universidades. Lembre-se também que o Direito (não com este nome, mas com alguma denominação que remetia à “organização da sociedade”) era um dos primeiros cursos a serem lecionados.
O campo político: na Idade Média, não havia sequer aquilo que é fundamental para pensarmos em unidade política: a demarcação territorial. Havia vastos impérios, que se alargavam e encolhiam dia a dia. Nesse grande império, abrigavam-se vários povos, nada a ver uns com os outros, não apenas no que tange à religião ou culto, mas também à língua falada, às vestes e pensamentos.
Antes de falar no imaginário, vamos falar no Direito. O que nos vimos até agora? Lamentavelmente, vimos o Direito como um mero regulador da sociedade. Ou que, no máximo, o Direito recebe da sociedade os valores sociais. Nesse tipo de pensamento, o Direito é uma ferramenta básica absolutamente esterilizada. O Direito não é, pura e simplesmente, um receptáculo de valores, e nem apenas um regulador. E, nesse contexto, não há espaço para o Direito ser poesia. Poesia? Mas que viagem é essa? Acalme-se. Primeiro pergunte a si mesmo: em que sentido o Direito é poesia? Poesia vem de “poieses”, que significa “criação”. A fronteira entre a História e a Literatura é tênue, logo entre a Literatura e o Direito idem! Se dissermos que o Direito apenas recebe valores e não os cria, isso é o mesmo que dizer que o Direito é fortemente separado da sociedade.
O Direito invade a esfera na qual vivemos e cria novas
distinções, como aquela entre indivíduo e pessoa, que podem ir contra as nossas
convicções de até então.
Ler o capítulo 4 do livro de Hespanha: Cultura Jurídica Européia - a Síntese de um Milênio: “o imaginário da sociedade e do poder”