História e Cultura Jurídica Brasileira

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Importância do Direito Canônico na vida jurídica européia

 

Veremos hoje o texto sobre o Direito Canônico, entregue na primeira semana de aula. O professor gosta de tirar questões de prova desse texto. Nós teremos muito mais facilidade com ele agora do que se não tivéssemos visto o fundamento histórico da era medieval. O professo nos propõe a pensar no que os autores chamam de revolução gregoriana, feita pelo papa Gregório VII, a partir de 1073. Por que falar da revolução gregoriana? É fundamental porque ela se encontra num momento, talvez quatro ou cinco séculos de transição da Idade Média para o mercantilismo e as sociedades pré-capitalistas. É dessa transição que estamos falando. A revolução gregoriana é importante porque é um momento de crise, como todo momento de transição. Como a transição da adolescência para a vida adulta: é uma crise. Como conceituamos “crise”: é o descompasso entre as expectativas de uma pessoa ou de um momento histórico e a realidade. Então, nesse ponto de vista, nós somos movimentados por crises, ou microcrises melhor dizendo.

É isso que está sendo colocado nesse momento que estamos estudando. É óbvio que, se estamos falando de transição, pensar em revolução gregoriana é pensar mais um elemento que acelera a crise e precipita a transição. O renascimento do comércio, moeda, salários, são elementos que põem em movimento essa transição: a crise do sistema feudal em direção ao sistema pré-capitalista. A revolução gregoriana veio para acelerar esse processo. Vejamos por quê.

Do ponto de vista político, o que tínhamos antes de Gregório? Tínhamos a noção de imperium. Do que se trata essa idéia de imperium? Imperium não é como entendemos hoje como Estado-nação. Não havia instrumentos administrativos, nem demarcação territorial, homogeneidade populacional, crenças, línguas; a Igreja lutava fortemente contra o paganismo e o islamismo. O rei era o responsável por esse poder imperial, não havia instituições nem corpo de funcionários para cobrar impostos; tudo era o rei mesmo que fazia, de tal forma que o Estado é o próprio rei. Isso é o “império” da época; era o que vigia antes de Gregório VII. O que era a Igreja dentro desse império? Não muita coisa além de uma comunidade espiritual. Não é jurídica, não tem uma estrutura legal nem legislativa. É uma estrutura descentralizada, com várias igrejas, com muito pouco contato umas com as outras. O momento era de vida rural, baixa densidade população e grandes propriedades autônomas, então o transito ao longo de vastas regiões é bem difícil, e a Igreja é muito frouxamente controlada. O papa é uma figura cuja autoridade é muito mais moral, tradicional e espiritual do que jurídica. Tem pouco poder político e muito pouco poder militar. Então, é natural que, dentro dessa estrutura imperial, o papa se apresente subordinadamente. Temos, então, o modelo carolíngio, que aponta para a subordinação da Igreja em relação ao imperador.

O que são essas leis que controlam frouxamente a Igreja? Sacramentos, liturgia, teologia, ou seja, regras comuns. Isso é muito pouco para manter uma estrutura unida, da magnitude da Igreja. Com isso dá pra entender que a Igreja estava muito mais vulnerável às influências políticas do poder.

Então surge em cena o papa Gregório VII. Ele percência à Igreja havia muito tempo, conhecia-a por dentro, sabia do que se tratavam os problemas, entendia a relação subordinada da Igreja em relação aos imperadores. Quando ele assume, sua proposta é clara e muito corajosa: libertar a Igreja ocidental inteira. Antes disso havia várias paróquias soltas. Ele não pensou só na dele. Como ele fez isso? Armas? Havia poucas. Se assenhorando do poder político, dos nobres, reis e príncipes? Quase isso. Ele teve a idéia de construir um poder político para se libertar do próprio poder político! Construir um poder religioso, tão político quanto o civil.

Gregório realizou muito, mas, se tivesse feito tudo o que idealizou, seríamos provavelmente uma teocracia hoje.

A Igreja então tinha de construir um poder político mais racional, eficaz, formal e burocrático. Mas essas são exatamente as características do Estado moderno. Podemos dizer, portanto, que a presença da Igreja Católica no cenário acelerou a formação do Estado centralizado, conseqüentemente a positivação do Direito e a liberdade humana, na transição da preponderância do todo para a preponderância do indivíduo.

O Direito de antes era baseado no ethos, na oralidade, na tradição, e as reformas de Gregório isso melhoraram as coisas. Principia-se o Direito positivo.

Ao mesmo tempo em que a Igreja pretende construir todo esse poder político, forma-se o Direito. É uma grande maquina de guerra. Por isso há o ditado “aos amigos, tudo, aos inimigos, a lei!” Mas o Direito não serve para garantir tudo? Sim, em países igualitários. Em países hierarquizados, o Direito é uma maquina de guerra. Não é o professor que diz isso, foi Gregório mesmo.¹

Para isso, ele instaura um conjunto de reformas dentro da Igreja: o dictatus papae: um conjunto de normas e regras que ele estabelece para dentro da Igreja. São cerca de 27. As interessantes estão citadas no esquema abaixo. Alguns dos aspectos fundamentais (vamos comentar 3 deles) são as reformas de Gregório são contra a simonia, o benefício e o nicolaísmo. Simonia: o poder de comprar e vender bens da Igreja. Poder que o imperador arrogava para si de comprar, vender e dispor de propriedades da Igreja, principalmente terras. Nicolaísmo: a possibilidade ou prerrogativa de religiosos casarem entre si ou com outras pessoas. Não podemos compreender esses dois ataques sem entender o benefício: algo fundamentalmente articulado como tronco político do império: a relação de suserania e vassalagem. O rei era o maior dos suseranos em relação aos seus vassalos, que normalmente eram os nobres, que por sua vez também tinham seus vassalos e assim sucessivamente. O instituto da suserania e vassalagem estava articulado em uma dimensão não só política, mas econômica também, que era justamente o beneficio. Essa "relação também implicava em uma troca de bens e obrigações: oferecer terras. Mas muitas vezes esses bens, cargos e terras eram da Igreja. Por isso Gregório diz, em um dos dictatus: “somente o papa podia depor e nomear bispos.” Na suserania e vassalagem estabelecida, dava-se também um bispado, uma paróquia para ser explorada economicamente. Gregório já havia notado que esse era um recurso do qual o imperador lançava mão para manter sua soberania, então o proibiu de nomear bispos, para impedir que ele desse terras a quem quisesse. O benefício, em resumo, era a contrapartida oferecida àquele que se casasse com alguém da vontade do imperador, normalmente a filha de algum senhor feudal vizinho.

Gregório instituiu a proibição do casamento para evitar que religiosos se casassem com filhas de barões ou gente conectada ao imperador, pois os filhos desses casais controlariam as propriedades da Igreja no futuro. Naquele tempo, o objetivo do celibato não era moral como hoje, mas era econômico: impedir que os cargos e terras da Igreja fossem transferidos para quem não pertence a ela. Veja que os decretos falam, todos, de alguma forma, sobre isso.

Gregório queria que o poder civil se separasse do religioso. O poder religioso deveria governar a si mesmo. Vejamos alguns dos dictatus:

É claro que haveria uma reação por parte do monarca. Instaurou-se uma guerra generalizada na Europa. O papa já tinha seus seguidores, que ficam ao seu lado. Os imperadores também tinham seus fieis. E agora? Sangue será derramado. O papa morre, e a Igreja perde a batalha, mas apenas de uma certa forma: o legado que Gregório deixa é magnífico e será aproveitado pela humanidade.

O que foi feito, então? Uma concordata. Estabeleceu-se um equilíbrio entre o poder religioso e civil. Solução de compromissos que impede que, no Ocidente, haja tanto uma teocracia ou um poder autocrático de um imperador.

Ficou estabelecido também que o rei não seria alguém de fora da Igreja, mas alguém de dentro; então ele passaria a estar subordinado ao papa. É claro que não haveria como imperador aceitar isso. O papa elegia os bispos, mas o imperador comparecia ao processo, para influenciar a decisão em busca de aumentar seu poder político.

Forma-se, então, o equilíbrio entre o poder religioso e civil, que era o que Gregório queria.

A revolução gregoriana é completa. Quais são as características fundamentais dessas revoluções? Rápidas, violentas, totalizantes, sócio-econômicas, universais, propõem até novos calendários e, é claro, um novo Direito. Daí que veio o calendário gregoriano, que usamos hoje no Ocidente! 


Esquema do quadro:

Gregório Magno (590-604 d.C): Igreja como uma comunidade espiritual, não jurídica, descentralizada
                |-> disciplinarização da Igreja
                |-> Modelo Carolíngio: subordinação da Igreja ao imperador
                               |-> Autoridade Papal - moral e tradicional
                                               |-> Leis: sacramentos, liturgia, teologia (regra comum)
                                                               |-> mais pluralista e suscetível às influências do poder civil

Gregório VII: (1073-1085) -> libertar a Igreja ocidental do poder secular
                |-> organizar um poder político-> mais eficaz, racional, formal e burocrático (legal)

Reformas: contra a simonia e o nicolaismo

 1075: Dictatus Papae
                |-> Igreja romana fundada exclusivamente pelo senhor;

1076: reação monárquica: guerra das investiduras
1112: concordata de Warmia e Bec. (1107) ->
|-> Solução de compromisso
                |-> equilíbrio entre o poder religioso e civil
|-> 1078: Gregório passa a nomear Bispos
                               |-> contra o “beneficium
                                               |-> patrimonialismo e cartorialismo
                               |-> celibato
                |-> o rei está dentro da Igreja e não fora
                |-> revolução na estrutura e concepção de “imperium
                               |-> revolução gregoriana: rápida, universal, total, socio-econômica, violenta, trazendo um Direito novo.


1- Nesse momento, para evidenciar a hierarquização da sociedade brasileira, o professor citou a recente decisão do STF de proibir algemas.