História e Cultura Jurídica Brasileira

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Corpus juris canonici

 

Estávamos estudando a revolução canônica de Gregório VII, que formará a base do Direito positivo que temos hoje. Para falar dessa emergência da tradição jurídica da era moderna, é necessário primeiramente estudar a Idade Média. A revolução gregoriana é uma revolução que traz um elemento a mais de crise do sistema feudal; essa é sua importância. É um momento de transição, em que se desmorona o sistema feudal, a estrutura econômica, social, política e imaginarária da Idade Média em direção a uma nova era, que é a Idade Moderna. É um momento de crise do sistema feudal e da formação social medieval.

Mas, mais do que isso, falamos muito da Idade Média. Se estamos falando sobre crise, então é crise de que? Do sistema feudal. Então, fizemos um panorama do medievo, das relações econômicas, políticas e imaginárias fundamentais, e, a partir disso, conseguiremos compreender o que discutiremos hoje: o Corpus Iuris Canonici. É um conjunto de textos, leis, interpretações e comentários compilados e recolhidos desde a antiguidade, e, sobre eles, criadas novas leis a partir de Gregório VII até Gregório IX. Qual a importância do Corpus Iuris Canonici?

Na aula passada, vimos os decretos de Gregório VII, os decretus papae, que eram 27. Alguns eram fundamentais porque esses tinham um objetivo: solapar e desconstruir o poder do imperador. O papa não tinha poder militar como o imperador, nem econômico. Também não tinha poder político. Então, como nós imaginaríamos um papa fazer face ao poder do imperador sem dispor de nada disso? Como constituir um poder paralelo? Nesse exato momento, por conta dos decretos do papa Gregório VII, nascia no ocidente uma inusitada máquina de guerra: o Direito. A única, ou talvez a mais importante que o Gregório tinha para lançar mão e fazer face ao poder do imperador. Por conta dele mesmo ele dita os decretos. Observem bem o teor deles. Os objetivos eram atacar os fundamentos do poder do imperador: a simonia, o nicolaísmo e o benefício. Simonia, como vimos, era a prática do imperador se apropriar de bens da Igreja e tirar proveito econômico deles. Nicolaísmo era a prerrogativa ou capacidade que os clérigos tinham de casar entre si ou com outrem. O beneficio seria a contrapartida que se oferecia pelo suserano ao vassalo para estabelecer com ele uma "relação de obrigações”. Poderia ser um pedaço de terra, cargo, ou renda da Igreja.

Ao papa Gregório VII interessava desconstruir o poder do imperador, e ele sabia que esse poder se sustentava nesses três elementos. “Vamos fazer isso juridicamente”, disse Gregório. E como fazer isso jurídicamente? Ora, Gregório avocara para si próprio a prerrogativa de criar leis. Verdade, e isso é inédito. Na Idade Média, o Direito era tradicional, costumeiro, oral. Não era positivado nem escrito, até porque pouca gente sabia ler. Essa é uma das revoluções dentro da revolução canônica. Ele rompe com a tradição oral do direito, e começa a positivá-lo: não só na criação de leis, mas também na compilação e interpretação das leis da antiguidade, numa coisa que se chamou “cânone”. Cânone é um conjunto de textos compilados, reunidos, interpretados a partir dos quais é possível fazerem-se novas leis. Essas leis seriam feitas a partir do nada? Não. Gregório resgatou as leis da antiguidade. Esse trabalho ampliava o cânone. Referências a partir dos quais se construía uma tradição jurídica positivada; o Direito passa a ser paulatinamente positivado. Isso tem uma repercussão inimaginável: o deslocamento de um Direito adversarial para um Direito inquisitorial. Adversarial: na Idade Média, como tínhamos a tradição oral e costumeira, o imperador raramente punha no papel uma lei, e essa lei não seria algo novo, mas um mero registro. Nunca se imaginou, no âmbito da Idade Média, em criar uma lei que não tivesse lastro na tradição, em algo já dado. Gregório pegou, então, a idéia de criar leis, não a partir de nada, mas nem a partir de costumes orais. Isso foi uma grande revolução! Isso muda toda a lógica do Direito: o Direito medieval só se manifestava na existência de um conflito entre partes, daí adversarial, e o imperador seria o único capaz de resolvê-lo, pois ele é o arbitro. Daí direito adversarial. Mas não depois disso, pois o Direito começa a passar para a forma inquisitorial: junto com essa compilação, com esse trabalho de recuperação, criação de novas leis, interpretação, cresce um corpo de funcionários, um corpo burocrático administrativo, em que cada um deles tem uma prerrogativa, uma competência. Isso também delineia o que será, daí a pouco, o Estado. Não mais se procurava o Direito apenas quando houvesse um conflito, mas também quando encontrava-se uma simples inconformidade.

Na Idade Média isso não existia, só havia o imperium. O território não era definido, não havia capital, não havia um corpo de funcionários. No momento em que começou essa tarefa canônica de ampliação e criação de novas leis passou a ser necessário que houvesse profissionais treinados especificamente para isso. Eles dividiam funções, e criam prerrogativas e competências a partir dessas divisões. Com esse trabalho criou-se, tijolo sobre tijolo, o que apareceria como o Estado moderno no século XVI.

Isso serve para criar as bases de fundação do Estado moderno. É dai que surge a centelha do Estado. Os papas e religiosos nem estavam pensando nisso ao criar essa máquina; todavia, ao compor esse corpo de funcionários, eles acabaram contribuindo com essa transição, de regime feudal para Estado moderno, ao mesmo tempo com a transição entre Idade Média e modernidade.

Eles instituem as esferas de atuação. Isso cria grupos de pessoas com interesses próprios. Como no legislativo de hoje em dia: as bancadas parlamentares têm interesses próprios, bem como outras organizações, como a FUNAI.

Esse crescimento do Estado e das suas instituições, da pluralidade de seus interesses e divergências, também trazem a necessidade paulatina de se colocar limites no poder do papa. Gregório fez um direito quase totalitário em sua época; veja os dictatus papae. No momento em que o Estado foi crescendo, houve divisões internas, e cada um começou a brigar por seu próprio interesse, mas todos concordavam que havia a necessidade de se limitar o poder do papa. Mas isso não parece muito com o Estado moderno de hoje? Limitação dos poderes e pluralidade? Isso começa a acontecer dentro da Igreja, e é isso que o imperador usará para reafirmar seu poder.

Concílios: verdadeiras assembléias, nas quais debatiam-se temas diversos e muitas vezes a vontade do papa saía derrotada. O princípio eletivo para toda hierarquia da Igreja: cardeais elegiam papas, monges elegiam seus abades e cônegos elegiam bispos. A sociedade medieval era corporativa, e as eleições eram feitas no interior de cada uma delas, então não se tratava de uma democracia. O papa não poderia intervir no interior dessas corporações. Se legais, essas decisões não podem ser revistas pelo papa. Esse é o modelo do Estado moderno, que virá a surgir no século XVI.

1234: Gregório IX manda compilar tudo que havia sido produzido desde Graciano até ele mesmo, no Corpus Iuris Canonici. a partir do qual, baseado num modelo de interpretação, os papas poderiam criar novas leis, e construir paulatinamente o poder da Igreja paralelamente ao do imperador.

Ivo: o primeiro homem que tentou reduzir a pluralidade de leis.


Esquema do quadro:

Gregório VII - criar novas leis e realizar a interpretação autêntica.
                |-> ampliação do cânone
                |-> justiça -> principal atividade do poder
                               |-> julgar é administrar, legislar, interpretar.
                                               |-> casos concretos -> precedentes vinculantes e normativos gerais
                |-> hermenêutica: “trazer para o presente com a autoridade do texto do passado”.
                               |-> refundação do Direito 

1090: Ivo de Chatres -> tentativa de reduzir a pluralidade
                                               |-> transmissão escolar

 1140: “Decreto” de Graciano
               |-> 3800 textos com comentários
                                               |-> impõe à pluralidade de textos discordantes um método para organizá-los e hierarquizá-los

 Crescente hegemonia de canoístas e um corpo de funcionários profissionais altamente treinados
               |-> necessidade de distinguir poderes, competências, autonomias corporativas e locais
                               |-> paralelo à centralização do poder
                |-> limitação do poder do papa
                               |-> em alguns casos agir sem o consentimento do papa, puni-lo ou depô-lo
                |-> conciliarismo: prevalência dos concílios sobre as decisões do papa
                |-> princípio eletivo
                |-> soberania das corporações
                |-> princípio assemblear

|-> Gregório IX (1234) -> compilações de tudo produzido desde Graciano
                                                               |-> “decreto” de Graciano e as “decretais” de Gregório IX
                                                                              |-> Corpus Iuris Canonici