Direito Civil

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Considerações iniciais sobre os fatos jurídicos

 

Breves conceitos

Na aula anterior nos apenas tivemos aquela conversa preliminar, em que houve a apresentação do curso, falando sobre a metodologia da avaliação. O plano vai ser disponibilizado até semana que vem. Estará no espaço aluno, no site do CEUB. Com relação à bibliografia: não vamos adotar apenas um manual, e semana que vem o professor trará alguns exemplares de diferentes autores. Entretanto ele já adiantou que o livro de Cristiano Chaves de Farias não tem deficiências, apenas não contém toda a matéria. Então, cuidado.

Essa primeira parte, sobre fato jurídico, é, como se espera de todo início de curso, algo muito básico, algo que já sabemos, e apenas vamos relembrar, nomear bois, e eventualmente pinçar algo, realçar algo específico daquilo que já vimos. É bom ler uma parte das Lições Preliminares de Direito de Miguel Reale sobre atos e fatos jurídicos.

O propósito da aula de hoje é que tenhamos um preparado, um estofo para que possamos entender o negócio jurídico. Como veremos na semana que vem, o negócio jurídico é uma subespécie de um grande gênero chamado fato jurídico. E aí sim: como chegamos à idéia de fato jurídico? Como o professor acha mais pedagógico começar do começo, vamos relembrar o que sabemos até agora sobre o Direito. O que a ciência jurídica quer?

Bom, sabemos que o ser humano é um ser sociável. Para que ele possa atingir sua plenitude e todas suas capacidades, ele precisa se relacionar mutuamente. O homem precisa estar circundado, mesmo que por poucas pessoas; ele precisa estar em contato com pelo menos um. Nós vivemos com comportamentos atípicos e até mesmo psicopatas quando estamos sós. Então, o Direito é algo que trará o mínimo de tranqüilidade. O Direito é o único mecanismo de controle social que tem se mantido ao longo dos séculos. Dos mecanismos de controle, como econômicos, de força, ideológicos e jurídicos, o último tipo é o que mais se perpetua. Todas as outras se desgastam: as economias depletam, os regimes de força sempre acabam encontrando um adversário mais forte, os líderes carismáticos morrem e raramente deixam sucessores à altura, e as idéias, mesmo que perspicazes para seu tempo, podem cair no desuso ou encontrar opositoras. Já as leis, mesmo que algumas entrem em caducidade e haja dinamismo e rotatividade na produção legislativa, é o sistema que tem se provado eficiente. O que tem que se ter em mente é que o Direito está a serviço da sociedade e não o contrário.

Note Kelsen: imaginou um modelo perfeito deixando a sociedade em segundo plano. Se a lei é a mais perfeita mas não estiver em compasso com a sociedade, ela simplesmente não terá eficácia.

O Direito, então, é aquela tabua de salvação que nos impedirá de cair em estado de selvageria. Eu poderia, se quisesse, tomar o caderno de alguém apenas por ter gostado da capa, e ainda dizer: "de agora em diante é meu". Felizmente, hoje em dia, isso não é mais tão fácil assim. Deve haver um mínimo de harmonia social que seja patrocinado, garantido pelo Direito.

Muito bem, o Espirito do direito é esse. Mas como ele funciona? Essa é a essência da aula de hoje: o funcionamento do Direito. Já que temos essa idéia de Direito estampada, vamos nos permitir uma digressão rápida a um conteúdo de introdução: a Teoria Tridimensional do Direito. São os três estágios, três pilares independentes mas que se relacionam entre si.. É daqui que teremos o funcionamento de nosso Direito, mais especificamente quando tivermos uma relação jurídica. Como ela surge?

Vejamos a casa. O que ela representa para Zé, o seu dono? É um bem imóvel. O que está por trás disso é o direito de propriedade. A pessoa tem um direito real, que é a relação entre uma pessoa e um bem. Se fosse entre pessoa e pessoa, seria uma relação de direito pessoal. Que faculdades estão à disposição do dono da casa, em razão desse direito de propriedade? Ele pode emprestar, alugar, vender e até mesmo destruir... O direito de propriedade existe para o Zé porque a norma está lá na retaguarda, no ordenamento jurídico. Onde estaria o fato? Zé tem um imóvel. Qual a importância do direito de propriedade? Garantir que nenhum de nos irá lá esbulhá-lo. O direito de propriedade possui um valor, portanto. Valor esse que fará com que surja, em seu favor, uma norma. O fato existe, depois passa pela dose de valoração e, em seguida, a norma é criada em seu nome. Pronto! Agora se trata de um fato jurídico.

Um fato que seja social é um fato que terá uma repercussão dentro de um contexto social. Se esse fato for, além disso, um fato jurídico, significa que ele chegou a ser considerado tão importante a ponto de receber uma norma. Digamos que convido alguém para ir ao cinema. Essa é apenas uma relação social, porque envolve duas ou mais pessoas. O Direito não se importa com a natureza dessa relação. Mas se, entretanto, eu convidar a pessoa para ir ao cinema comigo e, no caminho, fazê-la cair na emboscada que eu preparei? Aí passou da esfera meramente social para a esfera jurídica. Ora, temos certeza que há pelo menos uma norma que dispõe sobre ciladas como emboscadas, com qualquer que seja o fim, como extorquir mediante seqüestro, estuprar, matar, roubar, etc. É aqui que entra o Direito objetivo: é o conjunto de regras em vigor em determinado momento, em determinada sociedade. Logo, se o fato social tem repercussão no Direito objetivo, então temos um fato jurídico!

E daí? Vemos que, tendo um fato jurídico, surgirá a rainha de todas as circunstâncias para nós: a relação jurídica. Nessa hora, devemos pensar em quem são os sujeitos (ativo e passivo), o objeto e o vínculo de atributividade. Portanto, antes de olhar para a idéia de relação jurídica, temos que olhar para o fato, verificar se ele é social, se tem respaldo no Direito objetivo (logo, se ele constitui um fato jurídico) e só então poderemos dizer que se trata de uma relação jurídica.

Tomemos, agora, o exemplo de um raio que atinge uma casa. Ele é um fenômeno da Natureza, e a priori o Direito "não se importa" com esse acontecimento. Qualquer que seja o dano causado pelo raio o proprietário da casa não poderá exigir reparação de danos de ninguém, nem mesmo do Estado. Mas e se a casa for assegurada? Esse simples fato natural do raio será chamado de sinistro. Tendo causado um dano, a pessoa que tinha o contrato de seguro fará jus àquilo que se chama de prêmio (o recebimento do dinheiro do seguro). Logo, o raio, apesar de natural, passa a constituir um fato jurídico. O fato ligará segurado e seguradora, para que um, vinculado ao outro, exija determinada obrigação. Note também a característica básica do fato jurídico: tem que haver respaldo no ordenamento.  É exatamente esse o caso: a possibilidade de raios atingirem bens pode ser previamente especificada no contrato de seguro.

A morte de alguém provocará alguma perturbação no ordenamento? Não exatamente, o ordenamento jurídico não mudará por isso. Mas haverá repercussão justamente porque a morte da pessoa caracteriza um fato já definido. Qual o significado da morte? Fim da personalidade jurídica. Note que um cadáver não é uma pessoa, é um bem.

Com isso, podemos também anotar a seguinte regra: não pode haver uma fato jurídico sem uma relação jurídica associada. Podemos até "equacionar": fato jurídico = norma + fato. É um fato que, ganhando determinada relevância (valor), recebe uma norma.  Se não há uma norma, o Direito nem olha a relação, ou pelo menos nem deveria olhar.

Sobre isso o professor nos trouxe dois exemplos: um homem comparece ao cartório juntamente com seu companheiro, se dirige ao tabelião e diz: "eu amo tanto este sujeito que eu gostaria de oficializar minha relação com ele. Peço, mui respeitosamente, que nos declare oficialmente casados." o tabelião, por mais simpático que seja à opção sexual dos sujeitos, não poderá atender à solicitação. Isso porque o casamento homossexual não está previsto em nenhum ponto do ordenamento, e seria um fato estranho ao Direito. Portanto, essa relação entre os dois não passa de uma relação social, e não constitui uma relação jurídica.

Um outro exemplo seria o de um deficiente visual que, sentindo a aproximação da morte, escreve seu testamento em braile. Quando ele morre, o guardião abre o testamento e nota as bolinhas estranhamente dispostas. O falecido poderia muito bem ter escrito esse testamento de boa fé, mas o procedimento, que é claramente descrito na lei, não foi seguido: quando um deficiente visual deseja testar, ele deve comparecer com duas testemunhas, e também deverão estar presentes outras duas testemunhas, do cartório. O pretenso testamento deverá ser lido, por todos, em vós alta, e as testemunhas deverão assinar. Qualquer testamento feito por deficiente visual que não siga esse procedimento será nulo.

Logo, a relação se estabelecerá para um fato jurídico. Sem fato jurídico, a relação pretendida não haverá qualquer significado. O testamento em braile acima não pôde gerar nenhum efeito porque nulo, e portanto não constituiu nenhuma relação jurídica.

Já que entendemos o fato jurídico, vamos, então, pontuar alguns estágios para que ele fique definitivamente estabelecido.

A doutrina diz que há quatro desses estágios:

  1. Já estudamos quando vimos as características de toda norma jurídica: abstratividade (parte de uma evolução mental), bilateralidade, generalidade, heteronomia e coercibilidade. Abstratividade é a característica-irmã da hipoteticidade. Por exemplo: mulher, ao comprovar o estado gravídico, não poderá ser demitida. O mesmo para os alimentos devidos pelo pretenso pai. A hipoteticidade, então, é: "se a mulher está comprovadamente grávida, ela não poderá ser demitida."
  2. Concretização da hipotese. É a hora em que a hipótese sai da abstração e concretiza-se na figura de um, na individualização. Quanto ao raio, eu previ aquela hipótese ao adquirir o seguro e o sinistro efetivamente aconteceu.
  3. O terceiro estágio é o momento de analisar quais os efeitos que ocorrerão em cima disso. No caso do raio, o efeito deverá ser o recebimento do prêmio. Em outra hipótese, se um gato arranha a roupa de alguém, pode-se pedir indenização ao dono do animal porque este agiu com negligência por deixá-lo solto. Exame do fato no campo do Direito Civil: quem gera dano é obrigado a repará-lo.
  4. Verificar o plano da validade e eficácia. É aqui que começa a produção de efeitos.

Uma questão importantíssima em relação à interpretação dos fatos jurídicos é exatamente o último item acima. Isso consta no art. 104 do Código Civil, tratando da modalidade do negócio jurídico:

LIVRO III
Dos Fatos Jurídicos

TÍTULO I
Do Negócio Jurídico

CAPÍTULO I
Disposições Gerais

Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:

I - agente capaz;

II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

III - forma prescrita ou não defesa em lei.

Para terminarmos: qual a diferença entre o fato e o ato jurídico? O ato pressupõe a ação humana, a iniciativa. Precisa do elemento volitivo. O ato jurídico é uma subespécie do fato jurídico.