Direito Civil

Sábado, 21 de março de 2009

Representação negocial: continuação e introdução aos elementos de validade do negócio jurídico



Tópicos:

  1. Introdução
  2. Representação legal
  3. Efeitos da representação
  4. Procuração em causa própria
  5. Casos práticos de representação e contrato de gaveta
  6. Modalidades de negócios jurídicos
  7. A problemática do termo "faculdade"

Introdução

Diz o professor, com relação à Justiça de Aristóteles: olhem a maldade: o que Aristóteles dizia com relação à justiça? Ela tinha dois lados: o do legal e o do justo. E o que é a justiça justa? As pessoas que fazem mais do que as outras devem ser tratadas de uma forma diferenciada, ou vocês concordam que todo mundo é igual perante a lei? Muito bem. Então, quem veio à aula de sábado merece algo a mais? É claro. Pois é justamente isso que o professor está pretendendo. Vamos fazer um pacto em que ele vai dar dicas da prova... portanto, prestem atenção nas sublinhas, no que ficar subentendido.

Vamos ver hoje problemas práticos de representação, e depois entrar em modalidades de negócios jurídicos, também chamados de elementos acidentes do negócio jurídico. Saibam que vamos estar entrando na matéria de nossa prova, a última delas. Comecemos!

Estávamos falando de representação, mais especificamente de representação negocial. O professor disse que a representação é um instituto que vem facilitar, de certa forma, sobremaneira, a atuação de determinados agentes no que diz respeito aos negócios jurídicos. Reflitamos um pouco para ficar confirmada essa idéia: imaginemos uma pessoa extremamente atarefada, com várias empresas sob sua responsabilidade, muito grandes e disseminadas por várias regiões. Essa pessoa daria conta, humanamente, de estar em todos os lugares que fossem necessários e fazer todas as coisas que fossem necessárias pessoalmente? Sempre ela, ela e ela? Não. Então, a representação vem justamente com essa finalidade, com esse escopo, que é viabilizar determinadas circunstâncias para que possam ser contratadas; que determinadas expressões de vontade possam ser feitas não pessoalmente, mas por intermédio de alguém que seja seu delegado, seu representante. Atentem para a expressão dessa palavra: delegado. Não é delegado de polícia, obviamente. Aqui, falamos em delegação de poderes. “Delegado”, então, é sinônimo de “representante” no nosso estudo. Se na prova usar-se delegado, não se incomodem, é provável que aconteça. Vimos também a representação, ao estudar suas primeiras idéias, associada à incapacidade jurídica, em que em determinadas circunstâncias tolhem-se alguns direitos de personalidade. Regra: as pessoas que são consideradas absolutamente incapazes e as que são consideradas relativamente incaapazes sempre estarão sujeitas à representação. Os incapazes, no Código Civil, estão tratados nos arts. 3º e 4º. Cuidado, então, com a palavra “sempre”, que concurseiro adora, pois alguns são treinados para sempre julgarem como falsos quaisquer itens que tenham palavras como “sempre” ou “nunca”.

Por que estamos afirmando isso com uma certa dose de incisividade? Porque temos uma representação que não é essa imposta pela lei: há a representação voluntária. Portanto, quando colocamos isso em perspectiva, veja que chegamos à conclusão de que: a representação pode ser a do tipo legal, como a do pátrio poder, da representação de capaz; ou por acaso um pai pode dizer que não é representante de um filho, ou um síndico dizer que não é o representante do condomínio, assim como o inventariante em relação ao inventário, ou o síndico da massa falida com relação à empresa falida? Essas pessoas não podem se negar. São imposições advindas da lei.

Questão de prova: se o professor cobrar essa circunstância nas questões subjetivas, será justamente para diferenciar a representação legal da voluntária e dar pelo menos duas características, que já vamos adiantar aqui.

Representação legal

Advém da Lei. Quem diz quem é representante e quem estará sujeito à representação é a Lei. Mais que isso, os parâmetros, a extensão dos poderes são dados pela lei. Agora vejam: é possível substabelecer, ter poderes que, mesmo advindos da Lei, podemos delegá-los a outra pessoa? Podemos delegar o poder de representação do pátrio poder para o mordomo? Não, não é possível passar procuração em tais questões. Logo, a representação legal não admite substabelecimento, ou seja, não admite que deleguemos os poderes que a lei nos conferiu. Um dos motivos é evitar, por exemplo, que determinado sujeito desgostado pelos condôminos de um prédio se torne virtualmente o síndico por usar do seguinte expediente: combina com uma pessoa mais popular, para que ela se candidate e, ao assumir o cargo, esta delegar poderes ao sujeito que ninguém gostaria de ver como síndico.

Representação legal, portanto, não admite substabelecimento. Atenção para um detalhe que não consta nos livros: delegar poderes é uma coisa, e agir por conta deles é outra. Exemplo: sou síndico de um condomínio e tenho duas audiências marcadas para o mesmo dia, na mesma hora. A princípio, eu deveria estar presente nos dois lugares. Mas, o que eu faço, dada a impossibilidade física? Escolho a mais complexa, a mais importante em termos de valor de causa e constituo um representante. Note que tal representação não será do síndico, mas do condomínio. Uma coisa é, portanto, dizer: eu sou o síndico, e delego poderes de sindicância para outrem. Isso não é possível. Mas eu posso, no entanto, delegar os poderes do condomínio para que a pessoa represente o condomínio, não a pessoa do sindico. Muito cuidado então com a possibilidade de confusão. É capaz de cair em nossa prova e também em qualquer outra, até em concursos.

A representação voluntária, por sua vez, é aquela que será a mais comum, diríamos; a mais corriqueira, a mais habitual, porque esta sim está integralmente imbuída do nosso espírito da aula: o negócio jurídico. Não falamos que o negócio é uma circunstância advinda da autonomia das vontades? Os negócios podem ser onerosos ou gratuitos, mesmo para as representações. Mas o Código Civil e a ordenação como um todo nos autoriza fazer essa delegação de poderes.

Observação: direitos personalíssimos são indelegáveis; eles não admitem a transmissão de representatividade. Não posso, por exemplo, alugar o nome de alguém. Uma pessoa agredida pode me passar uma procuração para que eu aja sobre a honra dela, ou tratar da lesão corporal que ela tenha sofrido? Ou mesmo receber uma procuração para humilhá-la em público? Este objeto é lícito? Não. Então, na prova, dica esta que é mais uma conquista em razão da meritoriedade de estar aqui neste sábado, pode haver um problema envolvendo procuração cujo objeto seja impossível ou ilícito, ou os dois. Portanto treinem os olhos de vocês para esse tipo de circunstância. O negócio existe? Sim. Esbarra no agente capaz? Não. Na forma? Não, a forma própria não é requerida a não ser para determinados tipos de negócios jurídicos. O negócio em que a mãe deseja abrir mão do mátrio poder esbarrará na ilicitude e na possibilidade jurídica do objeto.

Representação cairá em questão subjetiva da prova.

Se os poderes são dados por um agente, então pode ou não haver substabelecimento. As partes irão decidir; normalmente a parte que delega. É uma preocupação de quem  está passando os poderes. Delegado = representante. Cuidado com as terminações: delegado e representante. As duas expressões serão usadas em prova.
 

Efeitos da representação

É uma leitura ipsis literis do art.116.

        Art. 116. A manifestação de vontade pelo representante, nos limites de seus poderes, produz efeitos em relação ao representado.

Sublinhem no art. 116 em seus Códigos: nos limites de seus poderes produz efeitos em relação ao representado. Todas as vezes que estivermos fazendo negócio com uma pessoa que tenha um representante, é fulcral que tenhamos informações a respeito dos poderes que ela tem? Sim, é fundamental. Como um representante vender um apartamento do representado que só lhe coube alugar. Se acontecer, pode-se buscar a anulabiliadade desse negócio. O poder de vender tem que estar determinado na procuração. Se não, haverá problema certamente. Os efeitos estarão no art. 38 do Código de Processo Civil:

        Art. 38. A procuração geral para o foro, conferida por instrumento público, ou particular assinado pela parte, habilita o advogado a praticar todos os atos do processo, salvo para receber citação inicial, confessar, reconhecer a procedência do pedido, transigir, desistir, renunciar ao direito sobre que se funda a ação, receber, dar quitação e firmar compromisso. 

        Parágrafo único.  A procuração pode ser assinada digitalmente com base em certificado emitido por Autoridade Certificadora credenciada, na forma da lei específica.

Ou seja, quase nada.

Os efeitos, portanto, são os do art. 116. Atenção à extensão dos poderes conferidos. Essa é a pedra de toque desse dispositivo. Logo, qual é o efeito da representação? O representado deverá honrar com os compromissos assumidos em seu nome. É aquela regra já exaustivamente repetida: quando coloco um delegado meu, um representante para fazer algo para mim, é como se fosse minha mão lá, assinando. Se o representado posteriormente falar: “mas eu não queria que você tivesse feito isso!” Não interessa. Deve-se se preocupar, portanto, com os poderes delegados.

Princípio da segurança dos negócios jurídicos: é a corrente objetivista da interpretação negocial. Qual a essência da corrente objetiva na interpretação negocial? Lembrando que, na subjetiva, o que se importa é com o íntimo. Na objetiva: o que importa é o externo, a vontade declarada. Vamos ver isso aqui agora.
 

Procuração em causa própria

Pergunta-se: alguém pode  figurar como comprador e vendedor ao mesmo tempo? Há algum empecilho ou obstáculo para isso? Vejamos.

Gutemberg é pintor talentoso, mas está procupado com sua inabilidade para manusear dinheiro e fazer negociações. Ele constitui Luciano como delegado para que ele possa vender todas suas obras. Gutemberg diz a Luciano, seu representante: "você está autorizado a negociar minhas obras em meu lugar, e cobrar no mínimo R$ 120.000,00 para cada quadro." Na constituição dessa relação de representação, há vontades declaradas de livre e espontânea vontade, e de boa-fé? Os agentes são capazes? Forma: exige-se uma especial? Objeto é lícito, possível e determinado ou determinável? Se tudo estiver ok, o negócio é válido.

No instrumento que os dois assinaram, existe uma pequena cláusula: "este instrumento é celebrado com a cláusula de procurar em causa própria." Ou seja, permite que o representante negocie por interesse próprio. Aí veremos o seguinte: no instrumento havia aquela representação de vontade, vinda de cada uma das partes, e Luciano olha para o quadro, pensa no valor de R$ 120.000,00 e decide: "farei um negócio com o Gutemberg." Mas Luciano é representante de Gutemberg. No instrumento de compra e venda, quem vai aparecer como vendedor? Luciano, não Gutemberg! "Luciano em nome de Gutemberg." Juridicamente é possível? A resposta é sim. O que diz, então, o Art.117?

        Art. 117. Salvo se o permitir a lei ou o representado, é anulável o negócio jurídico que o representante, no seu interesse ou por conta de outrem, celebrar consigo mesmo.

        Parágrafo único. Para esse efeito, tem-se como celebrado pelo representante o negócio realizado por aquele em quem os poderes houverem sido subestabelecidos.

Há muitos que entendem o contrário: dizem que o negócio é anulável e não pode ser feito. O certo é: “salvo se houver a permissão legal”. Devemos entender, portanto, que não pode. Só que, no Direito brasileiro, tudo o que não é proibido é permitido. O representado pode  fazer negócio consigo mesmo, desde que nenhuma vontade esteja viciada; se for o caso, o negócio será anulável. Se faltar a procuração, o negócio jurídico será anulável, não nulo. Se Gutemberg não achar ruim ter sido o próprio Luciano o comprador do quadro dele, sabendo inclusive que Luciano pagou o preço exigido, R$ 120 mil, pode Gutemberg reclamar de algo? A priori não. Entretanto, não foram colocados na procuração poderes para fazer negócio em causa própria. Então, Isabel chega para Luciano, que representa Gutemberg, e lhe diz: “que quadro lindo que Gutemberg está vendendo! Pago R$ 140.000,00 nele!” Luciano, que também tem interesse no quadro, se mantém quieto. Depois, Luciano volta ao seu representado e diz: “rapaz, infelizmente não apareceu ninguém oferecendo mais do que 120 mil pelo quadro. Eu compro de você por 120, pode ser?” E eles fecham o negócio. Um mês depois, para o azar de Luciano, Gutemberg esbarra com Isabel na rua, que lhe diz: “nossa, você é mestre no pincel! Cheguei até a oferecer 140 mil pelo seu quadro, mas não consegui comprar... você tá bem, hein?” É quando Gutemberg fica surpreso e irado por ter sido enganado pelo seu representante. Pode o negócio ser anulado? Sim, pois ouve um conflito de interesses entre representante e representado. O negócio é anulável, não nulo. 

Por que estamos dando grande ênfase a isso? Porque nos contratos de gaveta, que veremos depois, a maioria das procurações são para se fazer negócios em nome próprio. Art. 685 do Código:

        Art. 685. Conferido o mandato com a cláusula "em causa própria", a sua revogação não terá eficácia, nem se extinguirá pela morte de qualquer das partes, ficando o mandatário dispensado de prestar contas, e podendo transferir para si os bens móveis ou imóveis objeto do mandato, obedecidas as formalidades legais.

Como visto, não só é possível passar uma procuração em causa própria como também existe uma previsão legal para isso.

Por último, vamos ver uma situação não incomum: já que na representação negocial nós estamos trabalhando com suporte fático que envolve normalmente no mínimo três pessoas, o representado, representante e o agente que faz negócio com o representado, é muito comum haver um “boi na linha”: problemas de comunicação entre as partes. Então, o que o Direito faz? Ele cria uma válvula de escape para circunstâncias em que houver conflitos de interesse entre partes. Quando há um conflito de interesses entre tutor e tutelado, curador e curatelado, o conflito vai para a justiça o juiz decidirá. Tutela é apenas para menores, enquanto curadores são para maiores. Há exceção? Sim, uma situação extremamente improvável: nascituro com curador. É caso para remoção momentânea da capacidade da mãe. O termo correto seria tutor.

Então, havendo conflito de interesses devemos fazer uma análise circunstancial. Está errado afirmar que sempre é anulável o negócio com conflito de interesses. Deve-se olhar para as circunstâncias e o suporte fático. O efeito tem que ser pesado por alguns fatos:

Será que o negociante que fez um negócio com o representante sabia do conflito entre ele e o representado? Digamos que Leléu seja o representado, Lisbela seja a represente, e Inaura figure como o agente negociante. Quem estará exprimindo vontades, num contrato de compra e venda, por exemplo? Leléu e Inaura! É desse jeitinho que será cobrado. Cuidado com as confusões mentais. Leléu e Inaura são os que estão fazendo declarações de vontades. Lisbela é apenas a delegada (representante de Leléu). Então, o que se deve aferir é se Inaura estava ciente do conflito de interesses entre Leléu e Lisbela.

Seguindo o exemplo: se o agente com quem o representante faz o negócio estiver de má-fé? O que é má-fé, neste caso? Veremos a seguir. Está no art. 119.

Inaura deveria ter conhecimento do conflito de interesses. O negócio é anulável? Sim. Vamos ver o outro lado da moeda: Inaura está de boa-fé, o que inclusive é um pressuposto: as partes estão de boa-fé até que se prove o contrário. Se Inaura está de boa-fé, então ela  não tem conhecimento do conflito. Ela comparece, inocente e leal, e fecha negócio mesmo havendo uma disputa entre Leléu e Lisbela. O negócio se mantém porque Inaura está de boa-fé! É o princípio da conservação dos negócios jurídicos. Mesmo que seja prejudicial a Leléu, é menos danoso do que o prejuízo para toda a sociedade. Leléu poderá, depois, processar Lisbela, mesmo que seja difícil de provar.

O prazo para a anulação do negócio jurídico no qual tenha havido conflito de interesses é de 180 dias, conforme parágrafo único do art. 119:

        Art. 119. É anulável o negócio concluído pelo representante em conflito de interesses com o representado, se tal fato era ou devia ser do conhecimento de quem com aquele tratou.

        Parágrafo único. É de cento e oitenta dias, a contar da conclusão do negócio ou da cessação da incapacidade, o prazo de decadência para pleitear-se a anulação prevista neste artigo.

Na área da advocacia, para quem for pegar a parte prática, o comum é a ocorrência de conflito de interesses entre o sujeito e seu advogado. O cliente quer algo, enquanto o advogado não quer por várias circunstâncias. Exemplo: o advogado tem um cliente, numa causa trabalhista, que teria R$ 120.000,00 para receber, mas a empresa está quebrando, os sócios já estão indo à loucura, e há um dinheiro depositado em juízo, resultante de uma ação cautelar que alguém havia entrado para impedir que os sócios paguem credores ou tributos ao invés das dívidas para com os funcionários. O advogado diz ao cliente: "olha, você até poderia ganhar esses 120 mil, eventualmente, mas surgiu uma possibilidade de acordo aqui no valor de R$ 50 mil. Você pode pegar agora, e terá esse dinheiro garantido. Ou então corra o risco de não receber nada, sem contar com a demora até a ação ser julgada." O cliente, entretanto, quer receber os 120, contra a recomendação de seu advogado. Na verdade, a intenção do advogado é garantir o acordo, que daria dinheiro certo e rápido ao seu cliente, já que a ele caberia um porcentagem que incidiria sobre esse valor, logo, se a causa for perdida, a porcentagem não será ganha, e o advogado também embolsaria menos.  Surgiu, então, um problema: o conflito de interesses entre o advogado e o cliente. Pode o advogado dizer: "eu faço sim esse acordo”? Não, pelo menos juridicamente falando. Afinal ele está representando quem? O cliente! Então, ele estaria fechando seus olhos para um direito que não é dele próprio, mas do cliente. 

A situação poderia ser a inversa: o advogado, confiante de que a ação será deferida, prefere que o cliente ganhe mesmo os 120 mil, e tenta convencê-lo para tomar esse rumo, e não aceitar o acordo que lhe oferece 50. O cliente, como é comum, já está se sentindo desgastado com o processo e quer dar logo um fim a ele, e garantir pelo menos uma quantia razoável. Só que ele havia acertado com o advogado que, se a causa fosse ganha, o advogado teria direito a 30% do valor da causa, portanto 30% incidindo sobre R$ 120.000,00, e não sobre R$ 50.000,00: logo, em vez de ganhar os R$ 36 mil que havia planejado, o cliente está querendo algo que possa, na melhor das hipóteses, render ao advogado apenas R$ 15 mil. Seria outro caso de conflito de interesses, mas com a mesma essência: o advogado, que deveria representar o cliente, age em causa própria. É algo extremamente comum de se acontecer.

Caso prático: marido e mulher, casados há 3 anos, têm uma filha de um ano. A mulher tem transtorno bipolar e o homem é homossexual. A separação de corpos houve porque ela havia quebrado dois dentes dele, mais deslocado seu testículo esquerdo (sim, isso é possível), e depois foi parar no IML com dois dentes do ex-marido presos ao seu corpo. Desconsiderando toda a história louca de vida dos dois, eles construíram, enquanto a situação ainda era apenas caótica, uma casa de R$ 350 mil reais em cima de uma casa que não era deles. Essa “casa-base”, na verdade, era a casa era da sogra dela, mãe do ex-marido. Não é que tudo que construído num imóvel se incorpora a ele? Logo, ela investiu R$ 175 mil, que é igual à metade de 350 mil, para a sogra. Para melhorar a situação dela, o ex-marido pede demissão do emprego para não pagar pensão alimentícia. Os carros que o homem dirige não estão no nome dele. A mulher quer reaver parte dos 350, com todo o direito. Mas ela tem transtorno bipolar, logo ora ela quer uma coisa, ora quer outra. O “adversário” chegou a oferecer R$ 60 mil, mas, na verdade, a grosso modo, ela deveria ficar um patrimônio de 220 mil. O advogado dela é o primeiro a dizer: “pega os 60!”. Mas ela não quer e não deveria, se estivesse lúcida, querer tão pouco. O advogado, entretanto, comparece em juízo, carregando sua procuração, dispositivo que contém os poderes delegados pela mulher a ele, e diz: "excelência, eu concordo com a partilha proposta pelo ex-marido." O negócio seria anulável? Perfeitamente, pois ouve conflito de interesses entre cliente e advogado. Neste caso em particular, entretanto, seria difícil a ela provar.
 

Casos práticos de representação e contrato de gaveta

Contrato de gaveta: negociação firmada com a cessão de direitos envolvendo procurações com cláusula "em nome próprio" e com poderes para substabelecer. Naturalmente são celebrados com a intenção de se ocultar de determinado terceiro.

Vamos ver agora os riscos do negócio feito por meio de representação. Há um caso prático e extremamente comum em nossos tribunais, que envolvem o que chamamos de contrato de gaveta. O contrato de gaveta já é reconhececido judicialmente; antigamente eram rechaçados pela jurisprudência. De tanto termos problemas relacionados a contratos de gaveta, não podemos mais desconsiderá-los. O que é um contrato de gaveta? Como o próprio nome diz, é um contrato... para ficar na gaveta! Não ser mostrado. As partes têm vergonha, já que tomaram certas iniciativas que, se fossem perfeitamente lícitas e morais, não precisariam ser ocultadas de ninguém. Uma esfera que lidou muito com isso foi a do sistema financeiro de habitação. Eram circunstâncias mais ou menos assim: havia uma série de pessoas numa cadeia de cessionários, de cedentes, enfim, nessas diversas relações jurídicas que entrelaçam os agentes Douglas, Frederico, Francisquinha e Prazeres, que, como vamos ilustrar adiante, se entrelaçaram em relações de representação com efeitos muito desagradáveis. No contrato de gaveta, fazem-se cessão de direitos (notem que não se fala em venda, porque só se pode vender o que é de propriedade da pessoa). Tem a ver com os condomínios irregulares e invasões em Brasília. Tem-se o contrato de cessão de direitos. Ao ver esse termo, pode ficar atencioso pois tem algo errado. Por que não se faz uma escritura pública ao se negociar um bem imóvel, em vez do tal do "contrato de cessão"? Algo está muito estranho. O instrumento particular fala em cessão de direitos, quando deveria ser usado um instrumento público que é a escritura pública.

Logo o contrato de gaveta trata de cessão de direitos e, para que ele seja eficaz, ele deveria envolver uma procuração para fazer negócios em nome próprio e poderes para substabelecer, que é quando se pegam os poderes de alguém e passam-se para frente. Exemplo: Isabel constitui Luciano como advogado. Ele, depois de um tempo, passa para Lígia os poderes que Isabel lhe passara. Agora, podemos ter duas circunstâncias: Luciano sendo procurador de Isabel e juntamente com Ligia, mas sem que Isabel saiba sequer da existência dessa pessoa chamada Lígia, ou então Luciano toma os poderes que lhe foram dados por Isabel e passa definitivamente para Lígia, e sai do circuito. Agora, Isabel tem Lígia como sua delegada (representante) mas sequer sabe disso.

Então, vamos ao caso que começamos: Douglas comprou uma casa em Valparaíso em 1999 e fez o financiamento na Caixa Econômica Federal. Ficou acertado que a mensalidade seria de R$ 600,00; a casa era de dois quartos, satisfatória para o momento de início de vida de casado. O valor do financiamento da casa era de R$ 150 mil. Então ele contraiu um empréstimo com o banco, que lhe deu dinheiro; ele então pôde comprar a casa, que estava, portanto, financiada em 20 anos.

Em 2001, Douglas estava melhor de vida. Ele e sua esposa resolveram se mudar. Poderiam naquele momento vender a casa? Não, a casa ainda não era deles pois não estava quitada. Eles foram ao banco e disseram sobre o problema que tinham, falaram ao gerente que não querem mais morar lá em Valparaíso, e que tinham um financiamento que já pagaram por dois anos, e que faltam, portanto, 18 montantes para pagar. O banco lhes responde: "claro, pague o que você deve que eu te ajudo, se não tem condições agora, paciência." Douglas se enfurece. Alguém lhe dá uns conselhos: “Douglas, sabe o que você pode fazer? Quanto você já gastou?” “Já gastei cerca de 15 mil até agora.” – responde Douglas. O sujeito então propõe: “vamos fazer o seguinte? Você não quer fazer a venda do ágio dessa casa? Você passa ela pra frente a pessoa te paga o que você já gastou, e ela assume o seu financiamento. Mas com um detalhe: você não pode falar para o banco, porque ele fez uma projeção, um cálculo individualizado para você, para o seu perfil”. Então, Douglas gosta da idéia e vende a casa para Frederico. O que Douglas e Fred fazem? Um contrato de gaveta. Douglas vende o ágio, e Fred se compromete a pagar tudo direitinho já que o contrato de financiamento junto ao banco ainda está no nome de Douglas. Fred concorda e tranquiliza Douglas. Assim, Douglas passa a Fred uma procuração, porque, afinal de contas, qualquer coisa que for buscada junto ao banco tem que ser feita em nome de Douglas, não de Fred. Se esse financiamento chegasse ao final, Fred poderá passar a casa de Douglas para ele, sendo que Fred seria procurador de Douglas. Fred vai aparecer, portanto, como vendedor (assinando em nome de Douglas) e também como comprador (procuração em causa própria).

Logo, houve até agora dois anos de pagamento. Entre 2001 e 2005 nada se pagou. Francisquinha entrou no jogo. Lembrem-se que Douglas, em sua procuração, deu amplos e irrestritos poderes para Fred. Francisquinha assume o imóvel, e passa para Prazeres em 2007, também sem pagar nada. Aí, alguém comenta com Prazeres que ela está pagando uma prestação muito alta. Prazeres tem outra ocupação, diferente da de Douglas. Ela (Prazeres) entra com ações contra a Caixa. Mas em nome de quem Prazeres está processando a Caixa? Em nome de Douglas! Alguém inclusive botou na cabeça de Prazeres que ela poderia pleitear uma redução de parcelas, porque ela é jornalista, não engenheira, como Douglas, que ganha mais. Digamos que ela perde as ações e termina tendo que pagar R$ 50.000,00 em honorários. Só para constar: a dívida acumulada entre 1999 e 2007 é de R$ 332 mil, mais os 50.

Douglas tinha esquecido disso desde 2001. Em 2009, ele foi à Caixa pedir um financiamento para tratamento em Cuba, mas o funcionário da Caixa diz, depois de olhar o registro de todo esse histórico: “rapaz, você está doidão? Veja aqui o tanto de débitos em seu nome!” E Douglas tem uma surpresa.

Este problema, tão astronômico, é na verdade um problema simples para não se ter: apenas com um pouco de aconselhamento jurídico. Como evitar? Não se passando procurações com poderes irrestritos a pessoas, quem quer que seja, e muito menos se esquecer das procurações passadas em seu nome. Pode-se, por exemplo, proibir o substabelecimento expressamente. Atenção também para os prazos pelos quais se deseja conceder os poderes.

Quando passamos uma procuração para alguém, e este repassa para aquele, e assim sucessivamente, se houver uma interrupção nessa cadeia, existe uma cisão? Sim. Prazeres não tem poderes diretos de Douglas. O substabelecimento veio de Francisquinha, que morreu. O que Prazeres pode fazer? Rezar para encontrar Douglas, para que este lhe dê uma procuração direita. Então, notando a situação desesperadora de Prazeres, ele diz: “tudo bem, me dê R$ 20 mil aí”. Prazeres, enraivecida com a ganância de Douglas, resolve procurar Frederico.

Agora pensem: e se Douglas morrer? Seus filhos herdarão aquela casa, epicentro de todo o conflito. Eles ficarão surpresos: “nossa, quer dizer que havia uma casa no nome do papai?” Nesse caso, qualquer ação ajuizada por Prazeres contra Douglas deverá cair sobre o espólio. A dificuldade de arrumar provas eleva-se.

Para se divertir, imagine essa situação associada a um processo de ausência! Dica: o processo de ausência estabelece morte presumida. 
 

Modalidades de negócios jurídicos

Este é o último conteúdo antes da prova. Então se lembrem que a avaliação vai até modalidades de negócios jurídicos, inclusive.

Os negócios jurídicos chamados de puros e simples são aqueles que devem obediência exclusiva aos elementos essenciais ou de validade previstos no art. 104.

        Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:

        I - agente capaz;

        II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

        III - forma prescrita ou não defesa em lei.

Ocorre que, em determinadas circunstâncias, as partes contratantes podem desejar "enriquecer" ou tornar mais complexas ou requintadas as suas vontades. Isto será possível por meio dos chamados elementos acidentais dos negócios jurídicos ou também chamados de modalidades de negócios jurídicos.

São acidentais porque não essenciais. No entanto, uma vez estipulados, passam a ser obrigatórios e se confundirão com o próprio negócio entabulado. Em suma, as modalidades não poderão ser desconsideradas se já combinadas.

Antes de mais nada, esses elementos são acidentais. Ou seja, para que o negócio subsistisse, se mantivesse válido e eficaz, tais elementos não precisariam estar presentes. Tanto é assim que temos negócios que são chamados de puros e simples: são aqueles que precisaremos olhar única e exclusivamente para os elementos de validade. Note que até agora não usamos o termo “elementos essenciais”. Usamo-los agora para compará-los com os acidentais. Os essenciais, como já sabemos, são: vontade espontânea e de boa-fé, objeto lícito, possível e determinado ou determinável, agente capaz e forma. Ao reunir esses quatro elementos, temos um negócio ótimo, válido e eficaz. Os negócios são puros e simples.

Mas o homem é criativo por natureza, e ele pode, em algumas circunstâncias, querer jogar com a sorte, querer garantir, dando uma “forçada de barra” para que determinadas circunstâncias aconteçam. Então imaginemos: até então, falamos de negócios jurídicos puros e simples. Demos exemplos em que tínhamos agentes, declarações de vontade recíprocas, objeto que precisava ter sua licitude, sua possibilidade e determinabilidade respeitadas, e a regra geral que era a dispensa de forma. Digamos que Cabo Sitonho queira fazer uma aposta com o dinheiro do Tenente Guedes. Este empresta àquele um dinheiro para apostar numa corrida de cavalos, já que o Cabo ficou sabendo de uma nova barbada. Ten. Guedes empresta o dinheiro, e eles acertam que, se Cb. Sitonho ganhar, ele dará ao Tenente 50% do valor do prêmio. Há vontade, agentes capazes, objeto lícito, possível e determinado, e não exige forma específica. Mas vocês não concordam que faz parte desta combinação uma circunstância que pode ou não acontecer? Será o Cabo Sitonho sempre, em qualquer circunstância, obrigado a dar o dinheiro para o Tenente? Até porque se Sitonho jogar e não ganhar, já estará assim livre do compromisso, que sequer surgiria. Mas se ele aposta e ganha, surge daí uma imposição para o Cabo? Sim. São, portanto, circunstâncias em que teremos a possibilidade de lidar com os direitos subjetivos.

Falando em direitos subjetivos, vamos ter um acordo de vontades que gerará os efeitos desejados. A moral da história é que o homem, por ser criativo, quererá colocar um detalhe, uma circunstância a mais no negócio: qual é a característica dessa circunstância? Ela não é essencial. O negócio poderia muito bem existir sem ela. Mas é algo que os sujeitos que negociam querem. Então eles requintam suas vontades e fazem que daí surjam circunstâncias que lhes sejam vantajosas ou eficazes. Assim, por exemplo, um deles reserva um dote para uma filha, já que sua família tem a linhagem perpetuada. Pode ele vincular uma doação, uma promessa, emprego ou pensão a alguém? Cabe ao sujeito que recebe a proposta aceitar ou não. Era o que se fazia: “regime dotal”. Normalmente eram cavalos, cabeças de gado, terras, e várias formas de presentear, agraciar o genro. Enfim, as modalidades são elementos que usaremos para enriquecer os negócios jurídicos. Também são chamadas de determinações acessórias da vontade principal. Se temos um negócio só com a vontade principal, o que nos importa é que ele esteja respeitando os elementos de validade, como do art. 104 do Código Civil. São os negócios puros e simples. Então, já temos a compreensão de que são negócios que não estão envolvendo as modalidades, ou os elementos acidentais.

Entendido o que é um elemento acidental do negócio jurídico, vamos ressalvar: não é porque ele é acidental ou acessório que ele pode ser desconsiderado. A partir do momento que ele está presente em nosso negócio, em que ele é criado pelo negócio, ele se torna algo de observância obrigatória. Apesar de acessório, portanto, é obrigatório. Na prova, se for colocado: "as modalidades são conhecidas pelo termo acessórios; uma vez contratados, uma vez firmados, se torna um fato integrante do contrato e passa a ser obrigatório." verdadeiro.

Elementos acidentais previstos em nosso Código Civil:

Seja qual for, serão chamados de acessórios. Podemos ter uma condição e um encargo, ou somente um termo, ou qualquer combinação que quisermos. Esses elementos são independentes. Podemos estabelecer somente a condição, misturar a condição com o prazo, ou estipular um encargo juntamente com deles, unir os três, o que for.

Vamos ver, agora, um a um, e depois vamos fazer uma tabela comparativa. Freqüentemente isso termina em confusão. Por isso o professor pretende reservar três a quatro aulas apenas para modalidades.

Então, o Cabo Sitonho e o Tenente Guedes fizeram a combinação para apostar na corrida de cavalo. Se Sitonho ganhar, dará a metade para Guedes. Quais as características dessa combinação? Primeiramente, está-se vinculando o surgimento de uma obrigação entre eles para uma coisa futura. E mais: da maneira como foi colocado, eles estão vinculando, entrelaçando as circunstâncias a algo que, primeiramente, acontecerá no futuro, e ainda é algo incerto: pode ou não acontecer. Então a essência da modalidade chamada condição se estrutura nessas duas características: algo que está por acontecer e, se acontecer, aí sim surgirá ou extinguir-se-á um direito. A condição remete a um evento futuro e incerto; de acordo com Paulo Nader, "condição é elemento voluntário e acidental que subordina o nascimento ou extinção de Direito subjetivo a um evento futuro e incerto".

Podemos ter uma condição que suspende o direito, ou seja, não há que se falar em direito "até e se ela acontecer", e temos também outra condição que acaba com o direito; ele continuará existindo até e se algo acontecer.O que nos leva a ter dois tipos de condição: uma, a suspensiva, que suspende o direito, e outra chamada extintiva, que extingue o direito. Então vamos lá: o Cabo poderia, também, dizer para o Tenente: “me empreste R$ 1000,00 para que eu aposte. Mas vamos fazer assim: você me empresta os mil e eu te pago 100 por dia. Vou apostar no cavalo no dia 27/3. Se eu não ganhar, nada te devolvo.”

Concordam que começa a haver um direito diário em favor do Tenente Guedes de receber? E, se o Cabo ganhar, eles terão uma condição que extingue o direito? Sim. Se trata de uma condição extintiva, portanto: uma vez ocorrido o evento, cessa-se o direito de Guedes a receber os R$ 100,00 diários.

Há também o termo. O Cabo propõe ao Tenente: “me dá aí os R$ 1000,00 que eu te pago exatamente no dia 1º de setembro.” Assim, Cabo Sitonho joga a promessa para o futuro, mas um futuro que acontecerá certamente. Então isto não é mais uma condição, mas um termo ou prazo. A característica do termo é que ele seja futuro, mas certo, ao contrário da condição, que era sobre futuro incerto.³ Veremos o termo melhor na próxima aula.

Moral da história: elementos acidentais são acessórios, estipulações acessórias complementares à vontade principal, nem por isso deixam de ser obrigatórias, e se dividem em três categorias: condição, termo e encargo.

A problemática do termo "faculdade"

Olhem o termo faculdade. Aprendemos em Introdução ao Estudo do Direito que direito subjetivo é a faculdade de agir, ou facultas agendi. Só que, depois que o professor começou a dar aula de introdução, havia uma situação que ele pensava e que não se encaixava, e colocava em risco essa definição de facultas agendi. Qual a idéia de faculdade? De escolha. Por exemplo: nossa prova consistirá em 5 questões subjetivas, e o professor está nos facultando a escolher duas para responder. Teremos a faculdade de escolher apenas duas. O que esperar? E se alguém quiser passar por sábio e escolher as questões sem vê-las primeiro? Não é essa a idéia do professor. É justamente nesse sentido que reside a inquietação dele. Quando falamos que direito subjetivo é a faculdade de agir, pressupõe-se que o sujeito esteja conhecendo o seu direito, e então opte por exercê-lo ou não. Mas, como explicamos uma pessoa que tem o direito mas não sabe que o tem? Concordam que se usássemos o termo faculdade de agir para pessoa que não sabe que tem o direito, então é como se ela não tivesse o direito? Mas não é isso que acontece: o direito subjetivo é aquele que o Código reserva à pessoa, independente de ela querer/saber ou não. Em vez disso, o professor prefere o termo possibilidade de agir. Assim, retira-se a história de a vontade estar necessariamente ligada  ao direito subjetivo.


  1. Contrato de gaveta, fiança, casamento com procuração, evite: é tudo coisa do Código de Direito Satânico, alerta o professor.
  2. Cavalo-revelação, desconhecido, que poucos sabem que tem grandes chances de ganhar a corrida.
  3. Estudaremos o encargo depois.