Direito Constitucional

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Separação dos poderes




Tópicos:
  1. Leituras obrigatórias
  2. Introdução
  3. Histórico
  4. John Locke
  5. Montesquieu

Leituras obrigatórias

  1. Capítulo VI do livro XI de Do Espírito das Leis, de Montesquieu;
  2. Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do Direito Constitucional. São Paulo, Saraiva, 2009, págs. 245 a 268.

Introdução

Vamos começar hoje a estudar a organização do Estado e, dentro da organização do Estado brasileiro, veremos a organização dos poderes. A primeira observação a ser feita é quanto à imprecisão dessa muito utilizada expressão, a “organização dos poderes”. O problema está na palavra poderes. O poder do Estado é mais de um? “Poder” é substantivo abstrato, que não pode ser dividido; o poder é único. O país é soberano, e essa soberania é a expressão do poder que se exerce naquele Estado. O poder é uno e indivisível. Então, não são poderes, mas competências ou funções do poder. Quais são essas funções que o poder tem que desempenhar em prol de uma coletividade que vive e forma um Estado? São elas a função de governar, ou seja, administrar; a de legislar e a de julgar. Essas funções é que têm que ser organizadas, mas não “os poderes”.

Histórico

Como, quando e por que surgiu essa idéia da organização das funções e que se tornou uma expressão consagrada como “organização dos poderes”, ou “separação dos poderes”? Foi na época do Iluminismo. Surgiu a partir da necessidade de se ter segurança jurídica, característica do absolutismo. Essa segurança se consegue com a limitação do poder. A idéia, portanto, foi buscar como que se limita o poder. Montesquieu surge no cenário da época num momento bem oportuno; disse a coisa certa no momento certo. Por que limitar o poder? Ele partiu da premissa de que o poder vai até onde encontra limites. Podemos dizer que existe uma concordância geral de que todo aquele que detém o poder tem a tendência a abusar dele. Então, pela disposição das coisas, para que haja restrição e não haja abuso, é necessário que o poder limite a si próprio. Mas como?

A primeira fórmula que surgiu para a limitação do poder foi sua separação em órgãos, cada um exercendo uma função primordialmente. Há uma outra fórmula, também conhecida, que é a divisão territorial do poder. É a idéia da descentralização do poder dentro de um Estado. Essa é a idéia do federalismo. Originariamente ele surgiu não como uma idéia de limitação, mas de associação de estados em busca de um objetivo comum: proteção, segurança e desenvolvimento. Posteriormente se constatou que todo poder que é descentralizado é limitado, pois deve-se traçar um conjunto de competências para distribuir nas esferas existentes. Quem avançar na competência do outro está cometendo abuso. Vamos estudar essa forma de limitação depois.

A separação dos poderes surgiu no Iluminismo. Mas Aristóteles já falava sobre algo sobre a existência das funções do Estado. Na antiga Grécia havia quem decidisse os litígios, enquanto em Roma havia as assembléias.

Aristóteles já identificara as três funções do Estado. Mas os dois grandes autores modernos da separação dos poderes são John Locke (1632 – 1704) e Montesquieu (1689 – 1755), que nem se referem a Aristóteles; não trazem idéias dele. Modernamente falando, esses dois autores são os originais quando o assunto é separação de poderes. Ambos falam na limitação do poder por meio dessa separação. Todos concordam que existe a tendência ao abuso. Seria necessário, portanto, que a pessoa que elaborasse as leis não fosse a mesma que as aplicasse, pois isso geraria abuso e tirania, segundo Montesquieu. Logo, ele teve a idéia de que cada órgão deveria ter sua função. Mas ele não diz, em sua obra, que seriam funções exclusivas. Seria necessário também que os poderes fossem independentes e iguais; para isso, eles teriam que desempenhar funções que não lhe eram típicas. Como, por exemplo, na atribuição de promover concurso público, que é essencialmente uma tarefa administrativa. Caso seja necessário um concurso para provimento de cargos em alguma repartição do Judiciário, será ele mesmo quem o promoverá, não o poder Executivo. Se o Judiciário dependesse do Executivo, aquele ficaria na mão deste, e não haveria equilíbrio entre os poderes nem independência entre eles. Os tribunais também elaboram seus regimentos internos, que são formas de "legislar", atípicas do poder de julgar, para que tenham independência em relação ao poder Legislativo.

Montesquieu reconheceu isso desde o início. É o sistema de freios e contrapesos, que visa dar independência e autonomia aos poderes.

John Locke

Teórico da Inglaterra que concebeu a idéia da separação dos poderes, mas não como conhecemos hoje. O grande autor desse assunto, na verdade, é Montesquieu. Como Locke pensou? Na Inglaterra, deveria haver um Legislativo, e dentro deles estavam os juízes. E isso corrobora o que hoje conhecemos como sistema jurídico inglês: Common Law. É um Direito consuetudinário e baseado nos casos concretos. Então, a jurisprudência é uma forte fonte do Direito. Locke também concebeu duas outras funções: a executiva, de executar as leis, e a função federativa. Veja bem a palavra: federativo. Nós vamos estudar lá na frente a forma de Estado chamada federação. Por que federativo está aqui citada e por que federação é uma forma de Estado? Qual o significado dessa palavra? A origem das palavras é importante. “Federação” vem de foedus, que significa “aliança”. Então está explicado: aliança entre estados. E qual é a função federativa? Formar alianças com Estados estrangeiros, celebrar a paz, declarar a guerra, é, portanto, uma função de relações internacionais.

Assim, Locke pensou numa divisão bipartida das funções do Estado.
 

Montesquieu

Já Montesquieu foi à Inglaterra estudar a separação dos poderes daquele país. Ele admirava a Constituição inglesa. Depois, escreveu a doutrina da separação dos poderes. Ao fazê-lo, ele, apesar de se basear no sistema inglês, não descreveu aquele sistema exatamente, uma vez que na Inglaterra já se tinha o parlamentarismo, em que a funções de legislar e de executar são imbricadas. Diferente do presidencialismo. Montesquieu observou a Inglaterra, tomou o que lhe interessava e propôs uma separação dos poderes própria, com poderes claramente definidos. Só que ele não chamava o Judiciário por esse nome, mas de executivo das coisas que dependem do Direito Civil. O Executivo propriamente era o “executivo das coisas que dependem do Direito das Gentes”. Também estão aqui as funções de relações internacionais. Direito Internacional público, por exemplo.

Os dois grandes sujeitos do Direito Internacional são os Estados e as organizações internacionais, como a ONU, OPEP, OAE, OTAN, etc.

Logo, o Direito das Gentes é o nome antigo de Direito Internacional Público. Jus gentium, contraposto ao jus civilis. lembre de Introdução ao Estudo do Direito ¹. Isso porque a natureza da função de julgar não difere da função executiva. O que é a função executiva? O que faz o juiz? Executa as leis! A natureza das funções é a mesma. Elas se diferem apenas em alguns aspectos. O Executivo aplica as leis de ofício, sem o pressuposto que tem que existir para que o juiz aplique a lei: a provocação do Judiciário em face de um conflito de interesses. No Executivo não existe o pressuposto da provocação. Se lá surgir um conflito, quem decide? O Judiciário. É Montesquieu que, na verdade, teve a idéia da separação em três órgãos. São as funções que se identificam no Estado: administrar, julgar e legislar. Tais funções devem, de acordo com ele, ser feitas por órgãos distintos, para que não haja abuso, tudo em busca da limitação do poder.

Quando é que essas idéias tiveram seu ápice? Note que ele publicou a obra Do Espírito das Leis em 1748, época em que o anseio geral era a liberdade individual e a segurança. Poucas décadas depois estourou a Revolução Francesa e a queda do antigo regime (a primeira simboliza a segunda). Essa idéia foi tão bem aceita e assimilada que ela veio a ser consagrada no artigo XVI da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Os direitos humanos e direitos fundamentais eram consagrados em textos, mas não nas Constituições. Declaração de Virginia (1776, a conhecida Bill of Rights), era um texto... as Constituições vieram para garantir esses direitos, positivá-los. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão era um texto concebido a partir da Revolução Francesa. Nesse art. 16 havia o seguinte:

XVI
Qualquer sociedade na qual a garantia dos direitos não está em segurança, nem a separação dos poderes determinada, não tem Constituição.

Em 1789, a palavra de ordem era liberdade. O Estado que surgiu a partir daí foi o Estado dotado de limitação. Essa limitação tinha que vir por escrito. Daí as Constituições e as declarações de direitos. Qual foi a primeira Constituição escrita do mundo nesse sentido? A americana, de 1787. Mas, historicamente, como que se dá a elaboração dessa Constituição? Voltamos onze anos, ao dia 4/7/1776. Os estados assinam sua declaração de independência em relação à Inglaterra. De 1776 a 1787, o que ocorreu? Os estados acabam de ganhar sua soberania. Eram 13, na época. Só que eles, é claro, não conseguiram tão facilmente a independência; Inglaterra não deixou barato. Então, o que fazer? Guerra.

O que os estados perceberam? Separados, independentes, cada um com sua soberania, eles não conseguiriam manter essa independência. Durante esses 11 anos, as lutas pela manutenção da independência foi grande, até chegarem à conclusão de que a união era a saída. Então surgiu, como documento escrito, a Federação Americana. Antes, havia apenas tratados celebrados entre essas treze colônias; tratava-se, portanto, de uma confederação.

Então, em 1787 surge a Constituição americana. Foi em face da necessidade de liberdade em relação à metrópole. Que Estado é esse que surge, e qual o conteúdo dessa Constituição que surge a partir dessa revolução? Surge o Estado liberal, o Estado mínimo. E a separação dos poderes veio como música para os ouvidos. O Estado tem que legislar, administrar e julgar. Para isso, suas funções têm que estar em três órgãos distintos.

Mas a história não parou aí. Ela se desenvolve de acordo com as lutas e necessidades da sociedade. Se consolidaram aqueles direitos que garantem a liberdade das pessoas em relação ao Estado, fixando o mínimo de atribuições a ele, e a partir daí tudo seria laissez faire et laissez passer.

A sociedade cresce. A grande maioria formalmente usufruía daquela declaração de direitos, mas a justiça e a igualdade materiais ainda não tinham eficácia. Todos tinham liberdade, mas não igualdade. “Como vou usufruir da minha liberdade se tenho que trabalhar dezoito horas por dia?” – perguntava-se.  Então, as Constituições passaram a adotar direitos chamados sociais, que passaram a integrar o rol dos direitos fundamentais. São direitos que buscam a igualdade entre as pessoas. Só que, para que eles fossem objeto de aplicação e gerassem a igualdade buscada, seria necessária a atuação do Estado. Portanto ele não poderia mais ser um Estado mínimo. Ele teria que sair da inércia. o Estado deixa de ser liberal ideologicamente, liberal clássico. Passa ser Estado social.

Aos direitos fundamentais individuais foram acrescidos os direitos sociais. Mas, qual a importância disso para a separação dos poderes? Houve uma evolução que Montesquieu não previu. Saímos daquelas circunstâncias ideais do funcionamento da separação dos poderes que Montesquieu idealizou. Logo a separação dos poderes não poderia mais ser tida como uma fórmula acabada e sólida. Cada Estado deveria buscar, de acordo com suas necessidades, a forma de aplicá-la. Tudo é com o fim de limitar o poder. Montesquieu jamais pensaria, por exemplo, em Medida Provisória. Podemos concluir que a separação dos poderes evolui no tempo e no espaço.

No Estado de Direito já vigorava o princípio da legalidade. O que é? Algumas coisas temos que decorar. É o conteúdo do inciso II do art. 5º da nossa Constituição.

        Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

        II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

Derivado desse princípio há o princípio da reserva legal, que é um princípio penal, previsto no art. 1º do Código Penal:

Anterioridade da Lei        

        Art. 1
º - Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.

Para que o Estado me obrigue ou penalize por algo, precisa haver uma lei. Isso também serve no âmbito do Direito Administrativo, em relação ao agente público, apenas com a regra inversa: ele só poderá agir se aí lei autorizar. Num Estado liberal, há muita demanda por lei? não, porque pretende-se que as pessoas tenham liberdade. Logo a administração também era mínima, balizada por uma lei também mínima.

O surgimento de necessidades sociais gerou um tranco na separação dos poderes. Veja bem: o legislativo é um órgão coletivo, que contém representantes do povo, e todas as coisas têm que ser debatidas. Por isso que o local de trabalho deles é o parlamento. A conveniência e necessidade de uma pretensa lei têm que ser debatida.

Veja o Código Civil: quanto tempo ele demorou a se converter em lei? 29 anos. É da natureza do Legislativo a vagarosidade justamente para que haja o debate. Mas isso não poderia continuar assim se a sociedade urgia para o nascimento de uma legislação. Digamos que se trate da regulamentação do fornecimento de gás natural. Tem o Legislativo competência para legislar rápida e tecnicamente sobre isso? Não, então o Executivo deve atuar, por meio de medidas legislativas do poder executivo. Leis Delegadas, Decretos-Lei e Medidas Provisórias. Elas saem completamente da idéia de separação dos poderes clássica, prevista por Montesquieu. E o que vemos hoje na separação dos poderes, principalmente no que toca os Estados presidencialistas? Um agigantamento do Poder Executivo. Isso tem acontecido reconhecidamente e é irreversível. Como dizemos, a separação dos poderes evolui, e em cada Estado ela terá características diferentes para suas próprias circunstâncias e necessidades.

Hoje também há a hipertrofia do Judiciário, que fica clara no poder de se modular sentenças.

Digamos que uma lei tenha sido promulgada em 1990. Em 1994, alguém, encontrando um erro, propôe uma Ação Direta de Inconstitucionalidade. O Supremo demora dois anos para julgar a ação ajuizada, e a acaba deferindo em 1996. Pergunta-se: desde quando a lei é inconstitucional? Não podemos dizer que é apenas a partir de 1996 pois não dissemos que o texto da lei mudou, por isso, ela é inconstitucional desde seu nascimento. Entretanto, ela pode, durante esses seis anos, ter produzido efeitos. A priori, a ADIN deferida deveria anular todos esses efeitos, assumindo o caráter ex-tunc. Mas isso geraria uma grande insegurança jurídica. Por isso o Supremo tem o poder de determinar: esta decisão passa a vigorar a partir do ano que vem. Note que, virtualmente, o Supremo, que é um órgão do Judiciário, desempenhou uma função legislativa.


1 - Constava na nota de 31/05/08 de Introdução ao Estudo do Direito: