Vimos o modelo norte-americano na aula passada. Com relação a ele, falamos que se trata de um modelo de controle feito incidentalmente, difuso, aplicável aos casos concretos. Os juízes, muitas vezes em que decidem os casos concretos, têm que resolver uma questão de inconstitucionalidade. A decisão, no caso, valerá para quem? Apenas para as partes do caso. Não há sentido em falar que uma decisão entre duas pessoas valerá para uma terceira, até porque não lhe interessa. A decisão vale para as partes envolvidas no processo e, por isso, esse sistema de controle de constitucionalidade também é denominado “difuso”, “controle no caso concreto”, “controle incidental”, e também “controle subjetivo”. Por quê? Porque envolve partes, sujeitos. O raciocínio do juiz para chegar à decisão do caso concreto teve que passar pela análise da constitucionalidade de determinada lei. E o fato de a decisão valer para as partes não gera a insegurança jurídica nem a dúvida generalizada por causa do stare decisis. Significa que a questão “está decidida e não se admite mudança”, portanto todos terão que seguir da decisão desse juiz; o precedente vincula.
A Suprema Corte americana, como tribunal de cúpula do Poder Judiciário, é o tribunal que dará a última palavra sobre a constitucionalidade de uma lei. Nosso modelo brasileiro parece com isso? Sim. Nosso Supremo dá a última palavra sobre uma determinada questão. Assim sendo, qual é o instrumento que usamos para chegar ao Supremo Tribunal Federal e resolver esse tipo de coisa? O RE (Recurso Extraordinário). Não é caso de ação direta de inconstitucionalidade porque julgá-las é competência originária do STF, e nisso ele não é semelhante à Suprema Corte americana, mas ao Tribunal Constitucional europeu.
Aqui no Brasil, a quantidade de REs que chegam ao Supremo é enorme. É por isso que se criam cada vez mais instrumentos para restringir o acesso ao Tribunal, como, por exemplo, a regra da repercussão geral do RE. Hoje em dia, para que se ajuíze um RE, é necessário que se demonstre uma das hipóteses que a Constituição brasileira estabelece. O impetrante tem que demonstrar que aquela decisão que o tribunal eventualmente dará terá repercussão geral, e não se restringir às partes, ou então para ter uma repercussão social ou econômica grande.
Além do modelo norte-americano, vimos que, em resumo, podemos agrupar o controle de constitucionalidade em dois os modelos. Há outros tantos, inclusive o brasileiro, que é a mistura dos dois, bem como o modelo português. Mas, se formos resumir, os dois modelos históricos são o americano e o europeu. Vejamos agora o europeu:
O modelo europeu surgiu da idéia de Hans Kelsen. Ele entendia que o controle de constitucionalidade deveria sim ser feito. Reconhecida a necessidade dele, ele deveria ser feito por um órgão neutro, que estivesse fora dos órgãos que deveriam ser controlados pela Constituição. Portanto, esse trabalho não pode ser feito nem pelo Parlamento nem pelo Chefe de Estado. Ele entendia que os juízes, do dia-a-dia, não deveriam atuar fazendo controle de constitucionalidade, pois eles estavam dentro do sistema da separação de poderes. Logo não poderia ser nenhum desses três órgãos. Daí ele propõe um novo órgão: o Tribunal Constitucional. Ele está fora dessa tripartição de poderes, portanto tem condições de fazer o controle de maneira independente. Na idéia de Kelsen, o tribunal seria criado para isso, e para mais outras poucas funções. Como não poderia caber a mais nenhum órgão fazer, o controle seria chamado de concentrado. Kelsen, como sabemos, estava preocupado em escrever uma teoria pura do Direito, depurado de toda influência política e social possível. Então, ele precisava de uma análise puramente jurídica da lei. E Essa análise não poderia envolver o caso concreto, portanto, não poderia envolver partes. Se num controle em que envolve partes damos o nome de controle subjetivo, o que não envolve partes em conflito recebe o nome de objetivo.
Então como se chega a esse tribunal, pedindo que faça o controle de constitucionalidade? A Constituição fixará quem tem legitimidade para buscar diretamente nesse tribunal a declaração da inconstitucionalidade. Os legitimados são, em geral, partidos políticos, Presidente da República, líder da minoria, etc. Kelsen entendia que esse tribunal tinha a vantagem de proteger a essência da democracia contra os atropelos eventuais da maioria.
O que se busca é a análise jurídica puramente de compatibilidade da lei com a Constituição, o que se faz em tese, com argumentos puramente teóricos e jurídicos. Daí outro nome desse controle: enquanto o outro é dito concreto, este é abstrato. Se esse controle não tem partes, o que se busca é a declaração de inconstitucionalidade em abstrato. O que se buscava, no caso anterior, era a solução do caso. Então, incidentalmente se teria uma declaração de inconstitucionalidade. Mas, neste modelo europeu, vai-se diretamente ao tribunal para pedir um provimento sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade, em via principal. O objetivo do impetrante é esse. Se o tribunal dará uma decisão que é “em tese”, o que ele analisa? A lei em tese, contraposta à Constituição, baseado na idéia do Direito Constitucional, na idéia dos direitos individuais, toda a teoria constitucional, da supremacia da Constituição, etc., só então o tribunal decide: realmente essa lei é inconstitucional.
Para quem valerá essa decisão? Para todos. Como a lei foi em tese, não haverá parte excluída do efeito dessa decisão. Assim, a lei declarada inconstitucional é removida do ordenamento jurídico. Kelsen diz que essa atuação do Tribunal Constitucional não é uma atuação jurisdicional. Assim sendo, qual é a natureza dessa atuação? Legislativa! É por isso que surgiu a expressão famosa do legislador negativo. Para Kelsen, o tribunal constitucional é um legislador negativo. Enquanto o parlamento produz as leis e coloca no ordenamento jurídico, o tribunal constitucional analisa e retira a lei do ordenamento jurídico, quando notada a inconstitucionalidade. Fora do ordenamento jurídico, a lei não pode mais ser aplicada, daí segue que a decisão tem efeito erga omnes.
Se esse controle é concentrado, um juiz que atua num país onde só vige o modelo europeu, ao notar uma inconstitucionalidade, não poderá declará-la. Ele deve mandar o caso para o Tribunal Constitucional. O Tribunal decidirá somente a sobre constitucionalidade, em tese, daquela lei em que ele nota a incompatibilidade. Os autos depois são devolvidos ao juiz que estava julgando o caso. No âmbito dos tribunais, isso acontece no Brasil.
Existiria ainda um terceiro modelo, mas é considerado como parte do modelo do tribunal constitucional, que é o modelo do conselho constitucional francês, que faz o controle preventivo.
Evolução histórica do controle de
constitucionalidade no Brasil
Quando surgiu esse instrumento? Só pode ter surgido, evidentemente, depois que o Brasil veio a ter uma Constituição. Não significa dizer que, na primeira Constituição, já tínhamos o controle. É por isso que, em nossa Constituição de 1824, Carta essa que foi inspirada nos ideais franceses, o Parlamento não poderia ser controlado. Então, o ato do Parlamento na França gozava de uma idéia de supremacia, já que era responsável pela vontade geral (mote do pensamento de Rousseau). A Constituição brasileira de 1824 foi muito bem feita, com muitos direitos fundamentais que se mantiveram intactos até hoje, mas não tinha o controle de constitucionalidade. A novidade interessante era mesmo a presença do poder moderador. O imperador coordenava os três poderes. Essa teoria de poder moderador foi baseada nas idéias de Benjamin Constant. Ele entendia que o Chefe de Estado tinha um poder neutro, era uma autoridade neutra, porque a idéia era a de monarquia parlamentar, com um Chefe de Governo na pessoa do Primeiro-Ministro. Aí fica clara essa idéia de neutralidade. Aqui não foi bem assim; o imperador mandava e desmandava. A neutralidade política só poderia ser em virtude do caráter da sucessão hereditária, já que, assim, não poderia haver apadrinhamento político baseado em favores.
1891: Porque tivemos uma nova
Constituição em 1891? Porque tínhamos
um novo regime de governo e nova forma de Estado. Não foi só a
República que
foi instaurada, mas também o Estado passou a ser federal (antes era
unitário).
Havia incompatibilidade com os princípios monárquicos. Enquanto em 1824
fomos
influenciados pelas idéias francesas, em 1891 fomos influenciados pela
Constituição
norte-americana. E aí, em 91, passamos a adotar o Presidencialismo, a
forma
federativa de Estado, Senado Federal e Câmara dos Deputados, e... o
controle de
constitucionalidade! A partir desse ano, os juízes estavam autorizados
a deixar
de aplicar as leis quando viam que ela padecia de um vício de
constitucionalidade. Olhem a importância da cronologia: como é de 1920
o modelo
de tribunal constitucional nos moldes europeus, certamente o Brasil não
poderia
ter, em 1891, um tribunal constitucional. A única coisa que já existia
e que
poderia servir de inspiração era mesmo a Constituição americana.
Só que nosso sistema é romano-germanico, e não de Common Law que havia nos EUA à época e até hoje. E aí importamos o modelo de controle que achamos “bonito”, mas sem o instituto do stare decisis. Aqui, o precedente não vincula. Se é assim, vejam a situação a partir de 1891: cada juiz passou a decidir como bem entendia. Mesmo que o Supremo Tribunal Federal tenha decidido uma questão sobre a inconstitucionalidade ou não de uma lei, aquela decisão do Supremo não vinculava. Ainda assim qualquer juiz ou tribunal inferior poderá decidir de maneira contrária. Esse é o sistema romano-germanico. Não há precedente vinculante, por causa da divergência de decisões sobre uma mesma questão.
Além dessa divergência generalizada, outro problema foi detectado, e bem grave: digamos que nossa sala de aula é um tribunal, com 50 juízes. E aí, como esse tribunal decide? Têm os 50 que estar presentes? Não, é necessário que se criem órgãos fracionários: turmas, câmaras e sessões, que decidem como o próprio tribunal como um todo. Então, chegaram 10 recursos aqui em nosso “tribunal” sobre a mesmíssima matéria. Uma câmara entendeu que houve vício de constitucionalidade. Outra entendeu que não. Qual a conseqüência? Rolo, insegurança jurídica e menor credibilidade da atividade jurisdicional.
Daí, em 1934, o problema foi constatado. Duas soluções foram propostas. Primeira: reserva de plenário, que resolveu o problema da “esquizofrenia” ¹ dos tribunais, em que diferentes turmas decidiam a mesma questão em sentidos completamente contrários, pois a reserva de plenário estabelecia que somente pela maioria absoluta de um tribunal pode-se declarar a inconstitucionalidade de uma lei. Isso porque uma turma ou câmara nunca conterá a maioria absoluta da composição do tribunal. O que fazer? Paralisar, levar a dúvida ao plenário, analisar unicamente a constitucionalidade, e retornar os autos ao órgão fracionário. Essa reserva de plenário está prevista hoje no art. 97 da nossa Constituição. É uma norma que existe há 75 anos. Chama-se incidente de inconstitucionalidade.
Na aula que vem, continuaremos a partir da Constituição de 1946.