Direito Constitucional

sexta-feira, 27 de março de 2009

Lei complementar e lei delegada



Continuação do estudo da lei complementar

A lei complementar, como vimos, trata de matéria que o constituinte elegeu como complementares ao texto constitucional, que ele entendeu que são importantes por tratarem de assuntos constitucionais, mas que não deveriam estar no texto constitucional por causa da necessidade de uma certa flexibilização. Então ele optou pela espécie normativa intermediária. Essa espécie normativa intermediária permite um tratamento mais rígido do assunto em relação à lei ordinária, mas pouco mais flexível em relação à norma constitucional. Essa é a lei complementar. Então, os assuntos que ela fixará estão na Constituição. O constituinte escreveu: "lei complementar disporá sobre tal assunto." se o constituinte, por outro lado, expressar no texto "lei tratará disso", a lei em questão será ordinária, não complementar. Então tais leis serão objeto de aprovação mediante um quorum mais exigente que o quorum para aprovação da lei ordinária. A lei complementar precisa de maioria absoluta, enquanto a lei ordinária precisa de maioria simples. Exemplos de assuntos: direitos políticos, tributos, inelegibilidade.

O constituinte pôs no art. 14, § 9º, visto ontem, as pessoas que são inelegíveis. Outro grupo está no mesmo art. 14, mas no § 4º:

CAPÍTULO IV
DOS DIREITOS POLÍTICOS

        Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

        [...]

        § 4º - São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos.

A elegibilidade é um direito político passivo: os candidatos recebem os votos. O direito político ativo é o de votar, portanto inerente ao eleitor.

Voltando ao § 9º, maioria simples não pode tornar ninguém inelegível.

E assim várias outras matérias que estão expressamente relevadas na  Constituição.
 

Hierarquia

Vamos falar sobre hierarquia de normas. Há hierarquia? Sim, claramente vemos a hierarquia entre a norma constitucional e todas as outras, chamadas de infraconstitucionais. Quando tratamos de hierarquia entre as normas, a questão que se coloca é que: uma norma pode revogar a outra? Qual é a mais clara regra de revogação de normas? Norma superior revoga inferior. Logo, toda norma constitucional revogará norma infraconstitucional. A questão é: lei complementar em relação a norma constitucional é inferior? É. Lei ordinária em relação a norma constitucional é inferior? Também. Quais são as outras espécies normativas? Lei delegada, medida provisória, decreto legislativo, resolução. Elas precisam de maioria simples para serem aprovadas. Notem, então, que há um terceiro gênero, intermediário, que precisa de maioria absoluta, que só perde em exigência de quorum para a norma constitucional (emendas à Constituição.)

A pergunta que se coloca é: lei complementar e lei ordinária têm diferença hierárquica em si?

As matérias são distintas. As matérias de lei complementar estão expressamente previstas na Constituição. Suponhamos que um parlamentar leu no texto da Lex Mater que “lei complementar disporá sobre outros casos de inelegibilidade.” Admita também que ele está indo mal em seu partido, com filiados em êxodo, então ele propõe um projeto de lei sobre inelegibilidade que acaba tendo forma de lei ordinária. Coincidentemente ele consegue mais do que a maioria simples, chegando a ultrapassar inclusive a maioria absoluta. O projeto segue o trâmite legislativo, é aprovado nas duas casas, sancionado pelo Presidente da República, que promulga e publica a nova lei. Temos, agora, uma lei ordinária no ordenamento jurídico tratando de matéria que a Constituição previu que deveria ser por lei complementar. O outro partido, que não deve deixar uma iniciativa dessas passar despercebida, ajuíza uma ação direta de inconstitucionalidade contra essa lei. O Supremo Tribunal Federal deverá deferir por causa da inconstitucionalidade formal: a lei deveria ser complementar, não ordinária. O fato de se ter conseguido maioria absoluta foi coincidência, mas ainda assim não transforma a lei ordinária em lei complementar automaticamente.

Digamos que o parlamentar tenha lido por acaso o art. 199, § 4º da Constituição e viu nele uma matéria muito importante:

        Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

        [...]

        § 4º - A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.

No atual cenário de Lei de Biossegurança e bioética, esse assunto é mesmo de fundamental importância. Então ele apresenta um projeto de lei complementar tratando de remoção de órgãos. Esse projeto de lei, que o autor entendeu como muito importante, foi iniciado na Câmara dos Deputados, teve sua maioria absoluta, tudo corretamente, e a lei está em vigor já há dois anos. Depois, em outra legislatura, com o avanço tecnológico, decide-se que a lei precisa ser mudada. Os parlamentares então resolveram apresentar um projeto de lei ordinária para alterar aquela lei complementar, projeto esse que passou com maioria absoluta pelas duas Casas, mesmo sem ser necessário. O Presidente sanciona, promulga e publica. Suponham que essa nova lei ordinária modifique o art. 3º da lei complementar, produzindo um resultado que um grupo interessado, com representação nacional, não gosta. Então esse grupo ajuíza uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo buscando a declaração de inconstitucionalidade de qual das duas leis: a complementar ou a ordinária?

Argumentam eles que lei ordinária não pode revogar lei complementar. O que o Supremo faz? Indefere. A lei complementar é inconstitucional? O Supremo Tribunal Federal entende assim: essa lei complementar, que trata de matéria de lei ordinária, não é, na verdade, inconstitucional, porque já foi aprovada com quorum elevadíssimo, e teria sido aprovada de qualquer modo. Mas, na verdade, apesar do nome de lei complementar, ela é uma lei ordinária, portanto, ela pode ser modificada por outra lei ordinária. De complementar, ela só tem o nome. Então a nova lei ordinária não revogou uma lei complementar, mas revogou uma lei ordinária com nome de lei complementar. Se, entretanto, tivesse havido quorum menor na aprovação da “lei complementar”, então sua inconstitucionalidade seria evidente. Logo, a jurisprudência do Supremo entende que não há hierarquia, mas reserva de matéria: se uma lei ordinária invadir o campo de uma lei complementar, o problema da ordinária é de inconstitucionalidade. Se a lei complementar entrar na matéria da lei ordinária, ela na verdade não será lei complementar, mas lei ordinária também. Mesmo que tenha o nome, não terá a força de lei complementar.

Por isso, devemos entender, de acordo com a corrente majoritária, que não há hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, pois elas tratam de matérias diferentes, e, qualquer violação de hierarquia seria em relação à Constituição, não uma em relação à outra. Assim, se uma lei ordinária por acaso dispuser de matéria que a Constituição reservou para a lei complementar, essa lei ordinária estará atentando contra a Constituição. Cuidado com a confusão, pois.

Histórico

Quando surgiu no Brasil a necessidade de complementar a Constituição? A idéia dessa terceira espécie normativa surgiu em razão da praxe. Em 1946 nós tínhamos a chamada Constituição da redemocratização. Vamos relembrar um pouco a experiência constitucional brasileira. A primeira Constituição veio em 1824, a chamada Constituição do Império, outorgada depois da independência em 1822. Com a independência o Brasil precisaria de uma Constituição própria. Foi a mais duradoura das Constituições. Durante sua vigência, o Brasil era um Estado do tipo unitário. Em 1889, proclamou-se a República, e uma nova Constituição teve que ser feita; ela saiu em 1891, de autoria principal de Rui Barbosa; adotava a Federação como forma de Estado, copiando o modelo americano, e o presidencialismo como forma de governo. Durou até 1934.

Em 1934, o presidencialismo continuou, mais forte ainda, com Getúlio Vargas, que logo em 1937 outorgou uma nova Constituição, a chamada “polaca”, ou Constituição do Estado Novo. Tivemos, assim, uma ditadura até 1946. Houve uma redemocratização e, na vigência dessa Constituição de 46, houve uma eleição presidencial que levou ao poder os presidentes do período chamado “República de 46”, cujo último foi João Goulart.

Em 1964, houve o golpe militar, que se deu sob a vigência da Constituição de 46, que era uma Constituição democrática. Antes do golpe, a idéia que se tinha era de que o Presidente da República deveria ser enfraquecido. E qual a forma encontrada para enfraquecê-lo? Parlamentarismo. Por que enfraquece? Porque no parlamentarismo, o Executivo tem duas figuras, o Presidente da República (no caso de parlamentarismo republicano), que é chefe de Estado, e o Primeiro-Ministro, que é o chefe de governo. Isso passa a idéia de quebra do Poder Executivo, já que agora ele é repartido em duas pessoas. Isso foi feito por meio de uma Emenda Constitucional, a Emenda nº 4 de 1961, incidindo sobre a Constituição de 46, que instaurou o parlamentarismo no Brasil. Só que a Constituição era concebida para o sistema de governo do presidencialismo, então imaginem o problema de compatibilidade. Então, pensou-se: "vamos criar um terceiro gênero de lei que não precise ser aprovada pelos 3/5 e, também, por se tratar de uma matéria tão importante que é o sistema de governo, também não pode ser alterada por maioria simples." Essa é a lei complementar.

Ela complementa a Constituição no sentido de que trata de assuntos complementares a ela, mas não no sentido de expandi-la, adicionando-lhe novos artigos.

Historicamente também surgiu nessa época uma outra espécie normativa que, por ser típica de parlamentarismo, veio para o Brasil também, que foi a lei delegada. No parlamentarismo, o chefe de governo, que tem o poder de criar leis delegadas, sai do próprio Parlamento. Daí o nome Primeiro-Ministro. É um grupo de aproximadamente dez ministros que, escolhidos de dentro do Parlamento, compõem o gabinete. Dentre esses ministros, um será o “Primeiro”, que exercerá as funções de chefe de governo. E, para tudo que esse Primeiro-Ministro quiser fazer, ele precisará da aprovação do Parlamento, de onde ele saiu. Por isso que no sistema de governo parlamentarista não se fala em “separação dos poderes”, mas em “colaboração de poderes”. O Executivo, no parlamentarismo, está imbricado com o Legislativo. Daí a idéia de decreto-lei e lei delegada fica bem simples de ser enxergada no parlamentarismo, pois sempre o governo tem que contar com o apoio dos representantes do povo; se ele tomar uma medida unilateral, que não esteja de acordo com o que o parlamento gostaria, é capaz, e freqüentemente acontece, de o gabinete inteiro cair, e um novo emergirá, provavelmente da oposição. Isso acabou de acontecer na Itália. Romano Prodi era o Primeiro-Ministro, mas, no sistema partidário italiano, a maioria que o apoiava estava fragilizada; havia muitos partidos, como aqui no Brasil, e Prodi tinha que se valer da coalizão para governar; só que essa coalizão era frágil. Por pouquíssimos votos ele não conseguiu a aprovação de uma medida que ele tomou. O que aconteceu foi que Romano caiu e Silvio Berlusconi voltou ao cargo. Silvio, se tomar outra medida sem aprovação, cairá novamente. Então a responsabilidade do chefe de governo no parlamentarismo é diretamente para com os representantes do povo.

No presidencialismo, se o Presidente da República edita uma medida provisória e o Parlamento a rejeita, o Presidente cai? Não. É necessário também que haja uma colaboração entre Executivo e Legislativo, mas não há a quase-fusão entre os dois como ocorre no parlamentarismo inglês. Se o parlamento ajuda o Presidente, a governabilidade melhora. E, em nosso país, a tentativa de se melhorar a governabilidade já se deu pelo uso de expedientes muito escusos, como o mensalão.

Breve histórico sobre a lei complementar: ela surgiu para complementar a Constituição na implementação do parlamentarismo, depois da Emenda Constitucional nº 4/1961 à Constituição de 1946, que estabelecera o sistema presidencialista. Depois disso, continuou existindo a espécie normativa da lei complementar ainda que não houvesse mais essa necessidade prevista, casuísta; então na Constituição de 67/69 vimos de novo o presidencialismo mas a lei complementar continuou existindo por outro motivo: para tratar de determinados assuntos como matérias eleitas pelo constituinte que passaram a ter a característica de “terceiro gênero” de espécie normativa como razão de ser, para evitar a maleabilidade da lei ordinária e, ao mesmo tempo, evitar a rigidez da norma constitucional. E assim funciona até hoje.

E quanto às leis complementares existentes antes da Constituição de 1988? Como serviam para complementar as Constituições para as quais foram feitas, elas perderam a vigência e foram expulsas do ordenamento jurídico? Não. Há leis complementares que foram recepcionadas pela atual ordem constitucional. Isso dependerá da compatibilidade com a atual Constituição, que é agora a norma superior. Agora vejam a parte interessante: digamos que a Constituição de 1967 estabelecia que determinada matéria deveria ser tratada por lei complementar, e o parlamento, então, elaborou uma lei complementar para dispor sobre aquela matéria e se criou, suponha, a “Lei Complementar nº 25 de 1970”. Em seguida veio a Constituição de 1988, que, sobre essa mesmíssima matéria, não estabeleceu nada, pelo menos nada no sentido de “tal matéria precisa ser regulada por lei complementar.” Em vez disso, essa escreveu “lei disporá sobre”, sem mencionar a palavra “complementar”. Pode essa lei complementar ser alterada por uma lei ordinária? Sim, pois a partir de 1988 ela passa a ter o status de lei ordinária.

O mesmo vale para o inverso: em 1946, matéria geral tributária poderia ser tratada por lei ordinária. A Constituição vigente, que era a de 46, não ressalvava que tal matéria era exclusiva de lei complementar, como a atual ressalva, no art. 146:

        Art. 146. Cabe à lei complementar:

        I - dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

        II - regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;

        III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

        a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;

        [...]

Portanto, em 1966, durante a vigência da Constituição de 46, foi elaborado do Código Tributário Nacional (Lei 5172/66), que dava todas as diretrizes para a ordem tributária. Pergunta-se: a Constituição de 88 revogou o CTN? Não. O que acontece agora é que ele tem o status de lei complementar, e, portanto, só pode ser alterado por meio de lei complementar, nunca mais por lei ordinária enquanto viger a Constituição de 88. Não há, portanto, a necessidade de elaborar outro Código Tributário. Entretanto, nem todos os artigos do Código de 66 foram recepcionados por incompatibilidade com a atual Constituição não por causa da forma, mas por causa do conteúdo, do contrário haveria choque de princípios. ¹
 

Lei delegada

Vamos agora partir par ao estudo da lei delegada. Retomando aquela idéia de parlamentarismo e presidencialismo, a idéia da lei delegada, assim como a do decreto-lei e medida provisória, é muito claramente aceita em sistemas de governo parlamentaristas. Quem legisla, normalmente? O parlamento. Se o Executivo precisar elaborar alguma legislação que ele julgue mais urgente, que não dê para esperar por toda a apreciação do Parlamento, ele elabora um decreto-lei que rapidamente entrará em vigor, mesmo que esteja correndo o risco de que seus colegas (já que o Primeiro-Ministro também é um parlamentar), com os quais fez acordo para subir ao cargo e que nele votaram, passarem a desaprová-lo. Essa espécie normativa  é mais claramente aceita no parlamentarismo porque o Executivo sofre um controle mais imediato do Parlamento, a ponto de o chefe do Executivo cair caso o Parlamento discorde. Já no presidencialismo, isso não é tão facilmente visível porque, se o Presidente adota uma medida desse tipo e o Parlamento não concorda, o Presidente da República continua no cargo do mesmíssimo jeito. É por isso que temos a impressão de que o Presidente adota um ato legislativo monocrático, individual, e não se submete a controle nenhum. Mas onde surgiu essa forma de legislação na mão do Executivo, já que até agora estamos estudando, na separação de poderes, que quem legisla é o Legislativo? Leiam o texto de Montesquieu, Do Espírito das Leis, Livro XI, capítulo VI, que será obrigatório para a prova e tem relação com o que estamos falando. Leiam também o texto de Manoel Gonçalves Ferreira Filho.

Quanto a Montesquieu, que publicou o Espírito das Leis em 1748, passava em sua cabeça a idéia de que o chefe do Executivo pudesse editar algo como “medida provisória”? Não, por isso mesmo ele concebeu a separação dos poderes. Se o Executivo legisla como faz nosso atual Presidente, ele sai de sua função preponderante. Montesquieu sabia que o homem, ao receber poder, teria sempre a tendência a abusar. Daí veio a idéia da separação, com o fim de limitar os poderes. Sem ela, haveria uma grande injustiça. Que época é essa, 1748, em que Montesquieu elabora a idéia da limitação de poderes por meio da separação deles? Iluminismo, que foi seguido pela Revolução Francesa, com a implementação da limitação do poder. A partir daí, que tipo de Estado temos? Estado de Direito, limitado pela Lei, elaborada pelo Parlamento. Mas que tipo de normas e de concepção existirá e vigorará de forma a mudar a idéia de que, daí para frente, tem-se um Estado liberal, que sucedeu o Estado absoluto? A idéia é de liberdade. Se a idéia é de liberdade, o Parlamento é muito demandado? Não, pois o Estado liberal é mínimo, absenteísta, e não deve intervir tanto. A regra do Estado de Direito é que o indivíduo pode fazer tudo que a lei não proíba nem ser obrigado a fazer o que a lei não mande, enquanto o contrário serve para a Administração: ela só pode fazer o que a lei permite, e não pode fazer nada mais.

Para o Estado mínimo, o raciocínio que se tinha era que, quanto mais lei, menos liberdades. Nós estamos obrigados a fazer ou a deixar de fazer algo senão em virtude de lei? Não; quanto mais lei, mais regulamentação, e menos liberdade. A idéia, portanto, é de que quanto menos lei, melhor. A sociedade, de acordo com os adeptos da teoria liberal, se regularia sozinha.

E o Estado posterior? Na época do Estado social se entendeu que o Estado liberal clássico não permitia que aqueles direitos previstos para todos pudessem ser materialmente exercidos por todos. Esse Estado, então, assumiu uma posição ativa, intervencionista, atuante, trazendo, por exemplo, serviços básicos. Mas o Estado não pode dar um passo sem que a Lei o autorize, então o Parlamento teve que sair de sua tranqüilidade.

Entretanto, lembrem-se que a natureza dos Parlamentos é de total debate, e que se debata sobre o tempo que for necessário para que a lei, que obrigará os indivíduos a fazer ou deixar de fazer determinada coisa, dali emerja sem causar nenhuma mácula posterior a seus destinatários. Mas tais serviços que o Estado se deu a obrigação de prestar são básicos e de caráter urgente. Pode, portanto, o Parlamento deliberar por tempo indeterminado até que se chegue à melhor solução? Não. O Executivo estará rodeado de técnicos no assunto, por exemplo o de energia elétrica; ao mesmo tempo que o parlamento é formado de pessoas com todo o tipo de formação, ou mesmo sem formação nenhuma, logo dificilmente haverá, em seu corpo, o número desejável de técnicos em qualquer que seja a área necessária. Imaginem, portanto, o Parlamento elaborando uma lei que regulará o setor energético. Essa legislação atenderá, tecnicamente, seus objetivos? Será difícil.

Dessa forma, com a evolução do Estado, a idéia de separação dos poderes não é um dogma, mas simplesmente limitar o poder: se ela for atingida por se inserir uma ou outra modificação na forma de funcionamento do Estado, tudo certo! Ainda assim em tal Estado continuará vigendo a separação de poderes. Aqui no Brasil, portanto, não podemos dizer que a medida provisória fere a doutrina de Montesquieu, mas seu abuso sim. A separação dos poderes no Brasil assimila e pressupõe a medida provisória. Então, com relação ao Estado brasileiro, em razão dessas necessidades sociais históricas, entendeu-se que o poder de legislar também deveria estar na mão daquele que dispõe de agilidade. Não pode ser um Parlamento, que é composto, no Brasil, de 594 membros, num ambiente de indispensável debate, mas num órgão composto por bem menos pessoas, no caso, o Presidente da República cercado de sua equipe técnica.

Assim surgiram os instrumentos normativos na mão do Poder Executivo: leis delegadas, decretos-lei e medidas provisórias, em vários países inclusive, por causa dos contingentes históricos de cada nação. Matérias de extrema urgência, portanto, são tratadas por atos executivos como medida provisória e lei delegada, enquanto projetos de lei que requerem certa urgência podem ser submetidos ao processo legislativo sumário. Ou então o projeto pode seguir o caminho comum que é o processo legislativo ordinário, com ausência completa de prazo. O que é considerado de urgência ou não é de julgamento privativo do Presidente.

Então a lei delegada é o instrumento de legislação na mão do Poder Executivo, que permite mais agilidade, mas que deve ser usado quando a questão não for de extrema urgência. Essa lei delegada está prevista na Constituição no art. 68:

        Art. 68. As leis delegadas serão elaboradas pelo Presidente da República, que deverá solicitar a delegação ao Congresso Nacional.

        § 1º - Não serão objeto de delegação os atos de competência exclusiva do Congresso Nacional, os de competência privativa da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, a matéria reservada à lei complementar, nem a legislação sobre:

        I - organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros;

        II - nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais;

        III - planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos.

        § 2º - A delegação ao Presidente da República terá a forma de resolução do Congresso Nacional, que especificará seu conteúdo e os termos de seu exercício.

        § 3º - Se a resolução determinar a apreciação do projeto pelo Congresso Nacional, este a fará em votação única, vedada qualquer emenda.


  1. Esta questão da recepção do Código Tributário Nacional pela ordem constitucional vigente pode ser cobrada em prova.