Filosofia

quarta-feira, 1º de abril de 2009

Continuação do existencialismo e introdução ao ceticismo



Vimos ontem que o modelo existencialista se opõe à teoria da metafísica. Essa metafísica seria no sentido de que o fundamento do homem seja uma natureza que predetermine algum espectro, a constituição do homem, como ele deve ser e/ou agir. Os existencialistas não negam a realidade, mas dizem que não há uma predeterminação das condições dos entes. Eles dizem que não há como estabelecer uma essência dos entes, como dizem os metafísicos; essência essa que seja a vontade de Nietzsche, ou o amor de Schopenhauer, ou a razão de Aristóteles. E mais, para Émile Durkheim, o sociólogo que estudamos em Sociologia Jurídica, o homem seria um produto da sociedade, portanto teria suas características já dadas e predeterminadas pela sociedade na qual ele nasce, o que seria outra forma de essência. Daí tiramos que o existencialista discorda de Durkheim.

O existencialista não admite uma natureza humana. Em outras palavras, a questão é que não há nada que determine o homem de antemão. Isso significa que nós não temos uma essência que determina nossa existência, o modo de ser, ou a condição do próprio ser. Se não há essência, então somos pura existência, puro modo de ser. Dessa forma, para o existencialista, este é o fundamento de toda a liberdade: o homem é totalmente livre, e não há nada preexistente ou anterior a ele que possa determinar o que ele pode ser. Dizem eles que, no primeiro momento que o homem toma consciência de si, ele toma consciência de sua liberdade, e passa a ter que decidir seu próprio caminho. Somos seres de escolhas, porque nossa liberdade nos impõe isso. Para entender, vejam: estamos no mundo. Aqui, temos infinitas portas abertas. Ao escolhermos uma, as demais se fecham, e abrem-se tantas outras. Então, se existe algo predeterminado no homem, esse algo é exatamente que ele terá sempre que escolher. Se o homem faz isso, aparece outro elemento que é fundamental: a angústia. Søren Aabye Kierkegaard (1813 – 1855), dinamarquês, pai do existencialismo, disse que o homem, por ser um sujeito de escolhas, simplesmente viverá a angústia. O que significa a angústia: saber que sempre se que terá fazer uma escolha, não saber qual seria o resultado da outra escolha possível no momento da decisão e não escapar disso. Ele é contemporâneo de Nietzsche e Schopenhauer. O amor de Schopenhauer não permite escolhas, porque só se pode viver de acordo com a condição de esvaziar-se a si. Para o existencialista o indivíduo pode escolher se fará isso ou não.

Interessante é que não é só a angústia que está do lado do homem. Para o existencialismo ela não é vista como algo ruim. Os outros filósofos querem eliminá-la da forma como pensam. O racionalista, por exemplo, eliminaria a angústia através da razão. Para Schopenhauer, ela é eliminada quando o homem se esvazia pelo amor. No Cristianismo, escolher por fé o que Cristo faria em seu lugar, ou, em Nietzsche, o homem elimina a angústia usando a potência da sua vontade de tal modo que se livre do vínculo com a civilização e se torne autônomo. Mas o existencialista incorre num erro porque o homem, ao fazer uma escolha, acaba se filiando a alguma dessas linhas, e a angústia continua com ele; assim o homem continuará escolhendo. A angústia é uma irmã do homem no sentido de que é ele que permite saber que estamos existencialmente vivos, ou seja, que existimos. A dor não é ruim, porque nos permite saber que temos um problema. Pode nos constranger, mas nos guia. A angústia, então, é aquela que permite saber que você existe. Se ela não existe, então é porque algo está errado: o sujeito deixou de existir. “Deixar de existir”, para a corrente existencialista, não é o indivíduo desaparecer, mas cessar ao seu modo de ser no mundo.

Martin Heidegger (1889 – 1976) afirma exatamente o seguinte: o homem é um ser para a morte. Ele vai morrer. Em nossa estrutura de ser, como todos os outros entes são, um dia vamos desaparecer. Uma montanha também desaparecerá, mesmo que demore mais. Deixar de existir para o existencialista não é o mesmo que deixar de existir para os outros pensadores. Como a morte: para os demais filósofos, o fim da existência se traduz na morte do homem, enquanto para o existencialista o sujeito pode continuar vivo mas deixar de existir. É porque o homem, por ser o único que ao mesmo tempo existe e tem consciência de sua existência e liberdade, pode deixar de tê-la, o que significa, para o existencialista, deixar de existir. Assim ele pode deixar de ser homem. Em que sentido? Ele continua sendo homem, mas deixa de existir como aquele que tem liberdade. Ele se torna outro ser, tal como o pincel ou o cachorro. Ele ainda toma decisões, mas elas não têm mais o esteio da liberdade.
 

Jean-Paul Sartre (1905 – 1980)

O mais destacado filósofo existencialista do século XX viveu em Paris e foi professor na Universidade de Sorbonne na época da segunda guerra mundial.

Um dia um aluno dele estava com um dilema existencial. Vamos agora quebrar a noção, derivada do senso comum, que temos do que seja um dilema existencial, que remete exatamente à idéia de “deixar de existir” ou “tornar-se nada”. Isso porque, pior do que a morte, que é algo certo, é o nada, ou seja, anular a própria condição de liberdade. Foi em 1940, na Universidade de Sorbonne, França, pouco antes da invasão da França pelo exercício nazista. Esse aluno chegou para Sartre com esse problema: “em minha família somos dois irmãos e minha mãe. Ela tem muita idade e não consegue viver sozinha. Meu irmão mais velho foi para a guerra, honrar a pátria, e eu fiquei com mamãe. O problema é que meu irmão faleceu. Agora, se eu for para a guerra, estarei honrando a memória de meu irmão e a minha pátria, mas minha mãe pode vir a falecer. Por outro lado, se eu ficar com a minha mãe, eu a estarei protegendo, mas deixo de honrar a memória de meu irmão. O que posso fazer?”

A pior coisa a fazer é perguntar certas coisas a um filósofo, pois não haverá resposta. Sartre disse: “isso é um dilema existencial. Qualquer que seja a decisão que você tome, surgirá um problema de determinar alguma causa ou conseqüência inaceitável, mas você não pode deixar de decidir. Mesmo a decisão inerte seria uma decisão.” Sartre diz que não pode decidir pelo aluno, e esse é o ponto da existência: o conceito de nadificação ou nulificação. Niilismo: condição de se tornar um nada existencial. Não é que o sujeito desaparecerá do mundo naquele momento, mas ele deixará de ser livre. Sartre continua: “se você escolher ficar com sua mãe, essa é a decisão. Jamais use isso como justificativa de você não ter ido para a guerra. Por outro lado, se sua decisão for ir para a guerra e sua mãe vir a falecer, jamais use a guerra ou a honra a seu irmão como justificativa para a morte de sua mãe.” É exatamente essa a decisão existencial que tem que ser tomada: cada homem é individualmente livre; ninguém pode tomar decisões por outros, mas no momento em que se toma a decisão, o sujeito tem que ser responsável por essa escolha. Ao dar a desculpa, ele deixa de ter a liberdade, e deixa de existir, tornando-se um nada. Por justificar, impedem-se escolhas legítimas. É isso que Jean-Paul Sartre chama de má-fé. A condição de escolha é livre, mas nunca se devem dar justificativas pela escolha.

Sartre sabe que há influências, mas a questão principal é a escolha. O sujeito assume a responsabilidade e age com autenticidade, ou então justifica sua escolha e age de má-fé. Ao fazê-lo, ele se nulifica e vai se tornando gradativamente um nada. Esta é a pior das mortes para Sartre. Para o existencialista, a liberdade determina a vontade. Sartre é o campeão da responsabilidade, jogando-a toda no colo do homem.

Frase dele: “o inferno é o outro”. Nenhum homem é uma ilha. No momento que ele escolhe, cada outro indivíduo estará limitando a decisão do ego daquele que escolhe, e ele não pode agir de má-fé. Por isso Sartre diz: “se o homem é livre, Deus não existe.” Está na obra “O Ser e o Nada.”

Há, nesse desenrolar, outro ponto interessante: Sartre não justifica um homicida. Fazer o que quiser não é liberdade; a liberdade é só o impulsionador; ao escolher, fecham as outras possibilidades. Então considere aquele que cometeu um homicídio, e ignore a esfera jurídica. A questão de Sartre e Heidegger é a condição da escolha. Toma-se a decisão de cometer tal ato. No momento em que se toma essa decisão, o homem tem que assumir o seu ato. Exatamente pela responsabilidade. Ao justificar existencialmente, ele se nadifica. Um homicida tem que ser punido, e Sartre nem discute isso. A questão não é jurídica nem moral; a condição existencial é anterior à moral. O sujeito pode ser condenado a 6 anos de reclusão, mas nunca agiu de má-fé no sentido de justificar sua decisão. Ele será punido, mas existencialmente ele é autêntico.

Agora considere o cristão. Imagine um cristão que age sempre correto, mas justifica suas ações por Deus. Então existencialmente, para Sartre, ele não é nada. Logo a esfera existencial é uma esfera da ontologia, inerente ao homem, e tem repercussão moral, política, jurídica, etc.; mas a questão existencial é anterior. Muitas decisões pendem na balança da moralidade. O que é moralmente mais correto? Defender a pátria ou ficar com a mãe? Ambas as condições são moralmente válidas, mas elas são mutuamente exclusivas, então segue que uma decisão leva a uma conseqüência moralmente incorreta do outro lado.

O homem pode ser o maior fanfarrão mas ser existencialmente nulo. Sobre isso Sartre tem uma obra chamada “Crítica da Razão Prática.” Ele era ativista marxista, e emerge das nas passeatas estudantis. Era revolucionário do tipo marxista, mas não o marxismo clássico de Marx. Má-fé não é uma questão moral, mas uma questão existencial.

A martirização pela decisão tomada não é um conflito existencial, mas uma conseqüência da má-fé. Porque se não se age com má-fé, não segue que um sujeito não será preso por homicídio, mas existencialmente ele é autêntico. O existencialismo defende que não se deve se mortificar por ter tomado uma decisão; o sujeito deve assumi-la. Posteriormente ele poderá até verificar se ela realmente trouxe mais vantagens do que outra que poderia ter sido tomada, e até tentar futuras decisões que possam atenuar eventuais prejuízos, mas ainda assim a que foi escolhida deve ser assumida sem resquícios de pesar. Ao não assumir o ônus da decisão, o homem passa a viver no colo de alguém. Deus, por isso, seria apontado por Jean-Paul Sartre: “eu tomei esta decisão porque agi de acordo com a palavra de Deus.” O mesmo se aplica quando o homem toma decisões baseadas nos mandos da sociedade, do pai, da mãe, do líder da gangue, etc. Assim, ele deixa de ser autêntico de qualquer jeito.

Neste caso então temos um modelo em que a teoria em Sartre, em sua obra o Ser e o Nada, deixa claro que a razão é prática e instrumental, não teórica. Muitas escolhas, racionalmente feitas, podem induzir à má-fé no ato da justificação. A razão não é fundamento.

Nem todo existencialista é ateu como Sartre; Karl Jaspers é cristão. Ele elimina a fundamentação da decisão do homem ser em Deus. Ele é filósofo, mas há outros filósofos que também são teólogos. Paul Tillich ¹ é um deles. Não coloca Deus como justificativa para todos os acontecimentos, mas como fundamento para nossas escolhas, mas Deus mesmo em si não pode ser usado como justificativa. Obra de Tillich: Teologia Sistemática, que, na verdade, é pura filosofia. Busca nela determinar o fundamento que é Deus. Outro é Rudolph Bultman, este 100% teólogo.

Outra boa obra para se ler é Princípios de Filosofia, de Karl Jaspers.
 

Ceticismo

Esse grupo dentro dos anti-teóricos já não faz a crítica a partir da condição da realidade humana. Eles fazem a crítica ao modelo teórico da razão a partir da esfera do conhecimento. Em suma, eles questionam o conhecimento teórico. Todos os autores que estão para cima não questionam o conhecimento teórico; eles o tomam como instrumento. Mas os céticos opõem o conhecimento teórico – fundado na lógica e na razão – ao senso comum. Neste caso eles negam a possibilidade de uma lógica ou de filosofia da linguagem até mesmo na condição de instrumental. São mais radicais do que o próprio existencialista nesse aspecto. Vejamos então por que: o ceticismo, no sentido clássico do termo, só existiu numa fase do pensamento: é o modelo grego. Todos os demais filósofos no futuro usarão o modelo cético, mas como mero método, e não até o limite final de negar a possibilidade de um conhecimento teórico. Um exemplo que já estudamos, e vamos voltar, é René Descartes. Ele é famoso pela dúvida metódica, que é um método cético. Duvida-se sistematicamente. Mas quando o ceticismo duvida sistematicamente, ele acaba levando à impossibilidade de haver uma teoria. Descartes usa o método ceticismo até chegar a uma proposição, um conceito claro e distinto, o que nunca mais se pode duvidar: é o “penso, logo existo”. David Hume, que estudaremos depois, é um empirista que admite o ceticismo, apesar de ser um “ceticismo moderado” ². Não necessariamente é um dogma da religião; pode ser um dogma da razão também. Podemos ter idéias claras e distintas; esse é o dogma de René Descartes. O ceticismo diz: “mesmo o existencialista parte de um dogma!” Qual seria esse dogma? Que o homem é livre por natureza. O dogma racional é um axioma do sistema, então ele admite algum elemento teórico do fundamento.

Já o zetético não: “zetética” vem de dzeteín, em grego, que significa perscrutar, inquirir, questionar. Os céticos se chamavam também de zetéticos, mas seus questionamentos não admitiam um dogma. O fim era levar à posição de que não é possível criar um modelo teórico. Então, essa noção de zetética dentro do Direito, tal como vimos no primeiro semestre, é incorreta, pois não sobraria pedra sobre pedra; a zetética no Direito levaria a uma forma de ceticismo moderado, mas, como sabemos, o Direito tem princípios e critérios que acabamos tomando como dogmas. Imaginem, por exemplo, se as decisões do Supremo, que é a última instância, também fossem questionáveis: não haveria critério final nenhum, e o Direito não teria eficácia alguma, pois, já que no final sempre sobram questionamentos, as lides jamais seriam pacificadas.

Veremos como não é possível haver princípios do Direito, então a noção de zetética para o Direito é incorreta.

Para um cético, como se prova que é impossível a existência de um modelo teórico? Através de um recurso lógico (eles eram gigantes da lógica; conheciam bem os gregos). Eles estabelecem aquilo que é conhecido como Trilema de Münchhausen.

Este nome do Trilema não foi dado pelo próprio Barão de Münchhausen. Ele viveu nos séculos XVIII e XIX. O nome foi dado por Karl Popper (1902 –1994). “Barão de Münchhausen” também é o nome de uma obra mítico-fantasiosa do século XVIII; referências dela podemos achar nos textos de Popper.

O Trilema de Münchhausen em detalhes ficará para a próxima aula.


  1. O professor Tillich é Citado pelo personagem Indiana Jones num dos filmes da trilogia original.
  2. O termo “ceticismo moderado” não é muito feliz pois não se pode, na verdade, ser moderadamente cético; só se pode ser ou cético ou dogmático, sem meio-termo, adverte o professor.