Na aula passada vimos o ceticismo e também a formulação do Trilema de Münchhausen como uma crítica dos céticos ao ponto de que não é possível estabelecer um critério que validaria um método. Uma pergunta é: no final das contas, no momento em que se cria todo um sistema criado baseado no Trilema, não seria esse sistema mesmo um método? Sexto Empírico (~160 – 210), um notável cético, responde, comparando o método do ceticismo a um purgante: quando os médicos da época queriam limpar o organismo de qualquer infecção ou elemento que não seja natural do corpo, usavam-se purgantes. Quando ele faz efeito, ele se auto-elimina junto com o “poluente”. Sexto Empírico diz que no momento em que ele acaba com toda a possibilidade de desconstrução, o próprio método se auto-critica no sentido de que ele não é nenhum critério para conhecimento. Ao estabelecer a própria crítica contra essa idéia do ceticismo, acaba-se com qualquer possibilidade de se criar um método, levando a crítica para o espaço juntamente com o “modelo” que o crítico quis impingir contra o cético. Então não se usa todo o sistema lógico da crítica cética, como fez René Descartes, em que ele duvidava de tudo até chegar a um dogma, apresentando uma idéia clara e distinta. O modelo cético, no momento em que é criticado, leva seu critério à destruição junto com a crítica feita.
O ceticismo não quer estabelecer um sistema. Como o modelo é impossível e o próprio sistema demonstra isso, então abandona-se o modelo teórico e adota-se o conhecimento comum, como faz o médico, que tira todo seu conhecimento a partir da observação. É o conhecimento do senso comum, em que se tiram informações das fontes consuetudinárias. Claro que esse não é o conhecimento comum de botequim, mas um conhecimento comum sofisticado, de pessoas educadas. A resposta do cético à decisão do juiz, vista ontem, é dada a partir da crítica de que é impossível legitimar, de qualquer modo, especialmente por um critério formal com um método, aquela decisão; então simplesmente nós abandonamos todo sistema e admitimos que o juiz toma suas decisões baseando-se na construção da compreensão que a própria sociedade tem de valores como justiça e parcimônia até trazer resoluções que pacifiquem a lide.
O Direito, como teoria, não precisa construir um método para dar respaldo à decisão do juiz. Ele toma a decisão porque há um conjunto de leis (da sociedade) formuladas a partir de um empirismo mesmo. Não confunda este empirismo com o empirismo teórico, pois há o empirismo como teoria desenvolvido na era moderna; o que se tem, no final, é que o Direito é a consolidação de hábitos de julgar. Homens criam leis, e precisa-se julgar. Mas antes mesmo de haver as contemporâneas teorias do Direito já havia leis e litígios; o Código de Hamurábi, por exemplo, é uma clara evidência disso. Qual era a teoria vigente no século XVIII a.C.? O que se precisa, então, é de um constructo habitual daquela sociedade. É como ela resolverá suas questões jurídicas e políticas. Viu como não é necessário um método?
Observação interessante: os princípios legais que temos e as estruturas de decisão do juiz também não seriam critérios? Não, dizem os céticos; eles dirão que são diretrizes, já que o critério tem que ser unívoco. O Direito pode ser alterado de acordo com as necessidades da sociedade. Uma diretriz é um enunciado lógico aberto; não tem mais de um significado, mas tem uma condição aberta ou vazia de significado. Na medida da necessidade, se dão significados ao Direito de acordo com a realidade social e política da época. O Direito, portanto, tem que ser flexível.
Logo, ao questionar um cético usando a lógica contemporânea, ele dirá: “não são critérios, são enunciados abertos, apenas”. Por isso podemos, num determinado momento, ter uma pena para adultério, e hoje adultério não ser nem crime mais. Hoje podemos entender a vida e o Direito à vida, mas a própria conceituação de vida pode ser alterada de acordo com os valores da sociedade ¹. Então teríamos, quando muito, diretrizes, e nada além disso. Ao adotar as diretrizes, está-se adotando também o conhecimento comum, desvinculado de critérios, um conhecimento sem univocidade. Daí segue que, para o cético, não há que se falar em um modelo melhor que outro, pois não há critérios. Num modelo de critérios, sim. Se se buscasse subjugar o modelo do outro, o cético diz que isso levaria a uma forma de domínio. “Se tenho uma cultura mais desenvolvida, tecnologia mais avançada (que é conseguida por métodos) e melhor forma de resolver as lides, então tenho condições de dominar melhor, pois meu sistema é melhor.” Isso é o colonialismo.
Para o cético, o sistema de valores que uma sociedade adota é fruto de suas concepções consuetudinárias. Logo, não há uma sociedade ou comunidade melhor que outra. São apenas as diretrizes que a comunidade usa para dirimir o conflito. Mas o cético não é relativista absoluto; a noção de justiça é da comunidade, uma diretriz valorativa dela. Mas, de qualquer modo, não há, intra corporis, a “minha justiça” ou “sua justiça”; há aquela cujo teor foi desenvolvido pela sociedade. Não há critérios; quando muito, há diretrizes gerais.
Os direitos são diretrizes. Tomem, por exemplo, o conceito de direito à liberdade: no século XVII, a noção de liberdade que se tinha era a de ir e vir, literalmente, oposta à noção de liberdade que se tinha na antiguidade (aquela relacionada à cidadania), e também é diferente do conceito de liberdade que se tem hoje, que é bem mais amplo: não só de ir e vir, mas também de expressão, de pensamento, de crença, de ação, etc.
Neste caso então, o que o cético faz? Ele tem um conceito muito interessante com relação à teoria. No final, quando se resolve a crítica final ao modelo teórico, suspende-se o juízo. É um termo grego denominado ataraxia (de ataraktos, imperturbado: a = não; tarassein, tarak- = perturbar). Por que ele deve ser suspenso? Porque ao se emitir um juízo já se está fazendo teoria. Em vez disso, adota-se o modelo comum de conhecimento. Notem: não é qualquer coisa que é valida como conhecimento comum. O que é válido é aquilo que é determinado por aquela comunidade. Uma conclusão chegada por um sujeito qualquer não traduz o que é válido para sua comunidade. ²
É exatamente essa a posição de um cético, com relação ao conhecimento e todas as formas de práxis.
Então o ceticismo faz uma crítica à estrutura do conhecimento, que todo o conhecimento de forma teórica é impossível devido às condições da crítica ao uso de critérios. Um último exemplo que demonstra que os céticos não podem ser acusados de criar um modelo, ou de que eles estariam usando um método para fundar uma teoria, é exatamente a réplica de que Sexto Empírico faz em sua obra quando acusam os céticos de serem ateus. Houve muitas críticas a céticos por filósofos gregos de que eles negam a existência de Deus ou dos deuses. Sexto responde assim: “não sou ateu, e vocês não podem afirmar isso, porque, para admitir que Deus não existe, eu estaria estabelecendo um critério dogmático, um método teológico para provar que Deus não existe.” Um teísta parte do postulado de que Deus existe, enquanto o ateísta parte do postulado de que Deus não existe. Um está assumindo uma posição tão dogmática quanto o outro. Daí o cético suspende o juízo sobre a existência de Deus, se abstendo de criar uma teoria sobre isso, e diz que a razão não tem condições de alcançar qualquer prova da existência de Deus. Em outras palavras ele diz que ninguém pode se comprometer com uma teoria, mas no máximo dizer “Deus existe segundo a minha sociedade”. A condição de crença ou não em Deus é o resultado de uma construção habitual ou consuetudinária sobre a figura de Deus ou dos deuses. Neste caso, a noção de Deus é uma noção própria daquela determinada sociedade. Para alguns isso é um agnosticismo: a razão não consegue provar Deus; entretanto isso não se encaixa bem no agnosticismo pois esta na verdade não é uma questão de não ter condições de provar Deus, até porque o agnosticismo é uma forma teórica; na verdade é uma omissão de se tentar provar Deus, e admitir aquilo que a sociedade aceita, admite e/ou construiu. É exatamente essa a idéia cética.
Então,
neste caso, nós vamos fechar a
matéria desse módulo.
Já vimos os modelos teóricos e os não teóricos. Nos ateóricos vimos a
Filosofia
anímica e a Filosofia anti-teórica. Dentro da anti-teórica já vimos o
existencialismo e o ceticismo, que acabamos de fechar, e agora
partiremos para
a última concepção, a...
A sofística estabelece toda a crítica à teoria em relação à questão da linguagem. São os três grandes campos da Filosofia: realidade, conhecimento e linguagem. Esses são os campos clássicos; a partir desses os demais são criados.
A sofística faz sua crítica a partir da linguagem. Qual a proposta da sofística? Pois bem, todo bom sofista faz uma crítica à linguagem, opondo o constructo lógico à retórica (a lógica é o fundamento de todo o método, de toda a teoria, como estudamos). Para os sofistas, não é possível criar um modelo que se baseie na esfera da lógica. Por quê? Vejam: a linguagem como constructo lógico tem um problema, que é exatamente dimensionar a possibilidade de resolver, na esfera da linguagem, todas as questões ligadas aos discursos humanos. Quando muito, podemos usar a lógica na Matemática, ou em outras esferas bem específicas. Mas aí está o problema: ela usa princípios e critérios de tal magnitude de univocidade que a lógica acaba sem ficar relacionada a exatamente aquilo que é importante para o homem. Podemos construir um modelo teórico sobre a realidade, inclusive como fez Aristóteles ao criar um modelo de Física. A Física de Aristóteles tem todos seus fundamentos na lógica. Para o sofista, podem-se ter preocupações com a realidade. Mas é aí que está: para ele, qual é o discurso que importa ao homem? Qual é a verdadeira preocupação do homem? É com a natureza? Aqui começam as idéias sofísticas.
Eles opõem dois grandes conceitos: um deles é chamado physis, termo grego para a Natureza. Physis (que vem do grego pré-homérico) significa “desabrochar de uma flor”. O homem pode controlar esse fenômeno? Desse conceito de desabrochar de flor saiu o conceito de Natureza, que o conjunto de todas as determinações e elementos que estão para além do controle humano. Quando muito, eles podem ser explicados. A astronomia consegue explicar porque a Lua gira em torno da Terra. Pode-se explicar porque terremotos acontecem, e também determinar a extensão dos danos. E também podemos explicar os pequenos raios que ocorrem nos cumes dos vulcões. Mas nenhum desses fenômenos podemos controlar, e alguns deles, como os terremotos, sequer podemos prever. A physis então é toda a condição de eventos que o homem não pode intervir. No máximo, ele pode se precaver; o homem pode saber exatamente como e onde surgem os furacões, mas, quando acontecer de fato, o que fazer? Salve-se quem puder. São, portanto, eventos que acontecerão independente de o homem querer ou não, logo estão além da vontade humana.
O que se pode fazer quanto à physis é apenas elaborar um modelo teórico. Podem-se usar tais conhecimentos para trazer benefícios para o homem, mas ainda assim se estará sob controle da Natureza. E se houver um desvio climático? Toda a pretensão de controle que se tinha vai para os ares. Vento solar: pode nos levar de volta à Idade Média se um disparo do Sol for de intensidade maior do que a regular. Todas as telecomunicações podem falhar.
Dado tudo isso, o que realmente interessa ao homem? É a natureza? O que está no âmago de nossas preocupações? Eles vão dizer que não é a physis a preocupação, mas a própria relação entre os homens, o que está sob o poder de controle deles. E todo homem, para alcançar a felicidade nesse sentido, no âmbito social ou da política, o que ele busca? A paz! Inclusive é a paz o fim do Direito. O que eles buscam é a tranqüilidade da alma; no campo político, ela é atingida quando se têm condições de viver numa pacífica sociedade política. É por isso que os sofistas colocam o conceito de Physis oposto ao de nómos, que significa lei em conceito geral, em sentido amplo. Não lei jurídica, mas no sentido de relação política, ou relação comunitária. São todas as normas. Normas, portanto, em sentido muito amplo, que vão além da concepção jurídica.
Enquanto physis é o conjunto de eventos que estão fora de controle, o nómos é o conjunto de eventos que estão sob o controle do homem. O homem pode controlar sua vida em comunidade através da política. Daí ele tem acesso às condições de controle que o permitem guiar seu destino na vida em sociedade. Disso tiramos a tradução de nómos para norma. Isso permitirá a nós a chegar à eudaimonia: em grego, significa felicidade, mas não como estado da mente humana, mas num sentido mais próximo de tranqüilidade da alma.
Essa tranqüilidade deve ser atingida exatamente na Polis. Eudaimonia, então, significa “um bom demônio”, ou “uma boa alma” (ou espírito). Isso não está no cosmos, entendido como toda a estrutura da Natureza, mas na comunidade.
Neste caso, onde surge o problema da linguagem? A lógica nos permite construir explicações, mas isso não leva a muito longe, porque continuamos subordinados à força da Natureza. Dado que nossa preocupação fundamental é com o nómos, nossa preocupação imediata então é construir discursos que permitam alcançar essa eudaimonia, e não constituir um discurso lógico de explicação. Já que a lógica busca a explicação, sendo aquela fundamento desta, como é que se consegue alcançar, na comunidade, nossa eudaimonia? Para o sofista, a Sociologia seria uma disciplina desnecessária: “explica a sociedade, mas e daí?” – perguntaria ele. Se explicar não leva a nada, já que não tem o fator interessante de trazer a tranqüilidade, o que se deve, portanto, é criar um discurso não de explicação, mas de convencimento. Da physis deriva a explicação, enquanto do nómos deriva o convencimento. Exemplo: houve uma propaganda da IBM, veiculada recentemente, na qual uma gerente de departamento se dirigia ao diretor e lhe falava de sua proposta, que seria de investir em soluções ecologicamente corretas. Falou do mérito da climatologia global e tudo que a Natureza ganharia com isso. Ao final, o chefe lhe pergunta: “OK, mas o que a empresa ganha com isso tudo?” A mulher responde: “uma economia anual de 5 milhões de dólares.” Surpreso, o chefe rapidamente diz: “Certo, me dá aqui que vou assinar.” Notem como o convencimento venceu qualquer outro fato exposto pela mulher. Ela deu todas as explicações teóricas e lógicas, e pode ter até usado a emoção e a simpatia para com a Natureza para conseguir o que queria, mas o que contou? Justamente o que interessava à sua audiência – o chefe.
Na verdade, dentro do campo da política, que é o que interessa ao homem (dado que política, para os gregos, era o conjunto de todos os conhecimentos ligados à moralidade e às ações do homem na polis), o que interessa para o sofista é provar que o seu modelo trará resultados melhores para a comunidade. É por isso que temos que tomar o cuidado de não confundir o modelo sofístico, na confusão causada por Platão, que estava em busca de salvar seu mestre, Sócrates, contemporâneo dos sofistas. Se olharmos propriamente o modelo de diálogo socrático, que não é nenhum modelo especificamente retórico, ainda assim ele tem uma grande dose de sofística (o modelo maiêutico). O problema para Platão é que o sofista tinha má fama na época. Eles vinham da região da Sicilia, portanto eram metecos (estrangeiros que viviam na polis), e não tinham direito de propriedade privada, nem direito algum dentro de Atenas. Eles vendiam o seu trabalho. Isso era algo que nunca um ateniense admitiria, porque achavam eles que o conhecimento tinha que ser doado, nunca cobrado. Sócrates, por exemplo, que era pobre, era sustentado por seus discípulos, que eram ricos. Sofistas não tinham patrocinadores, então cobravam pelas aulas que davam. É assim que começaram. Neste caso, os sofistas também eram famosos devido aos discursos retóricos, e também se ocupavam em abraçar o interesse daquele que queria resolver suas lides na assembléia, no tribunal. Ele usava seu trabalho de formulação de um discurso lógico nisso. Por exemplo: sou sofista, e você quer defender sua lide sobre uma posse de uma ovelha. Então, como antigamente não havia o advogado no sentido contemporâneo, as pessoas se autodefendiam em juízo. Elas, então, recorriam a um sofista e pediam um discurso para defender a causa. Daí eles cobravam pelo conhecimento, que não tinha amparo numa verdade absoluta teórica. Não é que o sofista nega a verdade; Platão é que não queria ver o mestre dele identificado com esse tipo de gente. Então ele faz todo o esforço, em todas suas grandes obras, nas quais falava sobre Górgias, Protágoras e Hípias, de trazer uma má impressão dos sofistas, atribuindo-lhes peso negativo, contrastando com o conhecimento de Sócrates. O fato de o conhecimento ser vendido não interferia na idoneidade do conhecimento em si.
Dado que se vai buscar o conhecimento, qual é a verdade? Existe uma verdade estabelecida por um método, logicamente estruturada? Não. A verdade que vale, portanto, seria a verdade que resulta da interação de formas de convencimento. Uma delas é o discurso. Verdade, para o sofista, não é a verdade a partir de um critério. As lides são resolvidas e nelas se busca a justiça, mas ela é buscada na arte do convencimento. No momento em que temos vários retores (retor é o homem que domina a linguagem), a verdade era aquela que convencia a assembléia. Não é uma imposição malévola do discurso e distorção do que outros chamariam de verdade absoluta. O discurso é uma interação entre o retor e a audiência. Nisso elimina-se a idéia de Platão de que se busca, com a sofística, simplesmente manipular a vontade e o conhecimento. Para o sofista, na verdade, o convencimento é de um discurso que a própria audiência aceita. É aquele que tem a melhor condição de convencer mostrando que determinada proposta é a que trará melhores condições de felicidade. O retor domina, com relação ao discurso, a gramática da linguagem (a regra, dando um discurso fluido), para que não se tenham dificuldades de expressão, mesmo que sua assembléia não detenha essa erudição. A assembléia não gostava de que se falasse feio apenas para aproximar o locutor de seu público (o povo), pois o povo mesmo não quer ver alguém despreparado numa posição importante, mesmo que seja alguém semelhante a ele. Em segundo lugar, ele tem que dominar a arte da oratória, ou seja, a arte da fala: como expor o discurso. Não só discursar, falando gramaticalmente correto, mas como apresentar esse discurso. Aquele que consegue dominar sofisticadamente esses dois aspectos está em condições de convencer. Esse é o ponto importante: não há a verdade para o sofista. Ele nega a verdade? Não, ele diz que ela está determinada pelo convencimento que saiu vencedor, logo, ele relativiza a verdade. Ao convencer alguém, tem-se a verdade. Daí a verdade é sempre um constructo. Não há uma verdade a priori logicamente determinada por um critério. A verdade é enquanto meu conhecimento durar. Disso não segue que o vencedor do debate é o imperador da verdade e da realidade; ele apenas venceu a simpatia da audiência naquele aspecto. Vamos ilustrar.
Tribunal do Júri: um sujeito é acusado de homicídio. A promotoria, que o acusa, pinta um quadro, constrói uma narrativa na qual ele é culpado, e expõe o discurso. O advogado construirá outra narrativa na qual o réu é inocente. Agora suponham que o sujeito saia absolvido da acusação. Significa que ele é inocente mesmo? Não necessariamente. Apenas foi o discurso que melhor satisfez a audiência (o júri), no caso, o discurso da defesa. Para o sofista, a realidade é exatamente esse quadro criado pelo advogado.
Isso posto, porque existe, então, a instituição do Supremo Tribunal Federal? Não seria nele que chegaria aquele problema em último caso? Quer dizer então que a decisão do Supremo é a verdade absoluta? Não. Ele também foi criado pelo Poder Constituinte Originário, que por sua vez é mais um constructo consuetudinário já que a nossa sociedade, como quase todas as outras, busca a paz social. Sem uma decisão final, a inquietação perduraria. Mas observe: as construções do nómos não são verdades absolutas e eternas; elas foram criadas apenas porque, dado que o homem é incapaz de controlar a Natureza, ele deve criar condições para chegar à paz e mantê-la na medida do possível, então a razão de ser da atividade sofística, que é a do discurso de convencimento, é criar a paz para aqueles que forem convencidos. Górgias dizia: “que belo órgão é a língua humana! Ela pode curar. Não curar no sentido fisiológico do termo, que é a competência da medicina; mas ela pode curar o caos social através da atividade política, do discurso, que gerará a calmaria para as lides no momento em que ele convence.” ³
Por
fim, vejam qual era a situação de
Helena de Tróia: como
descrito nas obras de Platão, depois da conquista de Tróia, Helena foi
capturada pelos gregos e trazida para a polis para ser julgada pelos
homens e
pelos deuses. Górgias, o sofista, intervém e diz: “espere, isto aqui
não passa
de um esmagamento do mais fraco pelo mais forte.” Então ele apresenta
uma
defesa para ela, e diz que a mulher poderia até disputar com os deuses,
mas
quando isso fosse feito, ela teria alguma chance de vencer? Não. Por
isso a
disputa deve se dar entre homens, não entre um humano e um deus.
Analogamente,
ele não deve querer disputar com a Natureza justamente por não ter
controle
sobre ela. Daí o mote da sofística: preocupar-se com as relações
humanas na
esfera da política, não com a relação entre homem e Natureza. Hípias,
um
sofista menor, critica a idéia grega, especialmente a aristotélica, de
controle
por escravatura, já que Aristóteles dizia que alguns eram escravos por
natureza. Hípias dizia que os homens eram iguais por natureza, mas eles
mesmos
se fizeram desiguais, através do nómos,
com a criação de leis que deixa uns em posição melhor que outros. Daí,
Hípias
defende que todos os homens deveriam ter pelo menos a mesma condição de
debate.
Só assim se conseguiria a harmonia na vivência. É a defesa do que
depois se
consolidou como o princípio da paridade
das armas, derivado do princípio do devido processo legal.
Acabou a matéria da primeira prova.