Filosofia

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009


Na aula de hoje então vamos estudar a própria noção de Filosofia. Vamos estabelecer noções de Filosofia e os parâmetros para que possamos trabalhar. Comparando com a conceituação da Filosofia, é muito mais complicado do que conceituar Direito ou Física. Se vocês lembram de Iniciação à Ciência, para cada teoria há um determinado estatuto, ou seja para eu determinar o que é um tipo de conhecimento teórico, eu tenho que estabelecer alguns parâmetros. São eles: objeto, método e seu escopo. Os dois últimos são respectivamente a lógica de pesquisa daquele modelo teórico e o fim daquela teoria.  São esses três elementos que determinam o estatuto de uma teoria. Digamos o Direito. O objeto do Direito é fundamentalmente o ordenamento jurídico. Dá para ampliar a noção de objeto, mas é basicamente isso. O método do Direito é exatamente o método das ciências sociais. E o escopo, então, é o estudo da norma, de acordo com Kelsen, que considerava o Direito era uma ciência.

Para a Filosofia, temos que entender seu objeto, o método e o escopo. É aqui que está o problema, porque depende dos filósofos. O que um diz que é Filosofia não é necessariamente aceito por outro. Por isso que hoje em dia há uma discussão muito grande se existe “a Filosofia”, que seria aquela que ouvimos no dia a dia, ou se existem diversas Filosofias. Podemos dizer que tanto a Mecânica, a Óptica quanto a Quântica são Física. Todas elas têm um ponto em comum: elas analisam a natureza a partir de seu comportamento. Por isso dizemos que existe a Física. Da mesma forma a biologia: genericamente, ela é o estudo da vida. Então temos aqui dentro a zoologia, a botânica, etc. Podemos ramificar a biologia em vários níveis: dentro da zoologia, tem, por exemplo, a primatologia.

No Direito, temos a área de Direito Público, Direito Privado, e isso é possível nessas áreas, porque no final das contas admite-se uma unidade de objeto, de método e de fim, ou de objeto daquela coisa. Em geral a unidade está no objeto. Os autores podem até discordar a respeito da metodologia de determinada ciência, mas em geral se tem uma concordância sobre o objeto.

E a Filosofia? É aqui que as coisas complicam. Quando falamos que uma teoria tem um objeto, dizemos que ela tem um objetivo próprio, ou o objetivo dela é dado por outras teorias. Física: é ciência pura porque seu objeto é dado por ela mesma. Já a Engenharia é a aplicação tecnológica dos objetos da Física. Logo a Engenharia não é uma ciência pura. É, portanto, uma tecnologia. Medicina: é uma ciência aplicada, que tem um objeto (o corpo humano), mas não estuda propriamente o corpo humano como um organismo vivo, que é competência da biologia. Então, podemos determinar o primeiro ponto fundamental que é o objeto. A Filosofia tem um objeto próprio? Ou ela sequer tem objeto? Se ela tem um, que objeto é esse? É aí que começaremos a investigar as diversas formas de entender a Filosofia.

Digamos, então, que a Filosofia tem um objeto próprio. Logo, ela tem um método próprio de investigar as coisas. Se for impróprio, teremos outro problema de método porque o objeto seria dado por outra teoria. Os que defendem essa parte são os céticos (não céticos em sentido amplo, mas os afiliados ao ceticismo como corrente filosófica).

Aí temos três grandes perspectivas: estão no texto indicado ontem para ler, do autor Bolchenski. Primeiramente, a idéia de que o objeto da Filosofia é tão supremo que é a própria realidade, na qual todas as outras teorias estudariam também. Por exemplo a Física: estuda a Natureza a partir da concepção de seu movimento. A Química estuda a Natureza a partir da sua concepção de composição, e assim por diante. A Filosofia também, mas não sob determinado aspecto. Ela estudaria a Natureza a partir da condição do que é a própria Natureza, e não do aspecto material dela. Nesse caso, então, a Filosofia, segundo esses autores, teria um objeto, que é a Natureza. Isso inclui o homem e o Universo. Então, a questão interessante é que, quando temos um objeto, fazemos uma pergunta: o que é o objeto da Filosofia? Ao fazer essa pergunta, perguntamos por que o Universo existe. Porque a Natureza existe? Porque as coisas são tais como elas são? Essas perguntas terão diferentes respostas dependendo de quem respondê-la. Um físico vai responder que o Universo tem essa estrutura devido à conjunção de 4 forças: nuclear forte, eletromagnética, eletrofraca e gravitacional). Entretanto um dia os astrofísicos começaram a pesquisar o Universo, e viram que toda a matéria que tínhamos conhecimento, que é matéria não-escura, não chega a 5% do total detectável. Essa teoria também não explica toda a massa do universo (da ordem de 10⁵³ kg). A teoria da matéria escura explicaria também o porquê de o Universo estar expandindo.

E o filósofo? Quando ele pergunta o que é Universo? Ele pergunta não a respeito da composição, de átomos, energia, de acordo com os cientistas da natureza. Quando o filósofo pergunta se esse modelo está correto, ele diz: “o que explica o Universo ser desse modo é...” Ou então, outra pergunta que parece completamente diferente: “Por que nos temos tais padrões morais?” Um sociólogo como Durkheim diz que agimos desse modo porque existe a sociedade, que exerce uma pressão sobre o indivíduo, fazendo com que ele se comporte de determinada maneira, modelando seu comportamento. Mesmo que um indivíduo aja fora do parâmetro, a sociedade tem uma forma de controlá-lo. Quem comete um crime já tem um controle da sociedade previsto: o processo penal. Logo, para Durkheim a sociedade tem um efeito de controle sobre o indivíduo. Mas, quando o filósofo faz essa pergunta, ele não pergunta “como se constitui a sociedade?”, mas "por que o homem é um animal político?", como disse Aristóteles. O sociólogo estuda como a sociedade pode se constituir, enquanto o filósofo cria modelos de sociedade que podem nunca vir a existir. Utopias, por exemplo. Platão afirma isso em sua obra A República.

O filósofo não pensa no que existe, mas numa explicação de o que poderia existir como melhor modelo político. Um antropólogo ou sociólogo irão estudar sociedades já existentes. O mesmo para o Direito. Tais disciplinas visam a estabelecer estudos de como os homens se organizam. O teórico do Direito não está preocupado em descobrir qual seria o melhor modelo de organização jurídica teoricamente e abstratamente, mas como é o ordenamento jurídico brasileiro, e como resolver as lides no sistema do Estado brasileiro. No final das contas, se admitirmos que a Filosofia tem um objeto próprio, então ela vai estudar a Natureza, a sociedade, o homem, os valores, e assim por diante,  exatamente como as outras teorias fazem. A pergunta feita por diferentes especialistas pode ser a mesma, mas a resposta de cada um será bem diferente.

Essa linha de pensamento sobre a Filosofia é a mais antiga de todas. Inclui os gregos.

Aristóteles compôs uma grande obra. Escreveu sobre a ética (vamos ver a Ética a Nicômaco). Ele também se perguntou por que o homem é o único animal racional, ou o que o faz diferente de um chimpanzé, ou de uma formiga. Note que a resposta de um biólogo seria não muito difícil de se imaginar: ele citaria os aspectos anatômicos e fisiológicos para diferenciá-los, bem como especificar a qual classificação de ser vivo cada um pertence. Mas quando o filósofo pergunta exatamente o que é o homem, veremos que o homem quase não possui diferenças biológicas em relação ao chimpanzé. Com um pouco de abstração, veremos que não somos muito diferentes de uma ameba. E mais: biologicamente, nós somos os menos indicados para a sobrevivência. Veja o crocodilo: o mais antigo registro fóssil data de 280 milhões de anos atrás, e os fósseis encontrados indicam que não houve quase nenhuma mudança na estrutura do animal antigo e o atual. Ele se adaptou bem às mudanças na biosfera, e é bem mais velho que o Homo sapiens moderno, que tem não mais de 2 milhões de anos. Quem é o melhor na arte da sobrevivência?

Mas o filósofo, indagando sobre o homem, ao levantar a possibilidade de sermos riscados do mapa amanhã, pergunta "o que nos faz diferente de outro animal?" Aristóteles diz que somos o único animal que tem a racionalidade. Os demais animais, apesar de terem intelecto elevado, não têm a racionalidade. E as abelhas, hein? São fantásticas: estudos mostraram que sua dança, que a nossos olhos parece a coisa mais caótica, na verdade é completa de sentido, e serve para que a "coreógrafa" indique às companheiras informações sobre o ambiente, como a distância à flor que será polinizada e a direção, usando como referencial o zênite. O mesmo para as lulas com seus cloroplastos, que lhes permite mudar de cor para indicar determinados estados. Mas qual a diferença entre homem e animal? A neta daquela lula vai fazer o que? Exatamente a mesma coisa que a avó. Então, podemos dizer que o homem tem a capacidade de aperfeiçoamento de tecnologias. A NASA, por exemplo, desenvolveu a caneta rollerball de acordo com a necessidade que surgiu de se escrever em ambientes de gravidade zero. O homem tem a capacidade de abstrair. O animal só consegue resolver os problemas concretos. O homem é capaz de mudar tanto o próprio objeto da tecnologia como a tecnologia mesma. Então, dizemos que o homem é o único capaz de refletir, segundo Aristóteles. Logo, essas perguntas são as perguntas do filósofo, não do biólogo.

É o que defendem os teóricos que dizem que a Filosofia tem um objeto. Eles defendem que a Filosofia tem um objeto muito próprio e único, que é a Natureza. Aristóteles diz: dado que somos animais racionais, somos também animais políticos. Sociedade política é o estabelecimento de normas de conduta. Daí advêm a necessidade de se ter um sistema de leis.

Quando um filósofo trata de um objeto, esse objeto é buscado por sua própria Natureza. Dessa forma, dizemos que a Filosofia não é só uma ciência, mas a ciência de todas as ciências. Mas o que é ciência, neste contexto? Temos que tomar no sentido grego do termo: como epistéme. O que vem a ser isso? Episteme é o conhecimento racional e organizado. A diferença entre Física e a Filosofia é que a primeira estuda um aspecto da Natureza: o movimento. A Química também estuda um aspecto da Natureza: a sua estrutura e elementos que a compõem. A Filosofia não estuda esses aspectos, mas estuda a própria natureza da realidade.¹ Não apenas se faz a pergunta de como a realidade se organiza, mas “por que a realidade é assim, e não de outro jeito? Quais seriam as outras possibilidades de existência da realidade?” O filósofo se pergunta porque a realidade é tal e qual. O físico não questiona a existência do mundo, mas o filósofo tem inclusive a liberdade de se perguntar se o mundo realmente existe. E o homem é exatamente o único qualificado para responder essa pergunta, ou ao menos tentar.

Se um dia aparecermos na sala de aula e o cesto de lixo não estiver no lugar, mas em cima da mesa, logo perguntamos "por que ele não está ali?", e também "quem fez isso?". Tentamos estabelecer uma relação de causalidade.

Se estamos perdidos, qual é o primeiro sentimento que nos ocorre? Desespero, porque nos faltam balizas. Naquele momento em que estamos perdidos, o mundo é exatamente um caos, uma desorganização. Então, no final das contas, a Natureza pode ser inferida como um conjunto de balizas que nos orientam. O homem estabelece expectativas sobre seu conhecimento. Qual a expectativa assim que abrimos os olhos ao acordar? Que o mundo existe! Por isso que muitas respostas foram dadas exatamente para explicar a organização desse mundo.

O físico pergunta por que a lousa está ali, e por que ela é branca. Note que a pergunta não extravasa uma dada realidade. Afinal ele pode querer entender por que a vemos branca, ou então entender porque a cor branca foi escolhida, e por que aquele lugar foi escolhido para fixá-la. Já o filósofo perguntaria "por que é essa a realidade, e não outra?". Então, ele até diria que a Filosofia tem o mesmo objeto da Física, mas as respostas dele são completamente diferentes da do físico.

O sociólogo pergunta qual é a causa de determinado ambiente social ser do jeito que é. Digamos uma favela: o estudioso quererá estabelecer padrões, e então entender o que os moradores de lá consideram "justiça". O filósofo perguntaria o que faz o homem ser um ser moral, e tomar decisões morais ou imorais, independente de sua nacionalidade. O sociólogo pergunta dentro de um campo restrito, como, por exemplo, a sociedade brasileira.

Quando um filósofo faz uma pergunta, ele faz o que se chama de pergunta radical. Por quê? O que é radical? Tem a ver com a idéia de raiz. Ele vai para a raiz de seu objeto. Porque o homem é um ser moral. Porque ele se reúne em sociedade?

O homem na Idade Média podia voar? Não, porque ele não tinha os instrumentos. Essa é a resposta física. Mas seria logicamente impossível? Não, senão ele não voaria nem mesmo hoje. Agora vejamos: o homem não pode viajar à velocidade da luz. Mas isso não é logicamente impossível pois não implica numa contradição lógica. A impossibilidade, defendida por Einstein, em seu tratado sobre a Relatividade, de se chegar à velocidade da luz é apenas de ordem teórica, e não lógica.

A Filosofia é a senhora de todo o conhecimento, pois a pergunta dela é sobre a condição de como a própria natureza é como é.

Existe outro entendimento sobre o caráter cientifico da Filosofia, como ciência não epistêmica, mas como ciência sistematizadora de todas as outras ciências. Um dos grandes teóricos defensores dessa tese era Auguste Comte. Ele defendia que a Filosofia não é ciência, palavra aqui tomada no sentido mais restrito. A tese dele é: quem "mandava no mundo" era Newton, que conseguiu explicar, com apenas uma teoria, a da Gravitação Universal, que o motivo para que um objeto caia seja o mesmo pelo qual a Terra atrai a Lua, bem como as estrelas atraem os planetas de seus sistemas, logo a Teoria da Gravitação Universal explicaria, mesmo que grosseiramente, como é o Universo. A proposta de Comte foi: do mesmo modo que temos uma Física da Natureza, podemos criar uma Física da sociedade. Seria o estudo de como se estabelecem as relações sociais. Desse mesmo grupo é Marx, que, apesar de criticar Comte tão ferrenhamente por suas idéias positivistas, era tão positivista quanto ele.

Na aula que vem vamos entender a Filosofia como ciência sistematizadora, os métodos, e depois veremos a última concepção, que é a dos que vêem a Filosofia não como ciência, mas como metodologia.


1- Cuidado para não confundir: aqui, a expressão é “natureza da realidade”, e “natureza” está com N minúsculo, no sentido de “essência da realidade”. A Natureza, quando escrita com N maiúsculo, se refere ao conjunto de todas as coisas criadas.