Filosofia

terça-feira, 12 de maio de 2009

A realidade para Platão



Qual a posição dele sobre a realidade? Como o professor disse, o texto central de Platão é a República, livro VII. Então, a questão interessante com relação a Platão é a seguinte: como Platão responde e justifica as três perguntas que temos colocamos na aula passada: o que é a realidade, se ela é autônoma e, para Platão, como ela se estrutura.

A questão para Platão, sabendo que ele é realista, é que, se formos observar a realidade, temos que fazer uns questionamentos. O pincel atômico é preto. Verdadeiro ou falso? Ninguém em sã consciência diria que é falso. Mas Platão pergunta: o preto que está no pincel é próprio desse pincel? Se não fosse, o preto nem estaria aqui. É própria, portanto, preto enquanto está nele. Agora, a próxima pergunta de Platão é: a cor preta é intrínseca a esse pincel, ela pertence necessariamente à estrutura desse pincel atômico? Não, pois teríamos um problema lógico imediato: se a cor preta fosse intrinsecamente própria desse pincel, a conseqüência lógica seria que não poderia haver pinceis de outras cores. A segunda é que outras coisas não poderiam ser pretas. No final das contas, então, apesar da cor preta pertencer a este pincel atômico, ele poderia ter outra cor qualquer, poderia ser verde, azul, vermelho... E outra coisa: também outros objetos não poderiam ser pretos.

Vamos admitir outras qualidades: o que nos faz seres humanos? Ao observar outro ser humano, o que está nele que o identifica como ser humano?  A forma do corpo? E se construirmos um andróide com a mesma forma do ser humano? E a pessoa que tenha uma deficiência física? Não existiriam nenhum dos dois? Ter dois braços nos determina como seres humanos? O que nos faz entender que nós pertencemos à mesma espécie, e que tudo não é um grande engano? É o cérebro que nos identifica? E os anencefálicos? Ainda assim eles são identificados como seres humanos. Então, ter forma, cérebro e braços nos identifica como seres humanos?

E os cromossomos? Também não, pois há os portadores de síndrome de Down. Essa é a idéia. Então, no final, só há duas respostas. Uma: ser humano é uma convenção. Então, o que chamamos de ser humano é fruto de um consenso. Mas acabamos que, temos formas diferentes de seres humanos. Mesmo a condição cromossômica não nos dá essa idéia, pois os cromossomos sexuais fariam a diferença entre homens e mulheres: elas seriam (46 + XX) e eles seriam (46 + XY). Disso, seguiria que apenas o homem ou a mulher seria ser humano. E agora? Platão diria isso se conhecesse nossa ciência. Então, o que nos faz identificar? A resposta possível é que é uma mera convenção. Ser humano é um nome dado apenas para fins de agrupamento. É uma condição social, biológica, jurídica... Então, se é convenção, é fácil termos problemas. Se o anencéfalo existe, então não poderíamos convencionar que ele não é ser humano? E há também os antigos romanos com suas crianças. Elas só eram consideradas seres humanos depois de atingida determinada idade, e o feto mesmo era considerado como vísceras da mãe. A criança recém-nascida não estava tutelada pelo Direito das gentes. Nós, hoje em dia, tutelamos. Então neste caso a questão interessante é que poderíamos fazer uma regressão infinita: tomar uma portadora de síndrome de Down, ou alguém com QI bem inferior à média, ou aquele que é normal.  Tudo teria que remeter à convenção, e tudo seria problemático, pois sempre haveria um grupo excluído. Se houvesse o critério da inteligência, Einstein (QI = 240) deveria ser mais ser humano que nós. A criança anencefálica seria até menos humana do que o cachorro. Com a mera convenção, jamais ter-se-ia um parâmetro válido para determinar o que é um ser humano.

Mas o problema da convenção é ainda mais sério: é não haver critério válido. Qualquer critério é critério. Neste caso, Hitler não seria culpado de nada. Segundo o parâmetro que ele estabeleceu de ser humano, ele está certo, e judeus e não-arianos seriam seres não-humanos. O problema, no final, é que não há como determinar. E o parâmetro para determinar teria que ser racional.

Vejamos outro exemplo: a noção de coragem. Quando o professor diz: no começo deste ano, foi feita uma enquete e se perguntou qual é a mulher mais bela do cinema de todos os tempos. E venceu Audrey Hepburn, que atuava nas décadas de 40, 50 e 60. De fato ela é linda.

Mas a beleza dela é angelical, ela parece uma garotinha, um pequeno anjo. Votaram especialistas em cinema, atores, atrizes, cinéfilos... Então surge o enunciado:

Audrey é bela.

A pergunta a fazer é: vamos substituir o “é” por “=”. Admitamos que Audrey seja bela segundo essa enquete. Mas Audrey = bela? Não, pois só ela seria bela, e mais que isso, ela seria a própria beleza personificada. Então, estamos colocando um predicado a um sujeito. Mas jamais posso dizer que o “é” é um símbolo de igualdade. Por mais que ela seja linda, ninguém vai dizer que ela é a própria beleza. O certo, então, é dizer

Audrey Є bela.

O enunciado então é dizer que Audrey pertence às coisas que são belas.

Teríamos que discriminar que a beleza de Audrey é pela sua condição de mulher. Aí sim ela pertenceria ao conjunto de todas as coisas que são mulheres belas.

Mas em que sentido que Audrey Hepburn é uma bela mulher? Nos parâmetros dos indianos? Dos africanos? Ou mesmo no parâmetro ocidental? E, mesmo se fosse no Ocidente, mas não quiséssemos uma beleza do tipo angelical, quem poderia estar no páreo seria Marilyn Monroe ou Angelina Jolie.

E no século XVIII, o que era bela mulher? Mulheres gordinhas: alimentação, riqueza, saúde era sinal de mulher bela. Então, por mais que digamos “uma bela mulher”, estatua ou pintura, podemos dizer que a pintura de Picasso, cubista e, na opinião de alguns, disforme, seria tão bela quanto a obra renascentista de Rafael?

Neste caso, estamos falando de um valor estético. Mas podemos falar em outros valores, não só de dados empíricos sensuais. A condição de beleza de uma determinada mulher, imagem, estatua ou pintura é, no fundo, uma condição empírica. Mas nós podemos também admitir outros conceitos, morais por exemplo. Os valores morais. Daí vem a pergunta: o que é, por exemplo, a coragem? Destemor? A pessoa que, apesar de temer, faz. Vamos testar esse conceito.

No século IV, o Bispo de Lyon era uma das pessoas mais importantes, e o Cristianismo não era difundidamente a religião do Império, então ainda havia muita perseguição a cristãos. O Cristianismo já havia sido aceito por Constantino, mas o imperador Décio ¹ havia considerado que a culpa da perda de força do Império era do Cristianismo. Havia o Bispo de Lyon, que estava em meio à perseguição em sua região. Quando a perseguição chegou, ele fugiu, e foi questionado por alguns cristãos perguntando porque ele fugiu, sendo líder, já que tinha o dever de demonstrar coragem e força. Entenderam que ele era um covarde. Ele respondeu: “se eu me entregasse hoje, tudo o que nós somos poderia se perder.” Anos depois veio outra perseguição e desta vez ele se deixou levar. Isso pode ser corajoso? Aquele que é destemido pode ser considerado corajoso. Mas o que se opõe ao próprio amigo não tem que ser mais corajoso ainda? Gandhi poderia ser considerado corajoso, ele que pediu para os seguidores não pegarem em armas e levarem tiros?

E os inwalks? Entra a noção de honra, coragem e justiça. Hoje em dia o povo inwalk não pensaria assim porque eles estão mais ocidentalizados. Vejamos a religião deles. Como eles viviam no ártico, sua a religião afirmava que o mundo post mortem é exatamente igual a este. Haverá leões marinhos, focas, ursos polares e a mesma paisagem. Mas a idade com que a pessoa morre aqui é a idade que a pessoa viverá na eternidade do outro lado, ou seja, quem morresse com 15 anos de idade seria, para sempre, um jovem de 15 anos. O que é interessante é que há 150 anos a vida era tão dura que o sujeito vivia forte fisicamente até os 50 anos. Então, a responsabilidade do inwalk era que o filho deveria levar o pai até o mais longe possível e abandoná-lo para morrer. Por quê? Porque, se ele fosse cuidado até idade mais avançada, ele morreria mais debilitado e assim ficaria para a eternidade, e não conseguiria, por exemplo, caçar, “do lado de lá.” Então, isso é coragem: a responsabilidade; era honrado que o filho fizesse isso. É o que eles esperavam que o filho fosse fazer ao chegar o dia de morrer.

No Código Bushido dos Samurais, se ele desonrasse seu Daimyo (senhor), o Samurai teria que cometer seppuku (harakiri). Consistia em cortar a barriga com a espada Wakizashi (a espada curta), e depois ter a cabeça cortada com a Katana (a espada longa) por um kaishakunin (assistente), normalmente o melhor discípulo que, honrosamente, deveria fazê-lo sem deixar a cabeça rolar.

Agora perguntamos: isso é inaceitável? O que fazemos com nossos velhos, jogando-os em asilos? O que temos de melhor que os inwalk?

Isso posto, quando sabemos que alguém é justo ou corajoso? Por suas ações. Então, ainda estamos determinados pelos nossos sentidos. São aquelas ações que podemos dizer que são justas, corajosas, esteticamente belas, ou até honradas, ou o contrário de cada uma dessas coisas. Mas o que é honra? Para um esquimó, seria levar o pai para morrer, o que não tem nada a ver com a honra para um Samurai. Se tudo isso é convencional, temos o mesmo problema de novo! Qual será o parâmetro? O que vai ser inaceitável, então? Hitler não honrou o povo alemão?

Neste caso, como é que fica a questão de: “estamos entrando no mesmo rio duas vezes ou não?” Nesta realidade empírica, empírica de dados factuais, ser ser humano, ter braço, perna, ou ser pincel, ter cor preta, etc. que são as coisas que nos identificam, temos que cada indivíduo é único, com sua identidade. Mas essa identidade implica multiplicidade ou unicidade? Multiplicidade. Apesar de haver um ente de cada um, como um diferente homem em relação aos outros, há muitos “de nós”. Há, no final das contas, N indivíduos humanos. Assim como há múltiplos pincéis e árvores. Pinceis com múltiplas cores, múltiplos indivíduos humanos com ou sem cabelo.

Então, tome um indivíduo. Ele pode ser negro, advogado, ter 1,8m de altura, ser macho da espécie, e assim por diante. Outro indivíduo pode ser médica, fêmea da espécie, caucasóide, ter cabelo ruivo, e suas outras características. Então, se a cor preta fosse propriamente intrínseca ao pincel, ao destruir o pincel, nunca mais se poderia ver algo preto. O mesmo para a condição de ser pincel: ao destruí-lo, não poderia mais haver pincéis.

Agora tome o enunciado:

“O homem é um animal mamífero.”

Se os homens fossem exterminados, o enunciado deixaria de ser verdadeiro? Não, pois ser mamífero não pertence à definição de homem. Mas mesmo assim, mesmo que acabássemos com todos os seres humanos, o enunciado “o homem é um animal mortal” continuaria sendo verdadeiro.

Então, o mundo é múltiplo, e mutável. Apesar de tudo isso, ainda temos algo que nos identifica. Mas nada que tentamos até agora é suficiente para nos identificar, salvo se admitirmos a convenção. Então, não podemos buscar esse parâmetro no mundo empírico. Se não temos um parâmetro racional para dizer o que é ser humano ou o que é justo, o que sobra, se não se tem a razão? A força. É o que Hitler, Saddam Hussein, Nero e George Bush diziam que era justo. Neste caso, este mundo é mutável no tempo. Um sujeito pode até querer não mais ser macho da espécie, hoje em dia. Mas mesmo assim, ele continua sendo macho, mesmo tendo toda a forma de uma mulher. O cromossomo Y permanece.

É aí que está: os X e Y não são suficientes para dizer que somos seres humanos. Só são suficientes para dizermos se somos machos ou fêmeas da espécie. Mesmo como espécie, podemos deixar de ser humanos? Num futuro, seremos extintos. Ou da forma como aconteceu com os dinossauros, ou quando passarmos deste modelo de ser humano para outro modelo. Como os homens de Neanderthal. Alguém do futuro pode achar tanta semelhança entre nós e o chimpanzé. Mas isso tirará nossa condição de ser humano? Quando classificamos o homo sapiens moderno? Este é o ponto. Neste mundo, os entes empíricos podem passar a ser de modo diferente deixar e até de ser. Poderíamos até nem ser. Poderíamos nem ter sido, se aquele grande asteróide não tivesse atingido a Terra; os dinossauros ainda reinariam.

Para vencer toda essa tentativa convencional de solução, devemos admitir que há uma condição que torna todos esses objetos pretos, ou pincéis, ou seres humanos, apesar de todas as variações do tempo. Platão pergunta: existe uma unicidade? Algo que nos identifique como seres humanos, ou os pinceis como pinceis? Algo que faça com que a cor branca que está no teto também esteja na lousa?

A próxima pergunta de Platão é: chegamos à conclusão que a vermelhidão não pode estar intrinsecamente na blusa de ninguém. Só podemos admitir que essas condições que fazem com que pareçamos seres humanos: ter olhos, ter pernas, ter cabelo, ter racionalidade; e ainda assim há homens com olhos de diferentes cores, diferentes estaturas, e até diferentes graus de apuração da racionalidade. Apesar de todas as diferenças, ainda somos seres humanos? A condição que nos define não pode estar aqui, neste no mundo. Isso porque, de novo, continuaríamos com toda a multiplicidade.

Para entender, desenhe um triângulo numa folha de papel, ou imagine-se desenhando. Se você desenhou bem, ele deverá possuir três lados cuja soma da medida de dois sempre seja maior do que a medida do terceiro, e seus ângulos internos devem somar 180°. Depois de feito, olhe para o desenho que você acaba de fazer. Isso é mesmo um triângulo? A resposta é não. Por quê? Mesmo que você tenha feito com toda a precisão que um ser humano consegue, isso não pode ser um triângulo pois você não conseguiu representar fielmente, chegando à definição de triângulo.

Então, neste mundo empírico, que é o nosso, admitimos que devem existir características, qualidades, atributos que dão o preto ao pincel mas não é a própria “pretitude”. Este mundo não comporta as definições. Acabando os seres humanos ou não, a própria condição de homem ou preto continua. Se não podem existir aqui, só podem existir num mundo metafísico. Apesar de “metafísica” não existir no vocabulário de Platão, ele é o criador da metafísica. Ele faz um teorema de um argumento dedutivo. Ele analisou todas as possibilidades, diante de todas as mudanças, de não poder explicar o mundo por ele mesmo, daí termos que usar outro mundo que o defina. Deve haver, portanto, um mundo sem mudanças: uma realidade metafísica, meta-empírica, algo que faz com que nos identifiquemos como seres humanos, homens, com pêlo, ou pinceis com cor preta. Daí a necessidade de admitir a existência de um mundo ideal. A condição de ser de cada ente tem que estar lá.

É nesse mundo que Platão coloca as arkhai: as causas, fontes de tudo. O “per se”, a beleza “per se” está nesse mundo. Então, a pergunta é: neste caso, temos as idéias. As arkhai são chamadas de idéias por Platão. Quantas idéias de “o que seja homem” há por aqui? Muitas. Mas e lá no mundo ideal? Somente uma! Assim como só há uma definição para triângulo retângulo. E também a idéia de justiça está nesse mundo ideal: a justiça, ou a beleza, do qual Audrey Hepburn participa. Isto é o que Platão dá o nome de idéia: eídos: modelo, parâmetro. Qual o parâmetro para comparar Gisele Bündchen com Audrey?

Todos os entes empíricos são chamados, por Platão, de eídolon. Remete à idéia de ídolo. O que é um ídolo? No sentido religioso do termo, é meramente uma imagem. Portanto, os entes do mundo nosso são imagens do mundo ideal.

Qual a verdadeira realidade? A realidade do mundo empírico ou do mundo das idéias? Qual dos mundos tem “a” realidade? Idéias não podem deixar de existir, o triângulo não pode cessar sua existência. Somente a forma triangular que pode. O mundo ideal é o que contém a idéia de cada ente. Os entes do mundo empírico são únicos (adjetivo), mas a unicidade (substantivo) está no mundo ideal.

Pergunta para depois:

Chegamos à conclusão de que esse mundo ideal é o que deve existir. Mas o nosso é o mundo empírico. Um contém a realidade verdadeira, e outro contém a realidade imperfeita. Falta, portanto, algo que estabeleça o vínculo entre essas duas realidades.


  1. O único imperador romano com nome “Décio” que encontrei foi o que viveu entre 201 e 251, portanto antes de Constantino, e não no século IV.