Filosofia

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009


Concepções da Filosofia


Na aula passada, vimos aquele esquema que descreve as concepções que diferentes filósofos têm da Filosofia. A primeira dessas concepções é de teoria. Sendo teoria, a Filosofia tem um estatuto, que por sua vez vai indicar a existência de um objeto, um método e um escopo.

Os realistas

Posteriormente vamos falar dos teóricos que dizem que a Filosofia é uma mera teoria. Em relação ao objeto da Filosofia, há quem diga que ele é próprio, e outros que dizem que o objeto da Filosofia é impróprio. Se é próprio, então a Filosofia mesma fala sobre esse objeto. Neste caso, os que defendem que a Filosofia é uma disciplina de primeira ordem são denominados realistas. O realismo é a doutrina filosófica que diz que a Filosofia não só tem um objeto próprio, mas que esse objeto é próprio de uma ciência. Logo, para eles, a Filosofia é uma ciência, denominada episteme. Episteme é conhecimento ortodoxo, rigoroso e inquestionável.

A Física estuda a Natureza, mas o faz partindo de uma condição provisória, limitada eparcial, enquanto a Filosofia não tem essa limitação. Ao mesmo tempo, o Direito estuda a forma como o homem se organiza, mas apenas em relação a dado ordenamento jurídico. Logo, diz-se que o objeto da Filosofia quanto à episteme é um objeto ideal, portanto falamos em idealidade do objeto, que não necessariamente é empírica. O estudo físico, por exemplo, analisa empiricamente a Natureza, mas a concepção teórica desse objeto visto pela Física pode ser mudado. Já o objeto da Filosofia é ideal. Daí que vimos que a República de Platão traz um modelo perfeito de Estado. O que significa que esse objeto é ideal? Vamos relembrar dando um exemplo. Se você pergunta para um realista sobre a realidade de qualquer objeto, para ele tal objeto será tão real quanto um objeto empírico. Mas o objeto mostrado, a caneta de quadro, digamos, cai se for largada. Por quê? Essa força gravitacional realmente existe? Ou ela é uma mera construção teórica? Para o realista, a gravidade é tão real quanto a existência da caneta.

Objetos ideais, por sua vez, são aqueles que não podem ser percebidos pelos cinco sentidos, mas pelo trabalho da razão. Já os empiristas, opositores do realismo, dizem que só se podem conceber os objetos sensíveis, enquanto a gravidade seria algo teoricamente inventado.

O modelo da República de Platão, por exemplo, é ortodoxo. Não admite flexibilização.

Vimos também na aula passada que outra condição do objeto da Filosofia é a totalidade. Enquanto as outras ciências estudam os objetos sob algum aspecto, a Filosofia estuda de maneira holística. Veja os exemplos da Física, Química e Sociologia. Nenhuma dessas disciplinas tem condições de tomar seus respectivos objetos em sua totalidade. A Filosofia pode tomar particularidades da sociedade, mas toma a totalidade como base. Platão, por exemplo, estuda as leis, que é algo particular, mas como forma de voltar à noção de todo.

A palavra teoria vem de theoría, com raiz theos, que significa deus. Tem a ver com o início do teatro grego, em que as pessoas contemplavam os atores com um certo espanto, não apenas no sentido próprio, mas também num sentido de entender a peça, a ação dos atores, e assim sucessivamente. Essa é a noção de contemplação. Não é um espanto no sentido de terror, mas de ser tomado de uma confrontação com algo que não se conhece. Esse é o sentido grego do termo. Quando os homens, pela primeira vez, tomaram consciência da realidade externa da Natureza, para os gregos existia esse espanto: a confrontação com algo que não é deles, e simplesmente teriam que passar a compreender. É por isso que surge, pela primeira vez, uma forma de explicação: é o Mito da Caverna. Tudo em Filosofia e em todas as ciências busca a razão. Enquanto nas religiões impera o sacerdote, quem não se questiona, na Filosofia tudo é questionável.

O Mito para a Platão é um instrumento. Não confunda a literatura usada com o método. Veremos o método nas próximas aulas, mas podemos adiantar que a forma literária pode ser poesia, a forma discursiva analítica de Aristóteles, o discurso oral, etc. Ainda assim quem manda é a razão, independente do recurso usado.

Nesse caso, o objeto da Filosofia também tem uma condição de totalidade. O que significa isso? Que o objeto da Filosofia é atemporal e não-espacial.

Hobbes pergunta por que o homem vive em sociedade e admite as leis para controlar seu comportamento. Essa é uma pergunta radical, típica de filósofo. Tais perguntas consistem em entender os porquês, ou as causas das coisas. Qual a causa de o homem viver em sociedade e admitir ser controlado por leis? Não seria muito mais fácil para o homem viver sozinho? Antes de Hobbes, Aristóteles dizia que o homem sempre constituirá a polis, porque é da natureza dele. Do mesmo modo que é da natureza da caneta cair quando solta, é da natureza do homem se associar. E qual é a resposta de Hobbes? Dado que ele está em sociedade, não significa que ele é santo. As leis são de controle, mas controlam o que? O comportamento. Mas por que controlar o comportamento? Para que o controle? Para buscar a paz? Não, esse seria o fim do Direito, não da lei. A lei existe exatamente para a proteção dos indivíduos deles próprios. Se ainda com o Estado o homem faz tudo isso, imagine sem ele! Seria o estado de natureza, com liberdades absolutas. O estado de natureza de Hobbes é uma resposta para a vida em sociedade. Mas o estado de natureza nunca existiu de fato e Hobbes sabia disso. Ele é, portanto, um recurso usado para ele para explicar o que realmente existe. Tal como o Mito da Caverna de Platão.

Para Platão, Aristóteles, São Tomás de Aquino, Santo Agostinho e outros, o Estado é uma realidade, que controla os homens pela força da lei. O próprio Estado, em si mesmo, não tem momento nem lugar. Podemos ter uma forma de Estado numa determinada época e lugar. Esse será exatamente o objeto de estudo do sociólogo, do antropólogo, historiador, etc: são como casos particulares.

Do outro lado, existe um grupo de pensadores que diz que a Filosofia não tem um objeto próprio, mas impróprio, logo dizem que a Filosofia nunca é um conhecimento de primeira ordem. A Filosofia não pode falar sobre a sociedade como ciência de primeira ordem, o que seria atribuição da Sociologia. A Matemática tem um objeto próprio, que são os números e todos os seus teoremas. Enfim, todas as teorias que têm objeto próprio são chamadas de teorias de primeira ordem. O que, para esse grupo de pensadores, não é o caso da Filosofia. Então, por que o objeto é impróprio?

Os autores que defendem isso são em geral os positivistas. Cuidado que este é apenas um nome para orientar nosso estudo. Alguns pendem mais para o realismo, outros ficam no meio-termo, outros são radicais...

É uma doutrina que admite que um objeto é tomado como existente apenas por aquele objeto mesmo. É um raciocínio próximo do empirismo. A caneta é objeto positivo, porque continuará existindo independente de pararmos de pensar nela. Já o realista diz que tal objeto tem positividade como também têm os entes ideais, como o Estado, o homem, as ondas eletromagnéticas, a sociedade, a gravidade, etc. Para os positivistas, os objetos sem positividade são criações mentais. A sociedade, para eles, é uma ficção teórica, enquanto que para o realista não.

Para os empiristas, a Filosofia estudará as outras ciências. O que é ciência? É aquilo que tem um objeto próprio. A Filosofia, para eles, não tem um.

Dentro do positivismo, podemos dividi-lo em alguns tipos.

Positivismo lógico: diz que a Filosofia não é nada mais, nada menos que uma metodologia. O segundo grupo é o dos positivistas epistemológicos. Sendo ambos positivistas, eles entendem do seguinte modo: por que a Filosofia é objeto da própria Filosofia? Porque havia um erro, simples. Só havia a Filosofia e o Mito para explicar as coisas, antigamente. Platão e Aristóteles investigavam a realidade, que era empírica, mas fazendo o uso de um modelo ideal.

Tales de Mileto: começou a observar o mundo. Mas se observarmos as coisas, o que há de mais abundante neste mundo? Temos terra. Mas normalmente temos uma quantidade maior ainda de água. Então, quando alguém morre, como há mais fluidos no corpo, então ele diz: “Qual é a base da realidade? A água.” Então, para ele, tudo é água. Temos água em formas diversas, mas tudo é água. Logo, ele julga que existe uma realidade, que está por trás de todas as realidades, realidade essa que é uma condição ideal. Aqui vem a parte interessante: por que a Filosofia tinha um objeto? É porque ainda não se havia desenvolvido um método para explicar esses objetos com rigor e de maneira totalmente observacional, que seria a ciência. A água é um dos elementos, apenas, mas não é a essência de tudo. Logo, para esses teóricos positivistas, a Filosofia não é capaz de entender a Natureza porque ela só é capaz de criar modelos ideais.

Quem mais defendeu essa posição foi Lord Bertrand Russell (1872 - 1970). Para ele, tínhamos ciência e tudo o que não é ciência (a Filosofia não era ciência). A explicação de qualquer coisa pode ser filosófica, religiosa, e até cientifica. A Filosofia, no princípio, buscava estudar o átomo. O átomo do filósofo é um modelo de explicação, enquanto que para a ciência o átomo é o modelo de explicação. Logo, a primeira diferença entre o átomo de cada um dos tipos é que o átomo seria um fundamento da realidade, mas não poderia ser tomado empiricamente, apenas pelo pensamento, pela razão. Enquanto isso, pensamos paralelamente na Geometria. Geometricamente, quais são as 4 figuras sólidas principais? O cubo, a esfera, a pirâmide e icosaedro (aqui entendido não como o poliedro de 20 faces, mas o octaedro formado por duas pirâmides idênticas, uma apoiada na base da outra, dando a impressão de se tratar de um balão de festa junina). Os gregos também diziam que havia 4 elementos na Natureza: fogo, ar, água e terra. Dos 4, qual era o mais estável? A terra. Dentre as figuras geométricas, qual dos 4 é o mais estável? O cubo (é o que menos tende a se movimentar quando jogado numa superfície). Então, a terra seria o cubo. O átomo terra é o cubo. Qual dos 4 é o mais volátil? O fogo. Ele se associa à esfera, que é o que mais tende ao movimento e não se equilibra facilmente. Então o ar seria o icosaedro, e a água a pirâmide, seguindo a lógica da estabilidade associada à volatilidade. A pergunta próxima do atomista é: qual a diferença entre um cadáver e um corpo vivo? Ou então, entre nosso corpo e a caneta de quadro? Primeiramente, temperatura. Por isso, dizia-se que o corpo vivo possuiria o átomo fogo. E todo corpo vivo tem anime, portanto alma. Logo a alma é composta de átomos fogo. Mas este não é o mais célere de todos os átomos? Pois bem: por que as pessoas mais velhas sentem mais frio? Porque elas têm menos atomos fogo, já que estão mais próximas de falecer, portanto de perder a alma. Também seria possível admitir essa dinâmica de átomos elementares na respiração humana. Ao inspirar, levamos para dentro o ar frio; ao expirar, o ar que sai de nossas narinas é quente. Isso significa que átomos fogo foram jogados fora, fazendo chegar mais perto do dia em que o corpo perderá a alma. Com o passar do tempo, apenas respira-se mais, logo, a tendência natural do ato de respirar – portanto, do ato de viver – é exatamente a morte.

Essa é a explicação dos atomistas.

Mas é esta uma explicação empírica? Não, nem haveria como testá-la empiricamente. É uma idéia que só pode ser concebida no campo da razão. O empirista diz: a ciência, um dia, se apossou do objeto que a Filosofia explicava, e a ciência do átomo explica exatamente o que o atomo é; a Filosofia não mais tem condições de explicá-lo. Os modelos de átomo, entretanto, mudam. Hoje sabemos que ele não é indivisível, como se supunha.

O mesmo aconteceu com a sociedade, quando a Sociologia começou a tentar explicá-la. O mesmo para o Direito. Impropriamente, a Filosofia explicava tudo, de um modo similar ao usado pela religião. Neste caso, então, dizemos que a ciência assume propriamente o objeto. Antes, a ciência não existia. À medida que a Filosofia não mais conseguia explicar, com suas idealidades, o que se observava, a ciência ia se apoderando do trabalho. Essa é a posição do positivista.

Para o positivista lógico, o que resta à Filosofia? Explicar as outras ciências. Era uma mera metodologia. A metodologia, por sua vez, é a lógica da pesquisa.

Um tratado de Sociologia pode dizer o que é a Sociologia num capítulo inicial, mas de quem é esse trabalho, propriamente? Do filósofo.  Então, para o empirista, a Filosofia é a segunda ordem.  O que interessa à Filosofia? Dizer o que é e o que não é ciência. Ela diz o que é a lógica da pesquisa. Quer saber o que é ciência? Então temos um modelo. Quer saber fazer ciência? Quem diz como é o filósofo. Ele apresentará os métodos que a ciência deverá ter.

Por exemplo: Cesare Lombroso ¹. É um personagem importante para a História do Direito. Ele tinha uma tese criminalística. Ele dizia que as pessoas já nasciam predispostas à atividade criminosa. Indagava ele: “não conseguimos determinar as ações de tipo criminal dado algum aspecto existente no homem?” Para ele, o modo de tentar descobrir as potencialidades para a vida humana no que tange o crime, deveria ser a análise do crânio da pessoa. Isso tudo é ciência? Quem vai responder essa pergunta são os filósofos. A Filosofia deve prover os métodos para determinar o que é ciência. Para o empirista, o objeto teria que ser empírico. No caso de Lombroso, sim. Crânios e conseqüências são empiricamente observáveis e mensuráveis. Objeto: também possível. Mas qual o problema da teoria? É que não é possível precisar quem de fato é homicida. Se alguém for condenado por homicídio, não necessariamente esse indivíduo é de fato um. Esse é o problema da variável incontrolável. A teoria foi rejeitada, mas poderia ser uma boa teoria científica.

Agora atenção: temos o Direito. Ele tem como objeto o ordenamento jurídico. O que fez Kelsen? Ele  levantou a pergunta: “o que é o Direito”. Mas ele não está preocupado com o Direito enquanto estrutura de ordenamento, mas enquanto ciência. Para ele, o Direito é ciência. E para isso, ela terá que vir do esquema visto. Enquanto ele pergunta o que é Direito, ele está no plano da Filosofia. Ele não está na ciência do Direito, mas elaborando uma teoria filosófica sobre o Direito. Se você quer ter Direito como ciência, então qual é a lógica do Direito? O objeto enquanto ciência não pode ser meramente o ordenamento; tem que haver algo universal que o fundamente, que é a norma hipotética fundamental. É ela que fundamenta todos os ordenamentos. Logo, se o Direito se pretende ciência, ele tem que ter um método e um objeto. A ciência do Direito, para ele, é normativa, não descritiva. É o que faz a diferença entre ele e o sociólogo. Kelsen fazia Filosofia do Direito, não Teoria do Direito. A Teoria Pura do Direito não é Teoria do Direito, mas Filosofia da Teoria do Direito! Daí surge o erro: uma teoria do Direito pode ser refutada, como foi a teoria de Lombroso. Kelsen explica como fazer teoria do Direito, mas não faz uma propriamente. Por isso que não se pode falar que o jusnaturalismo e o juspositivismo acabaram. Isso porque Filosofia não é refutável, apenas a ciência é. Posicionamentos filosóficos só podem, no máximo, ser criticáveis entre si.


1- Acredito se tratar deste sujeito aqui: http://en.wikipedia.org/wiki/Cesare_Lombroso ou aqui: http://pt.wikipedia.org/wiki/Cesare_Lombroso (em português).