Continuação sobre as concepções da Filosofia e introdução ao método
Antes vimos, com relação à Filosofia, a concepção de Filosofia como teoria e, dentro dela, a condição do seu estatuto com relação a seu objeto. Nessa classificação, vimos o modelo realista e o modelo positivista lógico.
Vamos hoje ver o positivismo epistemológico. Depois passaremos para as questões do método da Filosofia e do seu escopo.
As idéias gerais sobre o positivismo lógico também servem para o epistemológico. Mas qual é a diferença entre os dois? Bem, enquanto para o positivismo lógico a Filosofia é uma metodologia, ela serve simplesmente para estudar as outras teorias da ciência, para determinar se são ciência ou não, e também para determinar um critério de demarcação entre ciência e não ciência, qual o objeto e qual o método que a ciência deve elaborar para sua pesquisa e assim por diante.
Na verdade, para Comte, a diferença entre o modelo dele e dos positivistas clássicos é que temos, no clássico, ciência versus tudo o que não é ciência. A Filosofia é uma metodologia para a ciência. Um objeto da Filosofia é dela até que a ciência se aproprie dele. Então, para o positivista, a Filosofia antes se preocupava com todos os objetos que aparentemente lhe eram pertinentes. Ela ainda mantém alguns. Segundo os positivistas, a Filosofia, um dia, ficará completamente vazia. Como pensa Comte: ele também entende que a ciência é o verdadeiro conhecimento, que nos dará, experimentalmente, conhecimento sobre o objeto. O modelo dele seria o de três fases:
Mitico ou religioso. Qual o estatuto? Toda forma de conhecimento é uma tentativa de explicação de um objeto, seja um fenômeno, um estado, uma ação, assim por diante. Pode ser tanto um relâmpago quanto um homicídio. Essa explicação leva a um estado de coisas. O homem não consegue existir no caos; ele tem que explicar tudo. A explicação, portanto, vem para dar ordem ao caos e criar o mundo. Tanto que ordem, em grego, é kosmos = organização de determinados fenômenos. Isso vale tanto para o teórico realista quanto para os positivistas. Daí que vem o termo “cosmético” - usado pelas mulheres para a ordem ao acordarem.
Qual a consideração dessa fase mítica? É aquilo que vimos na aula passada. O mito se apóia na crença apenas. A razão, neste momento, é meramente fragmentária, e serve apenas para dar um nexo aos elementos da explicação. Quase, portanto, que não é necessária a racionalidade. Os mitos não têm universalidade; dependem da sociedade de cada um deles. Há mitos amplos, Entretanto, como o do dilúvio. Várias sociedades têm um mito sobre um dilúvio. Comte diz que esta é a fase predominante da condição de crença. Tanto que, apesar de todas as análises e ponderações da ciência, os "mitos" cristãos continuam valendo. Aconteceu, na Índia, um fato de uma menina ter nascido com quatro braços e quatro pernas. A família queria fazer uma cirurgia para remover os membros excedentes, já que isso dificultava a locomoção da criança. Entretanto ela era de uma aldeia muito religiosa, onde a comunidade se posicionava contra a cirurgia. Diziam eles que era porque a menina teria a forma exata da deusa Sheeva, que teria se encarnado nela, e a cirurgia removeria a divindade da garota, que acreditavam que teria sido enviada àquela aldeia. É a condição mítica de conhecimento, de tentar explicar o mundo. Dizem que não foi uma falha genética, mas é a deusa que quis se encarnar nela.
O mesmo para a história de Pandora, sua caixa e as tragédias gregas: o destino humano está pré-estabelecido, e ir contra a vontade dos deuses geraria um ataque de cólera, como ilustrado na Antígona de Sófocles.
Então, no momento em que o homem deixa as condições de crença, ou seja, no momento em que a razão começa a dominar a explicação e o conhecimento vai se tornando gradualmente racional, surgirá a segunda fase, ou o segundo estado de Comte: o metafísico. Nesta hora, ele está pensando na explicação filosófica. Saímos da aceitação pela crença para a argumentação pela razão.
Na esfera metafísica, já estamos dentro da teoria. Aqui já predomina a razão. Pode haver várias explicações, mas todas têm a solidez de uma argumentação logicamente estabelecida. Cuidado com o sofisma ou falácia. Estes tipos incluem o argumento de autoridade, que seria acreditar incondicionalmente nas palavras de uma pessoa apenas por quem ela seja, e o o argumento ad homini (argumento contra o homem), que é refutar antecipadamente qualquer posicionamento de um pensador apenas por quem seja, como um ideólogo nazista. A tendência seria rejeitá-lo imediatamente apenas por ele ser nazista, sem levar em conta que a teoria dele deve ser vista de maneira desconectada do autor; ela é uma teoria como as outras. Contra ela só deve ser válida a argumentação e a crítica dentro do campo da lógica, ou como veremos adiante, dentro do que se pode verificar empiricamente, mas a teoria deve ter vida própria. Não deve ser vista como ligada a quem afirma. No mito, a autoridade é fundamental.
Quando a Filosofia surge na Grécia no século VII a.C., a tônica da Filosofia é a crítica total. Era uma disputa intensa. Aristóteles já desenvolvia as críticas a Platão ainda enquanto estudava na escola do mestre. O que importa é que o modelo não falhe racionalmente. São visões de estados de coisas. Se o modelo falhar logicamente, então ele fica passível de crítica. Enquanto Aristóteles admitia a escravidão como instituição válida, os sofistas a condenavam. Hípias, por exemplo, tem uma frase interessante: “a Natureza fez todos os homens iguais. Os homes fazem os homens diferentes.” Platão dizia que a mulher tinha o mesmo intelecto dos homens, enquanto Aristóteles não. Entretanto, se você perguntasse a Aristóteles o porquê disso, ele te daria uma explicação racionalmente válida. E mais que isso, é tudo genial.
É aí que mora o ponto interessante: qual o ponto fundamental do conhecimento metafísico? É que não temos o trato da experimentação. Posso trazer todo o conhecimento, como Platão, Aristóteles, David Hume, observar a realidade, e, a partir dela, tirar conclusões. Como eram os atomistas, que diziam, racionalmente, a diferença entre o corpo de uma pessoa morta e uma pessoa viva. Em outras palavras, temos como, mesmo partindo da observação, explicar com base na razão. O modelo metafísico cria um objeto ideal. Este objeto não está aberto à experimentação nem à verificação empírica. Não temos afirmações que possam ser testadas experimentalmente; o átomo conforme concebido na época é o mais claro exemplo. Como não temos a consistência externa, isso abrirá a possibilidade para infinitas explicações. A única coisa que podemos ter entre elas é contraposições. São modelos que explicam a realidade. No máximo, haverá uma crítica entre elas. Apontam-se falhas lógicas nos modelos, mas nada pode ser testado na realidade empírica. Tanto é que hoje podemos estudar o modelo de Platão, de Aristóteles, ou de Santo Agostinho. Como escolher o melhor modelo? Você elege um, simplesmente. Ao fazer isso, você assume a responsabilidade de lidar com as possíveis falhas do modelo.
Por isso que, na Filosofia do Direito, temos diversas explicações do Direito. Jusnaturalismo e juspositivismo, apenas para citar as duas correntes mais comuns. O primeiro diz por que os homens desenvolvem a lei. Dizem que existe na natureza humana a condição de criar as leis e o Estado. Aristóteles diz que o homem tem uma condição intrínseca que o levará a criar a polis. Durante a Idade Média, os grandes pensadores da Igreja defendiam que os estados têm suas leis, mas todos deveriam convergir para a Bíblia, que seria a Lex mater. É assim que pensa o naturalismo cristão. Por isso, quem era o conselheiro dos reis? O sacerdote. Quem coroava os reis? O papa. L'État c'est moi é uma frase de Luís XIV que bem ilustra essa figura divina do rei. Hobbes chama a atenção desse modelo. É o jusnaturalismo cristão. Hoje, modelos similares estão nos Estados islâmicos. O modelo é teórico, filosófico. Hoje, as sociedades ocidentais estão separando o Estado da religião. Ainda assim podemos continuar com o jusnaturalismo, pois todas as leis humanas têm fundamentos idênticos. Aristóteles dizia: as grandes virtudes eram as mesmas em todos os homens.
A fase metafísica, para Comte, tem um problema: “posso ficar sem explicações para as coisas.“ Aristóteles pode explicar tão bem a sociedade quanto Platão. Como não há uma forma de contrafatuar a explicação, todos os modelos são válidos. Então, a única coisa que pode acontecer é a crítica interna.
Podemos usar o jusnaturalismo de Kant para entender Kelsen. Aqui está a parte interessante. Para Comte, não dá para ir longe justamente porque temos apenas explicações que só podem ser criticadas entre si. Qual é a válida? Não há como saber; escolhemos uma delas. É, para Comte, uma fase evolutiva. Quando teremos um critério válido? É na...
Fase
cientifica
Para Comte, pensando como se tivéssemos no século XIX, há sociedades que ainda estão na fase mítica, outros que ainda estão na fase metafísica, e existem aqueles que chegaram à fase cientifica. Europa, por exemplo. Este estado seria o mais avançado. Temos a teoria, que foi alcançada na fase metafísica, mas agora temos condições de fazer a contrafatuação. Então, podemos criar um modelo de testes, de experimentação direta. Para Comte, então, esta fase surge com Galileu e Newton. Agora, tudo será feito na base da experimentação. Quando Newton afirma que corpos se atraem na proporção direta de suas massas e na inversa do quadrado de sua distância, ele não está fazendo uma explicação meramente lógica. É também, mas ele tem que demonstrar que essa afirmação é verdadeira.
Galileu sofreu a inquisição. Ele apoiou e melhorou a tese de Nicolau Copérnico que apresentara, no século XV, seu modelo heliocêntrico. Quando ele foi questionado pela Igreja, o famoso cardeal Belarmino disse: “não estamos contra a sua teoria. Ela é um bom modelo matemático de explicação para seus alunos. Ela faz com que eles pensem, raciocinem, e desenvolvam a arte da matemática. Mas é só isso. Não é que o mundo seja o que ela pretende explicar.”
É exatamente a condição da metafísica, pois é apenas um modelo: a força da Filosofia juntamente com a Religião. O modelo heliocêntrico era condenado pela Igreja porque tirava da Terra a condição de centro do Universo. E isso não era bom para a Igreja porque o mundo foi criado para o homem, que deveria ficar no paraíso. Ao pecar, Deus envia seu filho para limpar a humanidade do pecado, por meio do sacrifício na Cruz. E onde a Cruz foi fixada? Na Terra! Então, à Terra deveria ser atribuída uma divina importância. Se não, toda a obra da Salvação estaria comprometida, e, de acordo com o apóstolo Paulo, a fé seria vã.¹
“Hypothesis non fingio” – Isaac Newton. Significa “eu não faço qualquer teoria.” Toda teoria deve ser comprovada empiricamente.
Aqui chegamos à conclusão de que a Filosofia não tem objeto próprio, mas as ciências têm. A Filosofia, então, seria uma metodologia da ciência, mas essa idéia só surgiria um século depois.
De acordo com os positivistas epistemológicos, a Filosofia é a organizadora das ciências. Ela só sistematiza, mas não estabelece como a ciência funciona. Quem diz como a Física funciona é o físico. O filósofo apenas organiza o material do físico.
Na figura acima, esta camada corresponde ao conhecimento comum, esta corresponde ao conhecimento científico e esta ao conhecimento filosófico. No modelo realista, o conhecimento filósofo seria o conhecimento supremo, o conhecimento dos conhecimentos. A Filosofia não se prende a nada que está relacionado aos sentidos, mas apenas à razão: é o produto final e melhor de todos. A Filosofia também explica todas as outras formas de conhecimento abaixo dela nessa pirâmide.
Modelo do positivismo lógico: a ciência é a verdadeira forma de conhecimento, apesar de não ser a única. É apenas a única válida, porque ela tem a condição de ser logicamente estabelecida, enquanto as outras têm falhas nesse sentido, bem como a existência de um objeto próprio. As setas indicam a apropriação da ciência dos objetos que eram da Filosofia e da Religião.
Modelo do positivismo epistemológico:
A Filosofia aparece como sistematizadora das outras ciências. As letras indicam exemplos delas, como Economia, Sociologia, Psicologia, Biologia e Matemática.
Temos o seguinte: todos esses modelos admitem à Filosofia uma teoria. Uns dizem que a Filosofia é a ciência das ciências, enquanto que para o positivismo lógico é ela é uma metodologia, enquanto para o positivismo epistemológico ela é sistematizadora, todos concordam que a Filosofia é uma teoria. Eles só discutem sobre a natureza da Filosofia. Eles têm pontos em comum sobre o método.
1 - Foi aproximadamente isso
que o
professor falou nesse trecho. Durante a aula, não senti muito nexo
nessa
explicação; tentei copiar fielmente, mas agora vejo menos nexo ainda.