Filosofia

quarta-feira, 18 de março de 2009

Método Cartesiano e introdução ao escopo



Aprendemos na aula passada que o método cartesiano é composto de quatro regras. Vamos estudá-las em seqüência.

Tópicos:
  1. Regra da evidência
  2. Segunda regra: a regra da análise
  3. Terceira regra: a de síntese.
  4. Compreensão ou revisão.
  5. O escopo

Regra da evidência

A primeira das quatro regras do método cartesiano é a regra da evidência: não aceitar jamais nenhuma idéia, conceito ou proposição que não seja clara por si só. Qualquer forma de conhecimento será indecomponível; ela é como se fosse um elemento básico constitutivo. Por não ser composta de outros conceitos, essa forma de conhecimento implica clareza, distinção e total evidência, daí ela é intuitiva no sentido racional do termo.

Segunda regra: a regra da análise 

Se ainda não chegamos a idéias claras e distintas, então vem a regra da análise, a segunda. Devemos decompor um objeto, uma idéia em suas idéias componentes até chegar a idéias claras e distintas. Enquanto ainda não se estabeleceu idéias claras e distintas continuamos analisando, quebrando as idéias mais complexas até chegar às mais simples possíveis.

Essa característica de decomposição é exatamente levar o problema da complexidade à simplicidade. Tudo que é composto é complexo, segundo o modelo de Descartes. Então estabelecemos, a partir da complexidade, a simplicidade. É exatamente a idéia básica da análise. Analisamos tudo o que é complexo e decompomos de tal modo a chegar às idéias mais simples.

Podemos, é claro estabelecer um raciocínio para chegar à condição de simplicidade. No momento em que ela é atingida, o raciocínio pára. Por isso que dissemos antes que este é um dos métodos mais simples, e por isso ele está na base de todas as formas de conhecimento. Não há um conhecimento ou um método que não se baseie nisso. Pode ser uma teoria física ou filosófica. Isso por que, se este não fosse o método mais simples, ele seria um método inválido.

No final das contas é exatamente isso que a ciência moderna faz: os médicos tomam um problema até chegar a algo que se pode ter uma certeza maior de ser a causa de uma doença.

Depois que chegamos à condição de análise, então vem a segunda regra. Não basta saber as idéias fundamentais que determinam a explicação daquele problema, daquele objeto. Então surge a segunda regra, em que voltamos reconstruindo das partes elementares, simples, claras e distintas para entender o próprio problema, pois ele continua sendo complexo. Entendemo-lo nas idéias simples para então entender a complexidade.

Exemplo:

Um exemplo não-cartesiano, mas no qual podemos aplicar essa regra: tomemos a noção de força da Física:

F = m.a

Então a idéia de força não é uma idéia clara e distinta, pois pode ser decomposta nos conceitos de massa e aceleração. O fato de conhecermos a noção não segue que ela deixou de ser complexa. A força, portanto, é complexa porque pode ser decomposta. A força não era uma idéia óbvia quando Newton estava desenvolvendo suas Leis do Movimento e especialmente a Teoria da Gravitação Universal. Se é óbvio que o objeto cai e a explicação para isso é clara e distinta, então não seria necessária toda uma teoria. Logo a idéia de força se decompõe em duas outras. E aceleração, por sua vez, se define como?

a = v / t

Assim, mais uma vez, decompomos a noção de aceleração. Neste caso, chegamos a uma etapa em que temos dois conceitos compondo a noção de aceleração: velocidade e tempo, o primeiro divido pelo segundo. Portanto ainda não temos uma noção clara e distinta. E a velocidade? Por mais banal que seja, ela também não é uma idéia clara e distinta porque a compomos pelas idéias de espaço e tempo. Daí,

v = S / t

A velocidade, portanto, é uma idéia decomponível. A pergunta é: espaço e tempo são idéias claras e distintas? Agora sim! Pelo menos na teoria de Newton. Então a composição acaba. Agora, sabemos a definição de cada um desses elementos. Espaço, tempo e massa são as grandezas mais fundamentais da Física.

Notem agora que tais idéias são da Física. Noções como espaço, tempo, massa, são idéias claras e distintas, que tomamos por uma intuição intelectual imediata, e que podemos usar para compormos qualquer conceito que precisarmos. Na Física, ao se chegar a idéias claras e distintas, não precisamos de mais nada. Poderíamos reformular desse modelo, se necessário: escrever a velocidade em função da aceleração e do tempo, ou o tempo como quociente da velocidade pela aceleração, e assim por diante. O interessante é que, o que é simples para uma forma de conhecimento não segue necessariamente que é a idéia mais simples de todas. Se pensamos em idéias simples, o espaço é uma forma de extensão. O espaço é a resultante das três dimensões, uma extensão volumétrica. Já o tempo, por exemplo, é uma extensão linear. E a noção de extensão é uma noção da Física? Não, é da Geometria, portanto da Matemática. O que é extensão? É uma limitação determinada matematicamente pelas idéias da Geometria. Portanto, saindo do campo da mecânica newtoniana, podemos decompor a noção de espaço e tempo: o primeiro como extensão volumétrica, e o segundo como extensão linear. Agora estamos no campo da Matemática pois estamos falando em Geometria. Na Geometria, não há nada mais simples do que o conceito de extensão.

A matéria, que se associa à massa, é um conceito da Física, um conceito básico dela. Mas a matéria é também um conceito que depende de outro. Pertence ao conceito de substância, que não só a Física trabalha, mas a Química também. E a noção de substância não pertence à Matemática, mas à Filosofia. Aí chegamos aonde Descartes quer: Matemática e Filosofia! Elas que contêm os conceitos mais básicos que existem. Abaixo dos conceitos delas não podemos ir. Tanto que Descartes chama nossos corpos de substância extensiva, ou res extensa. A pergunta é: uma pirâmide geométrica tem extensão? Sim. Tem substância? Não, porque é um produto do pensamento. Mas o pensamento para Descartes é uma substância, ainda que não empírica, daí chamada de res cogitans.

Findo tudo isso, chegamos ao final da análise, e não há idéias mais claras que essas. São idéias indecomponíveis.

Olhem o método cartesiano: quando o professor de ensino médio nos dá um problema, o que fazemos? Achamos os elementos das fórmulas, certo? Um corpo está indo a 20 km/h. Calcule a aceleração. Você quer saber exatamente a aceleração. Para sabê-la, temos que saber a velocidade. Para achá-la, temos que saber o espaço. Por isso precisamos compor o problema. É a...
 

Terceira regra: a de síntese.

Também chamada de regra de composição. Depois de chegar às idéias claras e distintas, como as idéias são intuitivas, conseguimos recompor o problema a partir delas. Partimos do desconhecido, ao buscar a aceleração de um corpo A ou B. Por que uma estrela gira, o que está causando determinada doença, o que o vírus HIV faz para destruir nosso sistema imunológico? Todo problema é desconhecido. Então nós o decompomos para chegar às idéias que não temos dúvida. Ao fazer isso, decompomos todo o trajeto e vamos explicando as complexidades. Nessa hora, já saberemos as prováveis causas dos problemas em questão.

Regras da síntese: recomposição. Quer dizer: pegaremos todos os resultados (as idéias claras e distintas que extraímos) aos quais já e fazer o caminho inverso, indo do desconhecido ao conhecido. A idéia clara e distinta é conhecida; lembrem-se que ela é inata.

Apesar de o físico poder explicar o que é o espaço e o tempo, alguns de nós temos dúvidas do que seja o espaço e o tempo? Não, tais coisas são intuitivas. Idéias como matéria, espaço e tempo são idéias que admitimos sem mesmo precisar defini-las, por isso são intuitivas. Nesse caso estamos compondo ou recompondo o problema, indo do simples ao complexo. E aí chegamos à solução. Então o processo cartesiano é de “dupla mão”. Primeiro analisamos, depois recompomos ou sintetizamos. No momento em que terminamos essa composição, chegamos à solução do problema. Na verdade isso não é a solução, mas os elementos fundamentais que a trarão.

Um exemplo bem interessante é: como se chegou à descoberta da penicilina? Fleming, nos anos 30, pesquisava bactérias. Ele já se sabia que elas eram as causadoras de diversas doenças, e buscava uma solução para tais males. Que situação era essa? Ele tinha um problema, que precisava de uma hipótese. A hipótese, nesse sentido, era complexa. Já se sabia como determinadas bactérias atacavam nosso organismo. Ele queria, então, saber como matá-las e achar uma forma de imunização. Ele queria, portanto, achar um elemento químico que satisfizesse sua pesquisa. Este era o problema.

Um dia ele preparava algumas culturas de bactérias e tinha, no balcão de trabalho, alguns fungos do gênero Penicillium, e acidentalmente alguns esporos do fungo caíram sobre culturas bacterianas, sem que ele percebesse. Ao notar, ele fez um novo experimento: colocou as bactérias numa estufa a 30ºC e derramou esporos sobre uma das culturas. Quando voltou depois de uns dias, percebeu que as culturas que estavam mortas eram as que tinham sido atingidas pelo Penicillium. Então ele chegou a uma pré-conclusão: “o fungo mata”. Ele buscava a solução para a sífilis, que era o terror da época. Ele tinha um problema: qual era? Determinar, primeiramente, se o fungo é capaz mesmo de matar, pois pode ter sido outra coisa. Agora o problema mais elaborado: foi a totalidade do esporo ou foi alguma parte dele que causou a morte das bactérias? Isto é uma questão complexa pois é algo desconhecido. É o esporo todo ou apenas partes, elementos dele que causaram isso? Portanto podemos usar o método cartesiano para explicar o processo de Fleming.

Vamos lá: ele sabia que o fungo matou as bactérias. É o esporo como um todo ou apenas algum de seus elementos? Ele partiu para a decomposição: pegou o esporo e fracionou-o em todos os seus elementos componentes, que ele não teria mais dúvidas do que seriam. Então ele foi até os elementos químicos básicos. E o que ele fez? Ele testou cada um desses elementos. Depois de tudo, ao chegar à decomposição, ele começou a testar um por um. Pegou as mesmas bactérias, produziu culturas, e em cada uma delas ele colocou componentes químicos, e em outras pôs contraprovas, que são reagentes que não são alterados.

No final das contas, ele chegou à conclusão de que um dos componentes, que ele chamou penicilina, era o causador da morte das bactérias. Então, o que ele fez foi recompor. Mas ele precisava das outras componentes? Não, porque ele chegou a uma idéia clara e distinta, e passou a saber, a partir de então, a causa exata da morte das bactérias.

A solução, portanto, é: a penicilina é a causadora da morte dos microorganismos.

Mas isso é suficiente? Não, porque ele poderia estar enganado. Tanto é que, hoje em dia, pelo menos nos países onde a saúde pública tem uma certa relevância, o sistema ou agência que é responsável pela admissão de produtos químicos no comércio só o autoriza depois de extensivos testes. Por quê? Porque uma ou outra experiência podem estar erradas em um elemento. Daí vem a quarta e última regra:

Compreensão ou revisão. O que diz ela? Que devemos revisar todos os resultados e os processos quantas vezes forem necessárias até ter-se a certeza que estão corretas. Ou, pelo menos, ter uma probabilidade de certeza altíssima. Deve-se, portanto, revisar. A revisão dos resultados é, assim, a aplicação N vezes quando forem necessárias da segunda e terceira regras. A noção de fórmula física, por exemplo, é uma noção complexa, mas, no Ensino Médio, como nós as decoramos, elas acabaram figurando como idéias simples, pois em geral não se sabe prontamente as características dos elementos de uma formula na hora da apliação.

Esta aplicação, portanto, leva à recorrência das três regras anteriores.

Revisão, então, neste sentido, significa recursividade das regras. A recursividade não é exatamente uma característica do método? Aqui também vemos a condição de tantalidade (aplicar tanto quanto bastar).

É um método bem simples, por isso ele se perpetua. É também por isso que o modelo de Descartes é analítico, porque para Descartes o objeto de qualquer disciplina, ciência ou mesmo da Filosofia será analisado e, em seguida, ganhar-se-á conhecimento daquilo que não era conhecido, chegando conseqüentemente a novos desconhecimentos: com novas perguntas respondidas, novas perguntas surgem.

O que se desconhecia na época da penicilina? Sempre havia algo a mais. Não se sabia que as bactérias eram extremamente resistíveis, pois se modificam rapidamente. Nesse caso, as bactérias se mostraram, com o tempo, resistentes, e não mais foram afetadas pela penicilina. Pronto: tinha-se um novo problema, que levou ao desenvolvimento de antibióticos sintéticos, mais fortes. O objeto tem sempre algo a mais. Enquanto esse novo fenômeno não aparece, o modelo vale; quando aparecer o novo desconhecimento, aplica-se novamente o método para passar a abrangê-lo, e substituir a pergunta atual pela nova, que deverá vir em seguida.

O escopo

De posse dessas idéias, agora podemos ir para o último aspecto da concepção de Filosofia como teoria: o escopo.

Nos já vimos a explicação e os modelos de Filosofia a partir da concepção de objeto, de método e agora veremos a concepção de Filosofia a partir do seu escopo, de seu objetivo, de seu fim.

Para que a Filosofia está direcionada?

Ao acabar esta parte, terminaremos a noção de Filosofia como teoria.

Qual é o fim da Filosofia? Esta é a idéia. Neste caso então, temos duas possibilidades: a primeira, que vamos entender para poder entender a segunda. A primeira concepção de Filosofia implica que ela é uma disciplina que deve ser criada para solucionar questões que o homem tem. Em outras palavras, a primeira concepção de Filosofia pelo escopo é o que podemos chamar de concepção práksica da Filosofia. Ela diz: o que é práxis? Práksis, em grego, é traduzido normalmente por prática, mas é incorreta essa tradução. Práksis, em grego, se opõe a tékhne. O que essa palavra lembra? Técnica. Nesse sentido temos o termo prático, que é confuso. Tékhne quer dizer prática, um tipo de conhecimento manual para os gregos. Técnica de fazer navios, casas, etc. Um conhecimento por tentativa-e-erro, um conhecimento não teórico. Práksis é o contrário: é uma teoria mesmo, não uma técnica. Por isso o professor não usa o termo tékhne em português. É uma ação, mas não no sentido físico do termo, como no sentido de se arremessar a caneta de quadro branco, mas ação volitiva do homem, proposta pela condição de escolha e determinações volitivas, ou seja, políticas, morais, jurídicas, etc. Isso é Práksis. Então, uma posição da Filosofia é que ela é uma disciplina práksica. Significa que ela deve ser constituída para trazer um benefício aos homens. Um benefício nas suas condições sociais, políticas, morais, etc. É, portanto uma teoria de ação. Não é que o modelo é um modelo acional, mas o resultado é trazer modificações, ou revoluções, no sentido amplo do termo ¹. Então, neste sentido, ela é um doutrina de ação. Toda Filosofia deve buscar alterar algo, e fazê-lo, evidentemente, para melhor. A linha práksica é a de Platão. Ele é um teórico do qual seu objeto tem realidade (ele é um filósofo realista); a famosa República é real, como uma teoria construída, portanto é um teórico sintético, o objeto é construído, mas para ele é exatamente esse o exemplo: ele diz, na passagem 283-B: o que adianta ao homem conhecer a produção do ouro se esse conhecimento não beneficia os outros, ou se o homem é egoísta? Então Platão, na República, admite que a classe dos produtores produzem para o bem da comunidade, da cidade, não para seu próprio bem, não para se tornarem simplesmente mais ricos, não para terem mais ou melhor que os outros. O que adianta conhecer a imortalidade, ou construir uma teoria sobre ela, se ela não for beneficiar também os outros? Nesse caso, ele está pensando nos governantes. Quem é o sábio? O filósofo, e o filósofo é o governante. Ele quem conhece a imortalidade. Não no sentido de que se viverá para sempre, mas de promover as condições de conhecimento que leve a cidade a ser harmônica, justa, e permitir sua continuidade. Então, centrar o conhecimento para o domínio do poder para seu benefício levaria às formais ruins de governo para ele, que são: oligarquia, tirania, democracia.Daí tiramos que ele é um teórico da Práksis. Toda teoria para ele visa ter uma aplicação para benefício dos homens. Por isso Platão constituiu a República exatamente como modelo de comunidade política para solver os problemas que aquelas comunidades políticas históricas existentes empíricas, com modelos tirânicos, oligárquicos e democráticos. Ele criou então um modelo para o benefício dos homens. Não era, portanto, um mero exercício intelectual. É um constructo teórico mas que seu resultado, seu escopo é trazer o bem. Neste caso, o fim de toda teoria é trazer o bem. Agora, podemos dizer em sentido muito amplo do termo: este modelo implica que a Filosofia é revolucionária: ela revoluciona o status quo estabelecido. Não revolucionária no sentido estrito do termo, como as revoluções sanguinolentas.

A revolução do status quo visa ao bem comum.

John Stuart Mill: grande proponente do modelo liberal de Estado. Mill também é contra a democracia porque diz que ela é uma forma para benefício dos governantes. Vamos ver o governo representativo de John Stuart Mill depois, baseado na noção de liberdade.


Na aula que vem, vamos fechar com a outra concepção de escopo, que é a teorética, a inversão da noção de práksica. Líder desse ideário é Aristóteles. Depois, finalmente, veremos os teóricos que não aceitam a Filosofia como teoria.

  1. A melhor definição de revolução strictu sensu é de Olavo de Carvalho, adaptadamente: “a promoção de um evento futuro e grandioso, visando a mudança completa do status quo, levada a cabo por um indivíduo ou um pequeno grupo, mediante a concentração ilimitada de poder nas mãos desse(s) sujeito(s) que prometem realizar a subversão. Essa concentração de poder se dá com a entrega de confiança, meios de realização, direitos subjetivos e dinheiro dos indivíduos para o revolucionário.”