Filosofia

terça-feira, 19 de maio de 2009

A concepção aristotélica da realidade



Bom filme sobre a eutanásia: Mar Adentro

Na aula passada vimos as posições de Platão, a extrapolação platônica em Santo Agostinho e os problemas segundo Aristóteles de Platão com relação ao problema da participação. Dado que Aristóteles critica Platão e mostra, segundo a própria tese platônica, que este é inconsistente no mundo das idéias, porque ele não pode participar do mundo empírico, então tem-se que eliminar o mundo das idéias.

Ao eliminar o mundo das idéias, Aristóteles volta aos problemas que Platão teria que evitar: o relativismo e o convencionalismo. Não deve haver um critério de realidade, justiça, conhecimento, tudo no mundo das idéias. No momento em que Aristóteles elimina o mundo das idéias, tudo volta ao mundo empírico. Então, temos o problema de relativismo e convencionalismo.

A pergunta interessante é: dado que Aristóteles eliminou o mundo das idéias e sobrou o mundo empírico, mas ele não quer admitir nem o convencionalismo nem o relativismo, como ele faz para manter as condições de estabilidade da realidade? Não pode mais ser o mundo das idéias. O que se põe é o mundo empírico. Então como Aristóteles evita o convencionalismo? Colocando a existência da coisa em si, no próprio ente. Todas as causas vêm para o próprio ente. Ele diz que a própria causa da realidade está em cada um de nós em si, em cada um dos pincéis atômicos, em cada uma das cadeiras, em cada uma das estrelas.

Aristóteles coloca a metafísica na própria natureza ontológica do homem. ¹

A solução aristotélica é essa. Então, na verdade, o que teremos? Temos um mundo empírico. A solução aristotélica para evitar o convencionalismo é levar todas as arkhai para o próprio ente empírico. Então, temos que o preto está intrinsecamente na estrutura ontológica do ente pincel.

Aristóteles chama então tudo o que pertence à realidade de ente. O que é ente? Vem do termo latino entia, que por sua vez é transliteração da palavra grega óntos. Óntos é o particípio passado do verbo ser. Em português não temos exatamente, então usamos ente mesmo. Não é o próprio verbo ser como na forma "sido". É que tudo é ser. Se o pincel é preto, então ele é (note o verbo ser aqui) preto. O verbo ser fala de tudo, porque tudo é. Tudo pode ser aplicado no predicado. Mas estou especificando algo? Não. Então Aristóteles nota que o verbo ser, por falar sobre tudo, acaba por não falar sobre nada. Mas, ao falar de ente, já se está especificando uma estrutura ontológica individual. Ente, portanto, é tudo o que é ou tudo que existe; é a condição de existência do próprio ente. Enquanto para Platão nossa existência depende da realidade do mundo das idéias, em Aristóteles a nossa própria existência é determinada em nós mesmos. A essa tese, de que todas as coisas estão no próprio ente, que daqui a pouco veremos, é a tese da universalia in re (as causas universais estão no próprio ente.) É assim que ele evita o convencionalismo de Platão. Como ele evita o convencionalismo? Não existem causas da própria realidade. Black, noir, preto é convencional. Mas são só vocábulos de diferentes línguas que significam uma coisa (preto), e o significado próprio é exatamente uma causa. Então, o que Aristóteles está pensando é exatamente aquilo que dá significado ao enunciado “o pincel é preto.” Ou a mesma coisa em francês (la brosse est noire). Tanto o francês quanto o brasileiro vão entender a mesma coisa. Isso porque preto é uma condição própria desse pincel.

Então, ente é tudo que existe ou tudo que é. Mas o ponto interessante é: qual é, então, a estrutura de um ente? Vejamos: como Aristóteles quer vencer o convencionalismo, a pergunta dele tenta solucionar o famoso questionamento de Heráclito: “entramos no mesmo rio duas vezes?”. Ele dirá que sim, mas não é suficiente. Por quê? Na verdade a resposta é: sim e não. Se formos olhar para o rio, ele é literalmente o mesmo rio que entramos minutos antes? Ninguém em sã consciência dirá que sim. Não é o mesmo rio literalmente. Mas ele deixou de ser rio só porque as águas mudaram? Ele se tornou outra coisa? Não, ele ainda é rio. Essa é a condição. Então, apesar de todas as mudanças, ainda há algo que permanece. Apesar de termos todas nossas diferenças, como sermos altos, baixos, magros, advogados, vivos, não-vivos, pretos, brancos, negros, caucasianos e assim por diante, Aristóteles pergunta: há algo que nunca muda em nós? Algo que sempre permaneça? Algo que nos identifique permanentemente? Algo que, ao nos olhar, nos permita dizer: “isto é um ser humano”?

Em outras palavras, o que é que, apesar de tudo, nos identifica como seres humanos, nos torne idênticos, e que, negativamente, nos contraponha a todos os outros indivíduos da realidade, como não confundir um homem com um pincel atômico, e assim por diante? É isso que, apesar de todas as variações que existem, ainda assim um sujeito pode ser chamado de ser humano. Isso posto, tratamos o corpo de uma pessoa que faleceu como um cachorro morto? Por que, apesar de ainda que alguém tenha traumatismo severo e não ter mais recuperação de acordo com nosso modelo médico, ainda o tratamos como ser humano?

Neste caso, para os gregos, existe um termo muito interessante: êthos. Significa, em sua origem, “ninho de passarinho”. No grego primitivo, êthos, por volta do século XI a.C, significava isso. Se você é um ornitólogo, como você identifica um pássaro sem tê-lo visto? Pelo ninho. Nenhum faz ninho igual a outro. Então, na verdade, podemos admitir que uma ave seja distinguida de outra pelo ninho. Daí veio o termo êthos, que é o caráter: a nota ontológica que nos distingue e nos contrapõe a todos os outros entes da realidade. Então, o êthos é algo que só nós podemos possuir. Um bom exemplo é o seguinte: peguemos um martelo. Arqueólogos acharam um martelo de cobre do Egito antigo, e o colocaram no museu. Ele deixou de ser martelo só porque está exposto no museu, sem nunca mais ser usado para sua finalidade original? Não, porque sua condição, seu êthos, é um elemento usado para martelar. O fato de ele não mais ser usado para martelar não muda seu êthos. Da mesma forma que o pincel não deixa de ser pincel durante o tempo que não está sendo usado para escrever no quadro branco. Diferente de éthos, outro termo, que quer dizer “exercício”. A diferença está nos acentos na letra “E” e na pronúncia. Aí é que está o ponto interessante. O êthos é universal, mas o éthos não; este é relativo.

Há dois tipos de êthos: o ontológico, que todos os entes têm, como a condição que determina o ente enquanto ente na realidade, como pincel, árvore, homem, e assim por diante. E o outro é o êthos moral. O único ente que tem o êthos moral-político é o homem (somente ele tem o caráter moral-político). Daí o homem é o único ente capaz de ações morais e políticas. Daí vem a palavra ética: o estudo das condições que tornam o homem um ser moral.

Então vamos seguir: a questão interessante de Aristóteles é achar exatamente as condições (êthos), que permitem entender o que é o ente. O pincel não pode ser justo ou injusto. Daí não cabe falar em maldade dos animais, porque o predatismo e ferocidade dos animais são do próprio êthos animal.

Neste pontos, temos condições de voltar. Vejam: lembrem-se da árvore de abstração que fizemos no passado, com a qual entendemos os passos da dedução lógica com a qual Aristóteles chega à conclusão de que o homem é um animal racional. Aristóteles sempre trabalha desse modo. Ele estabelece semelhanças e diferenças, ao ponto de chegar à condição de sua identidade, ou seu êthos. O que nos identifica como somos? Somos animais racionais. Então, no final das contas, nossa condição de animal racional não muda, e não tem como mudar. Isso é permanente em nós. Podemos ser animais racionais gordos, altos, machos, fêmeas, ter olhos ou não, sermos loiros ou não. Mesmo com tudo isso somos animais racionais. Apesar de todas as variações, mesmo com 60 ou 10 anos de idade, com ou sem barba, somos inconfundíveis com um cachorro. Apesar de tudo isso, a característica de ser animal racional não muda. Do mesmo modo que o pincel poderia ser verde, metálico, redondo, mas não poderia deixar de ser pincel. Então, aquilo que nos determina diferentemente de todos os outros entes (as arkhai) Aristóteles denomina substância. Ser pincel é a substância “deste indivíduo” (o pincel de escrever na lousa que o professor nos exibiu neste momento). E evidentemente esse indivíduo não pode deixar de ser pincel porque ele será qualquer outra coisa, menos pincel. Da mesma forma que não podemos deixar de ser humanos.

E as diferenças entre homens? Não pode ser pela substância, porque um é animal racional, e outro também terá que ser. Como fazer a diferenciação?

A substância é da ordem da estabilidade, da permanência, da imutabilidade. Só que se a substância não muda, então Aristóteles demonstrou a segunda resposta para a pergunta de Heráclito: Aristóteles não havia dito que “sim e não”? Então é porque o rio não é o mesmo, ou porque não somos os mesmos em nossa variação temporal? Se ser animal racional é nossa identidade, ela não nos distingue. Então essa arkhé é o princípio que dá uma determinada identidade. Dois homens são animais racionais. Mas não podemos, pela substância, diferenciá-los. A substância, portanto, nos coloca dentro de uma espécie. Daí temos animal racional, que é nossa espécie. Isto é dado pela nossa substância. Então ela é o princípio de especiação. Ou seja, é exatamente a substância que nos coloca numa espécie: a de cachorro, de homem, de chimpanzé, de cadeira, de pincel, etc. Mas isso só nos diz qual é a espécie! Só nos distingue das cadeiras e dos pincéis, mas não de nós mesmos. É a única coisa que a substância pode fazer. E porque ela é o princípio da especiação, é ela que nos dá existência. Então, a substância também é um princípio de existência. Assim podemos dizer que, porque a Amanda é um animal racional, ela existe. Mas isso não é suficiente para distinguir os animais racionais em si. Então veja: a substância dá a existência, mas o modo de existir de cada um de nós é diferente. Então, o que faz com que alguém seja um indivíduo dentro de uma espécie, ou o que faz do Paulo o Paulo? Não é a substância que fornece as diferenças. Ela nos diferencia dos outros entes, mas não é capaz de apontar as diferenças individuais. E o que é interessante: as características individuais podem ser semelhantes. Todos nós temos dois olhos. Deixar de ter um não significa que deixamos de ser seres humanos, pois conservamos a mesma substância.

Então, o que diz Aristóteles? Apesar de toda a permanência, onde que temos a instabilidade de sermos velhos ou novos, ou de termos ou não cabelos, ou de termos cabelos loiros ou castanhos? Notem que não é a substância que pode responder isso. Então, não está na substância. Aristóteles, então, dá nome aos princípios que estão na esfera da não-permanência de acidentes. O que é um acidente? É uma arkhé. Os acidentes são uma causa. Mas são uma causa que forma a fórmula do ente. Os acidentes são causa diferenciadora; assim, podemos dizer que o acidente nos torna indivíduos. Eles são princípios de individuação. Então temos animal racional (substância), mas temos animal racional fêmea da espécie, cabelo castanho e cumprido, caucasiana, aluna de direito, brasiliense, e assim por diante. Tudo isso são acidentes. Logo, a substância nos dá a espécie, enquanto os acidentes nos dão o indivíduo. Então somos conjunto de uma substância comum a todos, mas nossas diferenciações entre nós como indivíduos se dão por acidentes. O próprio lugar ocupado no espaço é também um acidente, que pode mudar. Remover um acidente descaracteriza o indivíduo, mas não a espécie.

Então, enquanto que a substância nos dá a existência, e por isso nos coloca numa espécie, os acidentes nos colocam como indivíduos. Eles nos dão o modo de existir. Temos um modo de existir que é dado pelos acidentes. Não podemos existir como os chimpanzés, mas temos olhos como eles. Então que fique clara a diferença entre modo de existir e existência. Daí segue que os acidentes são da ordem da instabilidade, daquilo que muda. Nós somos instáveis por causa dos acidentes, não por causa da substância. Esta não pode mudar. Mas vamos pensar o seguinte: admitamos que um sujeito venha trafegando na W3 e seu carro é abalroado por trás por outro. Houve um acidente? Sim, esse é o conceito senso comum para esse tipo de fato. Porém, filosoficamente, ocorreu um incidente. Os acidentes são arkhai da individualidade do ente. Uma batida é da ordem dos incidentes. Um incidente é um evento fortuito não previsto. Eles são da ordem da casualidade, mas não da causalidade como os acidentes. Neste caso, tivemos um incidente. O automóvel já tem um acidente, que é ter uma forma, digamos, de Fusca. A forma de Fusca o define como carro? Ela o individua como carro. Agora, ser carro Fusca azul é individualizante. Acidente pertence à estrutura do ente, enquanto o incidente é totalmente externo. Mas o incidente pode alterar alguma coisa do ente? Sim. O incidente alterou o acidente, mas não a substância. O incidente pode alterar a substância? Não porque ela é inalterável. O carro continua sendo carro, mesmo depois de amassado ou até destruído. Em outras palavras, a questão interessante aqui para Aristóteles é: como ele explica as deformações do mundo? Por incidentes. Acidentes são da natureza do indivíduo. Um Fusca terá aquela forma. Se ele capotou, deixamos de ver nele um carro? Não, ele ainda é carro. Mas o incidente alterou alguns de seus acidentes, mas não sua substância, sua essência, portanto ele continua sendo carro!

Da mesma forma que alguém que fica em estado vegetativo: o sujeito deixa de raciocinar. Mas deixa de ser um ser humano? Não, porque o incidente que o colocou naquela condição só afetou os acidentes, mas não a substância. E então perguntamos: por que a lei protege o anencefálico? Não podemos dar uma resposta puramente jurídica, mas filosófica. Porque perderíamos o critério fundamental de identidade, a substância humana, e cairíamos no relativismo. Assim, Aristóteles entende que, no final das contas, não podemos confundir racionalidade com intelectualidade, respectivamente lógos x entelekhéia. Essa palavra, que originou a palavra “intelecto”, significa “operação da razão”, ou “a razão operando.” Olhe a metafísica aristotélica: se identificamos lógos com entelekhéia, então razão e intelecto são a mesma coisa. Aí poderíamos desligar os aparelhos de uma pessoa vegetativa porque ela não tem mais o intelecto. Mas você raciocina o tempo todo, ou melhor, opera com a razão todo o tempo? Não. Então, posso te dar um tiro no momento em que você deixa de usar o intelecto? Não, porque significaria deixar de ser humano. Então, neste caso, se admitirmos que razão e intelecto são a mesma coisa, podemos admitir que ao sonhar deixamos de ser seres humanos. Então Aristóteles diz que não. Ele diz que somos racionais, e, por causa disso, podemos pensar. Mas o cachorro também pensa, mas não tem o pensamento como operação da própria razão. Se fosse uma questão de pensamento e intelectualidade, o golfinho também seria altamente inteligente. A entelekhéia é da ordem do acidente ou da substância? Do acidente, porque há gradação entre a inteligência do homem e do cachorro. A entelekhéia depende do cérebro, em nosso modelo atual.

Saúde: é própria de um acidente ou parte da substância? Acidente, porque se fosse da substância jamais poderíamos perder a saúde. E a vida? Também é um acidente, porque podemos perdê-la. Se a vida pertencesse à esfera da substância, seriamos imortais. E a doença? É um acidente também; é sua causa que pode ser o incidente. Isso porque a saúde pertence à ordem natural das causas. A saúde é o acidente, a deformação da saúde por causa de um vírus, por exemplo, é o que chamados de doença.

Então vejam: neste caso, a pergunta interessante é: se fossemos comparar em termos de hierarquia, ter vida é mais estável do que ter olhos? Ou ambos são instáveis? Na instabilidade deles, há um grau diferente de estabilidade? Sim. Ser macho ou fêmea da espécie é mais estável ou menos do que ter barba? Claro que mais estável. Então na verdade podemos criar uma certa ordem ou hierarquia de estabilidade? Podemos. Há os acidentes que são mais estáveis, frente aos que são menos estáveis. Ocupar um lugar nesta sala de aula é um acidente menos estável, enquanto ser aluno de direito é mais estável.

Um homem que quer ser mulher: deixou de ser macho da espécie? Não, porque por mais que haja acidentes que denotam feminilidade em sua forma física, na voz e nas atitudes, ele ainda conserva o par cromossômico XY. Então não podemos dizer que o sujeito deixou de ser macho da espécie. Daqui tiramos que “ter corpo” é um acidente estável, mas “ter o corpo com uma determinada forma” é instável.

A condição de maior ou menor estabilidade pode decorrer da própria definição de acidente? Não, porque todo acidente é instável por natureza. De onde então vem a idéia de instabilidade do acidente? Da substância do acidente!

Vejam este exemplo: animal racional, macho da espécie, português, moreno, imperador do Brasil, músico, da Casa dos Bourbon (Bragança). Temos, portanto, Dom Pedro I.

Mas como pode haver acidentes mais estáveis e menos estáveis, já que a instabilidade é condição do acidente dada pela sua própria substância? Como então resolver o caso de acidentes que têm maior estabilidade? Isso significará que a substância é um princípio composto e complexo. Ela é composta pela famosa essência e pela matéria. A essa substância se ligam os acidentes. O que é a essência? É o que define o ente. A substância não define o ente. O princípio de definição é a essência. Então, no final, a essência é a definição própria do homem: o homem é animal racional. Nossa essência é a própria razão. Aristóteles, quando afirma que o homem é animal racional, ele já dá as duas partes da substância: a essência (racionalidade) e sua matéria (animal). E o intelecto? Está nos acidentes, mas a razão está na essência. Enquanto a substância nos põe na existência, a essência nos põe na realidade. Se é real, tem que ter essência. Nós somos reais porque temos uma definição, que é a racionalidade. É exatamente isso.

Só nos falta entender a matéria. É evidente que ela é da ordem da mutabilidade, e é o que dá a instabilidade. Por que há acidentes mais estáveis que outros? Porque uns estão ligados à essência. E os que se ligam à matéria são os mais instáveis.

Cuidado, a noção aristotélica de matéria não tem a ver com a noção físico-química de matéria. Podemos chamar os acidentes de acidentes essenciais e acidentes materiais.


  1. Aqui o professor fez uma menção à metafísica de Nietzsche.