Filosofia

terça-feira, 24 de março de 2009

Conclusão do escopo e os filósofos ateóricos



Avisos: obter os seguintes textos, que serão necessários quando começarmos o estudo da concepção da realidade:

  1. A República – Platão, Livro VII, onde está a famosa alegoria da caverna;
  2. Metafísica – Aristóteles, Livro II.

Estávamos falando sobre a Filosofia Práksica em que, para aqueles autores, o conhecimento não tem um fim em si mesmo. O fim é buscar a mudança das ações morais e políticas visando o bem comum. Como diz o próprio texto de N. Abagnano, podemos denominar a Filosofia de revolucionária, pois ela sempre leva a uma mudança no status quo. Atenção para a diferença entre revolução em sentido amplo e em sentido estrito. Essa revolução em sentido amplo de Abagnano é baseada na condição racional do homem.

O interlocutor, para quem se destina a Filosofia, pode aceitar a argumentação como válida e de forma que essa argumentação promova a igualdade, justiça, e assim por diante. Essa é a noção revolucionária que Abagnano quer passar. Os dois grandes mestres nessa linha são Platão e John Stuart Mill. Platão com a noção ligada à República, que busca produzir a harmonia da cidade, mudando a concepção que se tinha daqueles modelos injustos de polis e de governo: oligarquia, democracia e tirania. John Stuart Mill diz que a mudança de concepção deve ser promovida de tal forma que os homens se tornem nobres e então possam-se controlar os governantes e o sistema como um todo. Há teóricos que admitem a revolução em sentido estrito, como Marx e Rousseau, pois, para eles, quem está do outro lado (o interlocutor) jamais vai admitir a condição racional. Marx diz que quem domina o capital o domina como um louco domina um pedaço de carne. De acordo com John Locke, todo homem teria condições de dominar o capital. Marx julga que neste caso o único modo de se conseguir não é o diálogo, mas a ação afirmativa, uma revolução proletária violenta. O Manifesto Comunista, então, surge como panfleto de como se promover essa revolução.¹

Rousseau tem a mesma proposta: a Filosofia deve promover a práksis e para ele também não é, nesse sentido, uma condição meramente intelectual. Veja: Rousseau afirma que o poder é do povo. Obras: Ensaio Sobre a Desigualdade dos Homens e Du Contrat Social. Ele diz, no Contrato Social, que o homem nasce igual por natureza, o que significa que ele é livre. E todo homem deve desejar a liberdade. Logo, o fundamento de toda forma de governo deve ser a perseguição da liberdade. Quando alguns indivíduos usurpam esse direito, eles estariam removendo o poder de autodeterminação que o povo tem. No estudo de democracia que fizemos em Ciência Política, aprendemos que o povo tem o direito de alterar e imiscuir-se nos rumos de seu próprio governo. Ele afirma, na seqüência, que o povo irá sacudir os grilhões que lhe foram impostos. E, nesse momento, de acordo com Rousseau, não será inaceitável que o povo use os próprios meios que foram usados antes para ter sua liberdade usurpada. Isso não é nada mais que revolução em sentido estrito. Daí culmina na Revolução Francesa, de acordo com a afirmação dos jacobinos. Rousseau critica a idéia de que o imperador é o servo do povo. Ainda assim, segundo Rousseau, o imperador não deixa no povo o poder da escolha.

Entendidos esses modelos, temos o outro modo de entender a Filosofia a partir de seu escopo: perguntando-se qual é o objetivo da Filosofia.

Para esses teóricos, a Filosofia é teorética, ou contemplativa. Não é práksica, não é revolucionária. O filósofo cria a Filosofia para explicar o mundo, e mais nada. Nesse sentido, a Filosofia está na esfera do conhecimento pelo conhecimento. É o simples e mero fim: o conhecimento basta a si mesmo. São palavras de Aristóteles, inclusive. Em outras palavras, aqui o conhecimento é totalmente autárquico, no sentido que ele se basta a si. É o verdadeiro conhecimento para esse grupo de filósofos. Enquanto o filósofo como Platão, John Stuart Mill, David Hume, Marx, Rousseau e outros admitem que a Filosofia tem uma parte contemplativa, eles, que são práksicos, dirão que, se desenvolvemos um modelo filosófico que não pode ser aplicado, ele perde todo o seu valor. Para os teoréticos, a beleza do conhecimento se enaltece aí: o conhecimento sem outros fins.

Aqui Aristóteles faz a diferença entre ciência (epistéme) e arte (que ele chama de tékhne). A diferença é exatamente aquela do médico para o filósofo, para o cientista, etc.

Quando um médico cria uma teoria, ele teoriza sobre seu objeto. Mas ele faz isso apenas por uma mera abstração? Não, ele o faz para daí tirar terapias, como administrar drogas, e cuidar da saúde do paciente. Por isso a medicina é uma arte, porque seu conhecimento não se basta, mas tem um fim de produzir um bem fora dela, que é estabelecer a saúde.

Já para a epistéme, o conhecimento não é criado visando algo além do próprio conhecimento. Na época de Aristóteles, o físico não escreve teorias para tirar alguma aplicação disso. Poderia até acontecer, em que as teorias resultariam em melhorias para o homem, mas não seria essa a intenção. Para ele o cientista está pesquisando pelo só objetivo de conhecer.

Claro que pode haver recorrências desse conhecimento, em tecnologias. Como já vimos, hoje temos a pesquisa de fusão atômica. Há um projeto em andamento para a criação de um enorme aparelho de fusão atômica na França. Os cientistas que lá trabalham o estão para produzir a fusão atômica. Mas os governos envolvidos estão interessados na tecnologia que resultará desse projeto para colher os benefícios.

Enquanto Platão identifica arte com ciência, Aristóteles distingue as duas por esse motivo. E o ponto de divergência dos dois grandes mestres será exatamente no aspecto que a Filosofia política e a Filosofia moral e ética é, para Aristóteles, uma teoria da ação. Ele entende, evidentemente, quando fazemos a pergunta: "quais as condições da natureza humana que fazem com que o homem aja moralmente correto?" Mas ele não se preocupa em determinar que o homem deve agir segundo as palavras dele. Daqui não segue que os homens viverão assim, moralmente corretos. É uma teoria da ação, mas é apenas um estudo especulativo da ação humana. O próprio Aristóteles taxa seu modelo de especulativo. Platão, por outro lado, quer que seu modelo intervenha na vida humana, assim como Marx e Rousseau.

Nesse sentido, ainda que tenhamos a Filosofia Política como uma Filosofia Práksica, para Aristóteles sua constituição é só para especular sobre a ação humana; já Platão quer mais, ele quer que o homem também aja. 

Outros teóricos que defendem a Filosofia teorética são os lógicos da linguagem de hoje. Por exemplo: os teóricos analíticos da linguagem (até mesmo na esfera do Direito) como Wittgenstein, Peter Strawson e Robert Alexy, ao analisarem uma questão moral. O que queremos dizer quando falamos "João é bom"? Eles não estão preocupados em saber o que significa isso aí, como em falar "João é pedreiro". São a mesma coisa? O filósofo está preocupado com a análise da linguagem. Filósofos dessa linha, que também discutem a religião, ao dizerem "Deus é bom", só estão preocupados com a análise daquilo que se expressa, e não em desenvolver um modelo moral para conduzir as pessoas. Busca-se apenas dizer algo, e não implantar algo. “Bom” é um conceito relativo, e só pode ser determinado num contexto.

Quando Alexy estuda o discurso jurídico, ele analisa como, no Direito, se dá a argumentação. Mas ele não se preocupa com a seguinte conseqüência: “estou analisando o discurso jurídico e o argumento que se usa na esfera do Direito, como quando o juiz apresenta uma sentença, ou como quando temos uma relação entre discursos jurídicos na esfera geral da norma ou da lei. Nessa hora, Alexy não está preocupado em propor como o juiz deva se comportar, só com o estudo da argumentação jurídica propriamente dita, mais nada. Ele foca nos pressupostos, fundamentos, estrutura lógica, estrutura de relação entre quem fala e o que é dito. Ele não diz o que o juiz deve dizer ou fazer para se alcançar a justiça, que é o que Platão faria.

Essa é a diferença básica entre o grupo dos contemplativos (teoréticos) e os práksicos.

Toda vez que se tenta implantar algo de grande abstração filosófica na realidade social e política, tudo é deturpado, segundo se observa. Por exemplo: jacobinos em relação à Revolução Francesa, segundo a perspectiva de Rousseau, ou o que fizeram os liberais com relação ao modelo de John Stuart Mill. Os teóréticos vão dizer: toda vez que se tentar levar tal modelo teórico para a esfera da aplicação, o modelo será deturpado, pois o modelo não tem condições de garantir uma relação com a realidade. Uma resposta dos práksicos é: os homens podem deturpar, mas isso não é uma crítica válida de que o modelo não possa ser implantado.

À medida que formos estudando os grandes mestres, vamos aprofundar mais sobre eles particularmente.

Esta parte que acabamos nos leva a afirmações que são claras, apesar de nas entrelinhas. Vamos tomar cuidado: os esquemas que temos estudado em sala são meras estruturas de compreensão da Filosofia. Não devemos julgar que, sendo Aristóteles teorético, o pensamento dele está rotulado. Platão é realista quanto ao objeto, é sintético quanto ao método, e práksico quanto ao escopo. John Stuart Mill é positivista epistemológico quanto ao objeto, analítico no método e teorético no escopo, exatamente o contrário de Platão. No final das contas, os autores flutuam entre as categorias.
 

Os ateóricos

Vamos começar citando três deles:

Para a teoria, a razão é a senhora suprema. Por isso a Filosofia é totalmente racional. Por exemplo: podemos ter um empirista como David Hume dizendo que a razão não é a fonte do conhecimento, mas a razão é o que fundamenta o conhecimento de qualquer modo, ou mesmo um racionalista como Descartes, de que diz a razão é a fundadora do conhecimento. Ela, em outras palavras, é a causa agente do conhecimento, daí ela é a senhora do conhecimento.

Já os teóricos da outra linha, os ateóricos ², admitem que a Filosofia é uma não-teoria. Antes de mais nada, não devemos julgar que não-teoria = antiteoria. Não significa que eles não aceitam a Filosofia como uma teoria; significa que a Filosofia é muito mais que uma mera teoria, e seu status está para além do que uma teoria pode apresentar. Ela pode ter aspectos teóricos, mas não parará aí; ela jamais será meramente uma teoria. essa é a idéia deles.

Para se fazer um sistema de pensamento, usamos modelos teóricos. Mas não é exatamente essa a causa da Filosofia. Pode ser inclusive a causa da ciência, mas não da Filosofia. Neste caso, então, a razão não é a causa agente, mas um instrumento, portanto ela é dita instrumental; ela existe para organizar o pensamento. Por quê? Por um motivo bem simples: o homem é muito mais do que mera razão. Quando admitimos que a razão é a construtora de todo o conhecimento, que é o que os teóricos de até agora defendem, fazemos com que as outras funções da alma humana sejam simplesmente relegadas a um segundo plano de controle. Mas para os autores ateóricos enumerados acima, a razão é um instrumento, para o bem ou para o mal. Ela não funda, mas organiza o conhecimento. E daí, com essa concepção dos teóricos, afastamos simplesmente o que o homem tem de importante. A ênfase não deve estar na razão humana, mas e deve estar naquilo que torna os homens mais iguais. Isso porque a razão acaba por desigualar o homem.  Daí tais autores dirão que o cerne do homem e a causa da Filosofia não seja a razão, mas o amor, como afirma Schoppenhauer, o grande filósofo romântico, ou a vontade, como defende Nietzsche, ou ainda a existência humana, como defende Heidegger, que critica a metafísica (dizer que a natureza do homem é tal e qual e que ele deve funcionar de tal modo por causa de sua essência; Heidegger remove a idéia de essência de seu pensamento.) Dizem os metafísicos que o homem é livre em sua existência.

Há também os sofistas, que criticam a linguagem, que é baseada na lógica. Dizem eles que a linguagem é movida pelas emoções, pelas paixões, que estão ligadas ao convencimento, não à explicação, e nem com uma mera aplicação da ação baseada numa teoria.

Há, por último, os "anticonhecimento epistemologico", ou anti-epistemólogos, que são os céticos, que dizem que o conhecimento teórico é impossível. Vamos estudá-los depois.

Então, como poderíamos começar uma classificação desses senhores? Cuidado, esta sistematização será problemática mesmo. É mais difícil achar um jeito de colecionar este pessoal do que os da classificação anterior.

Podemos dizer que temos dois grandes modelos: o primeiro é o modelo daqueles teóricos que dizem que o fundamento da Filosofia é anímico. Mas é um fundamento anímico no sentido de que está na constituição da alma humana. Alma no sentido amplo do termo, não necessariamente se referindo a elementos religiosos, apesar de haver, nesse contexto, um existencialista cristão chamado Karl Jaspers (1883 - 1969), que é católico.

O outro grupo nós podemos chamar de anti-teóricos, no sentido de que criticam algum elemento definido pelos adeptos da Filosofia como teoria, mas não a Filosofia como um todo. Podemos chamá-los de anti-teóricos com a ressalva de que eles não promovem a negação absoluta da Filosofia como teoria, mas criticam a teoria num aspecto específico.

Atenção agora: não confundamos os fundamentos ateóricos de que, se a Filosofia não é fundamentada na razão, então que a Filosofia está para além; ela pode até admitir os elementos da teoria para sua própria sistematização, mas está além do que a própria razão pode chegar, com a forma do discurso que se utiliza em Filosofia. Ler texto do Bochenski, no qual o autor fala sobre as várias formas de expressão da Filosofia: poesia, prosa, diálogo, etc. O conteúdo, como já dissemos exaustivamente, não deve ser discutido com a forma de expressá-lo. Jean Paul Sartre (1905 - 1980), outro existencialista, tem uma obra que é basicamente em estrutura aristotélica. E a famosa obra chamada "O Ser e o Nada." Mas apesar de sua obra central ser o Ser e o Nada, e ele ter outras obras no mesmo cunho,  várias de suas obras são de forma teatral. Ele é filósofo e teatrólogo ao mesmo tempo. 

Não confundam, pois, os fundamentos com a forma de literatura. Os filósofos pré-socráticos, como Anaxímenes, Tales, Heráclito e Demócrito são todos da linha que diz que a razão é senhora do conhecimento. Só que os filósofos pré-socráticos começaram a pensar a partir dos limites do mito por não ter condições racionais de explicação. E a forma literária do mito é a poesia. Neste caso, temos que eles tinham que expressar o pensamento, que é teórico, mas o instrumento literário que tinham à mão era a forma poética. Então todos os pré-socráticos expressam suas idéias através de poemas. Há uma coletânea com o título em português “Os Pré-Socráticos.” Sócrates, Platão e sofistas preferem o diálogo. Aristóteles, por não concordar com o modelo dialogal, cria o modelo analítico, com disposição argumentativa, que se baseia em premissas + conclusão final.

Outro modelo existente é a aforística, usada por Nietzsche e Wittgenstein. Aforismos são enunciados curtos, com duas ou três linhas. Essas afirmações curtas falam de um mesmo tópico. Ao fechar um tópico, passa-se a um outro conjunto de afirmações que têm novo conteúdo mas, em contexto geral, estão ligadas em todo o grande bloco. Mas cada afirmação é uma unidade em si mesmo. Diferente do modelo aristotélico que vai de premissas até chegar numa conclusão: todo homem é mortal, Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal; Sócrates é grego logo algum grego é mortal; Sócrates é filósofo, logo algum filósofo é mortal e é grego. Essa estrutura analítica de apresentação não é usada por Wittgenstein, que trabalha com o aforismo, que usa enunciados completos em si mesmos. A ligação da argumentação é feita pelo leitor. 

Logo, a literatura ou modo de expressar a Filosofia não podem ser confundidos com os fundamentos ou a classificação daquele modelo filosófico. Bochenski, por exemplo, critica um filósofo chamado Gabriel Marcel (1889 - 1973) não por este usar poesia, mas alegar que a poesia é a única que consegue expressar aquilo que a razão não consegue.

A Filosofia anímica pode ser subclassificada em:

  1. Filosofia romântica, ligada às paixões, encabeçada pelos filósofos româticos, tendência muito comum nos séculos XVIII e XIX; um representante citado por Bochenski é Goethe; estudaremos Schopenhauer nesta classificação;
  2. Filosofia da vontade, tendo Nietzsche como principal representante.

  1. E por algum motivo a leitura do Manifesto está sendo cobrada dos alunos do Ensino Médio para o PAS/UnB.
  2. Não confundam: "ateóricos" é simplesmente o nome para designar os "teóricos que não concordam que a Filosofia seja meramente uma teoria." Daí a possibilidade de confusão: os ateóricos, pelo menos no meu entendimento, são teóricos. "Ateoria" se remete a uma característica da Filosofia, não dos filósofos.