Filosofia

terça-feira, 26 de maio de 2009

São Tomás de Aquino



Estávamos vendo a questão relativa à estrutura dos entes para Aristóteles e chegamos à conclusão de que, por abstração binária, podemos chegar à prova da existência da primeira substância. Seria a substância pura, mas que ainda é um ente, e tem essência. É o princípio de todo grande princípio. Neste caso então, para Aristóteles, não é problema desenvolver uma tese em que a substância tenha essência. Se a substância fosse a própria essência, isso seria contradição porque seria o princípio. O princípio é apenas uma arkhé que estabelece nossa existência.

Como Deus é o único princípio que está em todos os entes, então Deus estaria em tudo, e cairíamos no panteísmo. Daí vem a idéia de que Deus faz tudo à sua imagem.

Como tudo se chega por dedução lógica, chegou-se à conclusão de que os deuses eram a própria imagem do homem. Mas vejam bem:

Aristóteles não tem o problema que os grandes mestres cristãos terão: a condição de prova a existência de Deus mas, antes, deve-se determinar o que é a natureza de Deus. A natureza da primeira substância não é problema ser um ente. Como vimos, a diferença é que somos imperfeitos, se comparados à primeira substância. Para o Cristianismo, Deus não é um ente, pois ente é criatura. Deus não está na mesma ordem que estamos. Então, como podemos chegar à natureza de Deus e estabelecer que Deus não pertence a essa realidade? Tudo deve ser feito de forma a se evitar o panteísmo. Neste caso, qual é a solução que São Tomás de Aquino vai oferecer para o problema? Vamos agora estabelecer a linha de raciocínio do grande mestre cristão.

Vamos tomar, novamente, a estrutura de, como São Tomás de Aquino, a partir de Aristóteles, prova a existência de Deus. À época de Tomás um modo muito comum na época era a metáfora, como usada por Santo Agostinho. Nos pensadores cristãos, como as metáforas, apesar de afirmativas, não solucionavam a questão, eles começaram a utilizar o que é conhecido como via negativa. O que é isso? É exatamente tentar chegar ao ente mas dizendo o que ele não é. Por exemplo: ao invés de definir o que é pincel, dizemos: pincel não é cachorro, não é homem. Digo tudo o que ele não é. No final das contas, não conseguimos delimitar nada. Claro que o exemplo que demos foi de pincel. O problema maior é definir Deus. É bem simples: quando falamos em Deus, baseado na Bíblia, Deus é bom. Mas não simplesmente. Ele é o bem. Mais que isso, Ele é justo. E mais que isso: onipresente. E ainda mais que isso: onisciente. Então a via negativa estabelece que não há a condição da própria natureza de Deus. As características não implicam o que ele é, e só diz os atributos. Do mesmo modo que dizer que alguém tem cabelos castanhos não é dizer o que é alguém é. Então a condição da via negativa é totalmente imprópria para São Tomás de Aquino na tarefa de afirmar Deus. Nada está sendo afirmado sobre ele, apenas sobre os atributos, e não é o próprio Deus por sua natureza. É claro que Aquino pode chegar a esses atributos, mas só depois de determinar o que é Deus, ou seja, estabelecer a própria natureza de Deus.

O outro ponto de São Tomás de Aquino é que ele não quer aceitar os fideístas, que aceitavam Deus simplesmente porque a Bíblia diz tal e qual. Então, como ele pode aliar a teoria àquilo que a Bíblia diz? Vamos voltar a Aristóteles.

Segundo Aristóteles, temos entes, sendo eles empíricos ou ideais. O empírico tem a estrutura que conhecemos: como Tomás de Aquino é aristotélico, ele concorda com essa tese aristotélica: substancia (essência + matéria) + acidentes. Se abstrairmos a matéria e seus acidentes, chegaremos aos entes ideais acidentais. O que são? Em Aristóteles, eles têm a estrutura de substância, que é = essência + acidentes. No momento em que Aristóteles abstrai os acidentes, ele chega à primeira substância. O problema é, de novo, que Santo Tomás não pode ficar com Aristóteles, porque Deus seria ente. Nem com o fideísmo, porque seria uma parada dogmática (lembram do Trilema de Münchhausen?). Ele não pode ficar com a mera condição teórica da via negativa porque ela não dirá o que Deus é. Então, como solver esse problema? Aí é que está: São Tomás de Aquino começa a pensar primeiramente na base lógica: Aristóteles não usa o verbo ser porque implicaria dizer o que tudo é. Não se pode usar o verbo “ser” no infinitivo, e assim se atribui qualquer predicado ao sujeito. Até o nada seria um ente. Dessa forma, teríamos contradição. Então, o que São Tomás de Aquino pensou? O latim permitia isso, como permite para nós hoje. Imaginemos a seguinte sentença:

O gato é preto.

Então temos, segundo Aristóteles, sujeito e predicado. Na forma canônica aristotélica, qual é a classe gramatical que pode ocupar a função de sujeito? Substantivo. Só que: verbos podem ocupar a função de sujeito? Não, a não ser que sejam substantivados. Como, para o verbo “tricotar”, dissermos "o tricotar", como também na expressão “o raiar do Sol”. Então temos que proceder, nas línguas latinas, à substantivação do verbo. Como em: “o chover é muito intenso.” Veja o artigo antes do substantivo “chover”. Se tomamos um ser e pegamos na forma substantivada, teremos:

O ser.

O verbo ser, em latim, pode ser transformado em substantivo. Não falamos “o ser humano”, ou “o ser cachorro”, ou, com um pouco mais de boa-vontade, “o ser pincel”? Se é substantivo, ele pode ser adjetivado. Daí...

O ser humano.

Mas quando pensamos no ser humano, comparado com o ser cachorro, é um “ser” associado à existência? Posso deduzir da expressão “o ser cachorro” que “o cachorro existe”? Não é exatamente a mesma coisa. É, na verdade, uma condição especial que o humano tem que o cão não tem. Tanto que podemos usar “o ser do homem”, ou o “ser do cachorro”.

Então São Tomás de Aquino pensa: tomemos a substantivação do verbo ser. Se você é São Tomás de Aquino, e você quer provar a natureza de Deus, o que é muito ambicioso, e você parte dessa condição de substantivar o verbo ser, para determinar algo que é próprio, mas que vai acabar servindo para outros indivíduos. Qual dos 4 grandes princípios você atacaria para analisar, qual seria seu objeto de estudo? Substância, essência, matéria ou acidentes? Essência. Mas por quê? Vamos por eliminação. Acidentes: tem? Não. Elimine os acidentes. Substância? Ela é composta, então há problema. Matéria? Óbvio que não. Logo, só se pode mexer com a essência. Por quê? Além de tudo, a essência é o próprio princípio do quê? Veja o que vimos antes: princípio da realidade. Então, é princípio de definição. Então, se buscamos a definição de Deus, onde deve ser buscada? Na essência. Isso porque os outros não são princípios da definição. É a essência que determina algo. Vamos trabalhar com ela.

A questão interessante sobre a essência é: nossa essência é ilimitada? Não, senão confundir-se-ia com a essência do cachorro, por exemplo. Assim, haverá somente uma essência. Vamos pensar que: se neste caso a nossa essência é limitada, já com uma definição própria, quando definimos, o que estamos fazendo? Veja bem: ao dizer preto, estamos definindo o gato acima. Para que eu possa definir, então, em termos lógicos, o que precisamos ter? Um sujeito. Para eu aplicar uma restrição de predicado, eu tenho que ter um sujeito, senão, não tem como restringir. A nossa essência é restrita. Então, neste caso, nossa essência é complexa, senão, como seria restrita? Por que podemos restringir a liberdade? Porque a pressupomos existente. Então, só pode se restringir se houver algo para ser restrito. Daí então, neste caso, podemos falar em uma estrutura complexa. Assim, temos o objeto mais a restrição a ele aplicada, ou o objeto mais o agente restritor.

Então, quando falamos “o ser humano”, o que faz que isso seja diferente de “o ser cachorro” e “o ser de pincel”? O que está se dando ao ser? Forma. É isso que é o ser humano: um tipo de ser que tem a forma de humano. Humano é da ordem do limite, que limita o objeto que é ser. Então, temos que pressupor que o ser já existe. Então, neste caso, a essência seria uma estrutura complexa, de ser + forma. Por exemplo: temos a forma de homem, que é a própria forma racional. Dou a forma de homem ao ser, que é a essência de homem. Se dou a forma de cachorro ao ser, tenho a essência de cachorro.

Neste caso, para São Tomás de Aquino, se pensarmos assim, a essência não é uma simplicidade, como dizia Aristóteles. É uma complexidade de outros dois princípios: a forma, como forma de homem, que limita o ser, tornando o ser uma essência. Então a forma é o que São Tomás de Aquino chama de primeiro limite. Ao se ter o primeiro limite, tem-se a essência. A essência limite a matéria, nos entes materiais, daí a essência é chamada de segundo limite. Daí aplicamos o terceiro limite que são os acidentes. Eles limitam a substância tornando um indivíduo.

Agora vejam: se ele elimina a forma, o que temos? Um ser sem limites. Esse ser puro é cachorro? Não, porque é limitado pela forma. É homem? Não, pelo mesmo motivo. Então, São Tomás de Aquino chama, usando os jargões de Aristóteles, o ser sem nenhuma forma de ato puro de ser. Para entendermos o que é ato puro de ser, vamos ver: significa não tem limite de tipo nenhum. Qualquer outro tipo de ser tem limites, seja na forma, no ser, ou nos acidentes. Por que “ato”? A noção de ato é de Aristóteles. Tudo para Aristóteles, então também para São Tomás de Aquino, está em ato: a condição atual de determinado ente. Ou seja, o ente não é tudo o que é? É, então, a condição de ser o que é, neste instante, sob as mesmas circunstâncias. Vamos admitir que eu tenho uma semente de mangueira em minha mão. Posso dizer: isto é uma semente? Sim. Ninguém discordará disso. A questão é: mas se a Natureza seguir seu curso, a semente vai se tornar o que? Mangueira. Quando ela for mangueira, ela ainda é semente? Não, ela deixa de ser semente e “em ato” passa a ser mangueira. Atualmente ela é mangueira. Então, para Aristóteles e São Tomás de Aquino, tudo que existe está em ato. Só que os entes empíricos, por causa da matéria, têm condições de deixar de ser para se tornar outro ato; condição de vir a ser. Exemplo: hoje alguém daqui tem 20 anos. Mas tem condições de vir a ter 90? Sim. A essa condição que todo ente empírico tem em sua estrutura ontológica para vir a ser outro ato Aristóteles denomina potência, que é o termo que Nietzsche usa. O que é a potência? Ela não existe. É uma condição que todo ente material tem para se tornar outro ente. Nós, por exemplo, estamos determinados por várias potências, como a de estar sentado. Isso é ato, mas temos a potência de ficar em pé. Em outras palavras, enquanto sentados, temos condições de ficar em pé, por isso dizemos que temos a potência de ficar em pé. Então, só existem atos, mas no final das contas todo ato empírico tem em sua estrutura de tornar outra coisa. Só que os entes ideais não têm potência; um triângulo retângulo não pode deixar de sê-lo para se tornar obtusângulo.

Um exemplo da aplicação dessa tese de Aristóteles: ela é usada para solver o problema do art. 2º do Código Civil. Lembrem-se que há três correntes doutrinarias que tentam resolver o desafio. Se se deixar seguir o caminho natural, o nascituro nascerá com vida, então deve-se proteger o direito antes do nascimento.

O ato puro de ser não pode mudar, então, ele não tem potência. Ele sempre “é”. Então, dado que sabemos o que significa o ato puro de ser, já sabemos primeiro que ele não tem limite de tipo nenhum. Daí segue que o ato puro de ser é totalmente ilimitado. Como ele também é ato puro de ser, dado que ele é ilimitado, ele é ilimitado nos limites em que somos: ele não pode mudar, daí ele é imutável. Mas a mutabilidade se dá em que condições? Somente no tempo e no espaço. Então, dado que ele é imutável, ele pode ocupar espaço? Não, sua natureza nem está ligada ao espaço, então ele é a-espacial. Analogamente, ele não é delimitado pelo tempo, então é atemporal. Significa que nem o parâmetro de tempo é aplicável. É isso que se entende por eternidade. Mas o próprio termo eterno, no Cristianismo, é problemático: daí São Tomás de Aquino usa semperterno, termo latino que quer dizer: para além do tempo.

Dado que ele é ilimitado e imutável, ele é finito ou infinito? Não pode ser finito. Mas cuidado com a noção de infinitude. Os números naturais são infinitos? Sim, dimensionalmente. Posso ter um “zilhão” +1. Por mais que tenhamos a infinitude em três dimensões, ainda teremos o espaço. Daí as infinitudes matemáticas são dimensionais. Alguns astrofísicos admitem que o Universo é infinito, mas infinito espacialmente. A infinitude que estamos vendo aqui é adimensional, portanto não está restrita a nenhum obstáculo que a Matemática pode criar. Tanto que São Tomás de Aquino prefere dizer que não são infinitos, mas indefinidos. Então, se o ato puro de ser é imutável, ele é necessário ou contingente? Necessário. Absoluto ou relativo? Só pode ser absoluto porque a condição de relatividade é de comparação, e a comparação implica a existência de entes, mas já dissemos que o ato puro de ser não pode ser um ente. Então ele é incomensurável; não pode ser comparado a nada.

A próxima pergunta é: dado que ele é ilimitado, imutável, infinito, necessário e absoluto, quantos podem existir? Somente um, porque ele é único. Por quê? Se não fosse, ele já não seria absoluto. Neste caso, ele é simples, porque é ato puro de ser. Se tiver complexidade, tem limite. Nós somos complexos. Apesar de termos uma unidade, ela está na complexidade. Ele não; sua unidade está na condição de ser simples. Isso implica em sua unicidade, que está na condição simplicidade. Por fim, é perfeito ou imperfeito? Perfeito, mas não no sentido negativo de falha, mas é que, se não for perfeito, significa que ele tem acidentes. Então é perfeito em absoluto, e isso não implica ter que compará-lo a nada. Somente a perfeição relativa sujeita o objeto a ser comparado com outros.

Esse é o ato puro de ser.

Vamos voltar à questão: São Tomás de Aquino quer provar a natureza de Deus, e por outro lado quer superar Aristóteles porque sua noção de substância não é suficiente para explicar Deus. Tomás já resolveu um problema. Qual é o próximo passo? Provar que esse ato puro de ser é Deus. Até agora, tudo que foi feito foi ultrapassar a substância de Aristóteles. Vamos lá então.

Para São Tomás de Aquino, se queremos dizer que esse ato puro de ser é o Deus da Bíblia, temos que partir da Filosofia: isso é uma prova lógica racional. Por outro lado, Deus é aceito pela fé. Então, do outro lado, temos a Teologia Cristã. Então, o que a razão prova, a fé aceita. O que tem que ser feito, portanto, é provar que o Deus cristão é o próprio ato puro de ser. São Tomás usa Aristóteles. Ele usa um dos três grandes princípios de Aristóteles, desta vez, o de identidade: X só pode ser igual a ele mesmo. Não posso dizer que X é diferente de X. Todos somos idênticos a nós mesmos em determinados momentos e circunstâncias. Peguemos o exemplo:

O criador da Academia Brasileira de Letras é mulato.

Verdadeiro ou falso? Verdadeiro; trata-se de Machado de Assis. Posso dizer também que:

O autor de Dom Casmurro é mulato.

V ou F? V, porque também estamos falando de Machado. Então podemos concluir que:

O criador da ABL é o autor de Dom Casmurro.

O enunciado é verdadeiro. São expressões definidas. Aqui está o princípio de identidade. Claro que, evidentemente, o significado de “autor de Dom Casmurro” é um e “criador da ABL” é outro, apesar de se referir ao mesmo indivíduo.

O que São Tomás de Aquino tem que fazer? Encontrar a identidade! Ele tem que provar que: o que a razão prova, a fé mostra. Dado que temos esses nomes do ato puro de ser, devemos mostrar que são também nomes do Deus cristão.

Neste caso, o que ele busca é não a razão, mas a Bíblia. A Filosofia não fala da Deus; a Bíblia que fala. Ela diz que Deus é ilimitado:

“Eu sou alfa e ômega”.

A Bíblia é escrita para homens comuns. Alfa = começo de tudo, e ômega = fim de tudo. “Começo e fim de tudo” leva à noção de ilimitabilidade. Ainda está dito nas Escrituras:

“Deus não tem sombra de variação.”

Daí, pegamos a imutabilidade.

“Ainda que os céus passassem, a palavra de Deus jamais passará.”

A primeira frase também fala sobre a atemporalidade. Não temos princípio de dias nem fim de dias. O que significa, de acordo com São Tomás de Aquino, que Deus não pode ser posto no tempo. Se não tem principio nem fim de dias, então vem aí a noção de infinitude.

Seguindo: a Bíblia diz que Deus é necessário? Sim: a mesma afirmação: Deus não tem sombra de mudança.

“Eu sempre fui, sempre sou e sempre serei.”

É o que diz literalmente a Bíblia. Deus não pode ser de outro modo. 

“Eu sou o que sou...”

Não tem como se comparar a outra coisa.

“Eu sou incontrastável”.

O nome hebraico para isso é Yaweh.

Unicidade:

“Eu sou o único Deus”

...justamente porque é o que é.

Disso deriva sua simplicidade.

Todas têm correspondência. Daí temos que

Deus é o ato puro de ser.

É daí que ele vai contra os fideístas: razão e fé juntas.

Neste caso somos ou temos essência? Nós temos essência. Dado que Deus é ser absoluto, ele é ou tem essência? Ele É essência. A nossa foi por ele dada. Daí, ser = essência. Deus tem ou é sua própria essência? Ele é. Então ele também é sua própria existência.


Conceitos do dia:

Aula que vem: crítica dos empiristas.