Direito Civil

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Obrigações de dar coisa certa


Tópicos:

  1. Art. 233
  2. Art. 234
  3. Art. 235
  4. Art. 236
  5. Art. 237
  6. Art. 238
  7. Art. 239
  8. Art. 240
  9. Art. 241
  10. Art. 242

Vamos hoje examinar a primeira modalidade das obrigações: a de dar, de entregar uma prestação. Depois do período de Justiniano, o patrimônio do devedor é que responde pelo cumprimento de suas obrigações. Então, eventualmente, se João se compromete a vender o seu relógio, ele está prestando uma obrigação de dar, que é entregar aquele relógio ao Pedro, com quem combinou um preço, por exemplo, de R$ 2.000,00. Mas o Código Civil, dentro das modalidades obrigacionais de dar, já focaliza a obrigação de dar coisa certa. O que é? Uma obrigação individualizada, caracterizada, identificada. Exemplo: comprometo-me a vender meu Honda Civic para Leopoldo, com número de chassi, cor, especificações técnicas e ano definidos. Note que a coisa é certa, pois está identificada. Ou então o relógio Rolex, com ano de fabricação e identificação tais.

Art. 233:

As obrigações de dar coisa certa, como veremos no Código Civil, que teremos que usar de agora em diante em todas as aulas, estão previstas no art. 233, que é o artigo que introduz a parte especial do Código Civil e o Direito das Obrigações:

P A R T E      E S P E C I A L

LIVRO I
DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES

TÍTULO I
DAS MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES

CAPÍTULO I
DAS OBRIGAÇÕES DE DAR

Seção I
Das Obrigações de Dar Coisa Certa

        Art. 233. A obrigação de dar coisa certa abrange os acessórios dela embora não mencionados, salvo se o contrário resultar do título ou das circunstâncias do caso.

Então a primeira compreensão que temos que ter: o Código Civil, quando fala em título, a que ele está se referindo? A um negócio jurídico. O que é mesmo negócio jurídico? Um contrato de compra e venda que gera a obrigação de dar, de entregar o bem descrito, no caso, o automóvel. Já que estamos falando em automóveis, se fico de entregar o meu carro identificado de tal forma, evidentemente se eu tiver um aparelho de DVD, ou som de alta definição, ou outro objeto de valor como acessório, já aprendemos, pela parte geral do Código Civil, que o bem acessório segue o bem principal. Exemplo: se vendo as vacas de minha fazenda, por óbvio estou vendendo as que estão prenhas. Então, consequentemente, estou vendendo também os bezerros nascituros. Por isso que dizemos, como no art. 233, que trata das obrigações de dar coisa certa, que essa obrigação abrange seus acessórios, de acordo com o título. A primeira coisa que vemos é o título, o contrato.¹ É aquela compra e venda da fazenda com vacas prenhas, ou automóvel com seu DVD player, que segue o bem principal. Salvo, claro, se o vendedor especificar que não pretende vender o som. São as circunstâncias do negócio jurídico que determinarão se o acessório seguirá o principal.

Art. 234:

No artigo subseqüente, o 234, deparamos com a estrutura fundamental do tipo obrigacional. Por que dizemos isso? Porque se ocorre a situação de inadimplemento dessa obrigação, ou seja, a falta de cumprimento da obrigação, o artigo nos dirá quando a culpa do devedor se traduzirá em perdas e danos. Exemplo: eu contrato com Bruno a venda daquele Honda Civic; mas, em vez de guardá-lo em minha garagem, eu saio à noite para uma festa e deixo meu automóvel ao léu, aberto e chamativo. O carro é furtado, e a coisa (o objeto mediato da obrigação) se perde. Neste caso, me comprometi naquela compra e venda, naquele título da obrigação de dar coisa certa, mas não tive o cuidado, a conduta do pater bonus familias a diligência de manter aquele carro no estado de conservação que deveria. Isto implicará na culpa do devedor, que gerará o inadimplemento, o não-cumprimento da obrigação que resultará em perdas e danos. Por que perdas e danos? Porque não temos mais a figura da manus injectio, que havia no Direito Romano. Hoje, a falta de cumprimento da obrigação vai caracterizar as perdas e danos, e acionar-se-á o patrimônio do devedor, não mais a própria pessoa do devedor, que pagaria com seu corpo.

Então, vamos à praticidade, o que está na lei. Art. 234:

        Art. 234. Se, no caso do artigo antecedente, a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da tradição, ou pendente a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para ambas as partes; se a perda resultar de culpa do devedor, responderá este pelo equivalente e mais perdas e danos.

Temos, portanto, a hipótese de não-culpa do devedor em que a coisa se perde antes da transferência. Quando o Código Civil fala em “antes da tradição”, prestem atenção para o seguinte: quando estudarmos o direito de propriedade, veremos que a tradição para bens móveis se dá mediante a simples entrega. Exemplo: vendi o carro, então simplesmente o entrego ao comprador. Para os bens imóveis, a exemplo do direito alemão, a transferência só se dá mediante transcrição no registro de imóveis. Exemplo: vendo meu apartamento para Caio. Mas, para Caio ser proprietário absoluto daquele bem, o registro é necessário. ² Diferentemente do disposto no Código Civil Francês.

Olhem também que o artigo fala em condição pendente, ou condição suspensiva. Exemplo clássico de Pontes de Miranda: “vendo determinada quantidade de soja se o navio cargueiro chegar ao Porto de Santos até o final de agosto.” Evento futuro e incerto, que poderá ou não ocorrer. Se houver o implemento daquela condição, ou seja, o navio chegar dentro do tempo estimado com a mercadoria, o negócio está efetivado, e haverá eficácia, com efeito retro-operante.

Final do artigo: é o que dizia o Direito Romano: res perit domino, que significa “a coisa perece para o dono.” Exemplo: me obrigo a vender meu automóvel para Rafaela, mas, antes da tradição, ocorre um maremoto, que invadiu a garagem, e danificou todo o carro. O que acontece? Não há culpa, pois o devedor tomou todas as diligências cabíveis ao caso, e a coisa se perdeu. O dono, portanto, terá o prejuízo. Ainda sobre o art. 234, segunda parte: "se a perda resultar de culpa do devedor, responderá este pelo equivalente e mais perdas e danos." Ou seja, a exemplo da situação já imaginada, em que vendi o carro mas o deixei exposto na festa, como a culpa é minha, então eu responderei pelas perdas e danos. O sujeito já pagou, então, de acordo com o art. 333 do Código de Processo Civil, o ônus de provar que eu deixei o carro naquela condição será dele. Isso gerará perdas e danos, desdobrada em danos emergentes e lucros cessantes.
 

O art. 235 não fala em perda da coisa, mas em deterioração. Então, vejamos o dispositivo:

        Art. 235. Deteriorada a coisa, não sendo o devedor culpado, poderá o credor resolver a obrigação, ou aceitar a coisa, abatido de seu preço o valor que perdeu.

O que significa “resolver a obrigação”? O mesmo que dizer “não quero mais.” Deixei o automóvel corretamente estacionado no estacionamento da boate, mas alguns vândalos o riscaram. Ficou deteriorada a coisa, mas não tive culpa. Fiz até contrato de depósito do carro com o estabelecimento, por deixá-lo lá onerosamente. Neste caso, o credor da obrigação poderá não mais querer a coisa, ou obtê-la com o prejuízo abatido.

 

O art. 236 diz, quando fala sobre a coisa, que:

        Art. 236. Sendo culpado o devedor, poderá o credor exigir o equivalente, ou aceitar a coisa no estado em que se acha, com direito a reclamar, em um ou em outro caso, indenização das perdas e danos.

Então o Código, nesse artigo, fala sobre a culpa do devedor. O automóvel foi jogado à noite, ou o relógio foi deixado exposto. O credor pode aceitar e reclamar. Por que isso? Porque, quando há culpa do devedor, ele terá que pagar, em razão daquele ato desidioso, o valor daquele bem equivalente, mais as perdas e danos.

 

Art. 237:

        Art. 237. Até a tradição pertence ao devedor a coisa, com os seus melhoramentos e acrescidos, pelos quais poderá exigir aumento no preço; se o credor não anuir, poderá o devedor resolver a obrigação.

        [...]

...com seus melhoramentos acrescidos. É o que os romanos chamavam de “cômodos”. É dizer, se fiquei de vender a minha fazenda para Talita, e o que acontece é o seguinte: a estrada que leva à fazenda está um pouco ruim. O GDF passou por lá e reparou a pavimentação. Significa então que o imóvel foi valorizado. Se a transferência ainda não tiver sido feita, eu poderei exigir um aumento pela prestação. Se o credor (Talita) não anuir, não concordar, poderei eu, o devedor, resolver a obrigação. É como dizer: “não quero mais vender para ti.”

Parágrafo único:

        Parágrafo único. Os frutos percebidos são do devedor, cabendo ao credor os pendentes.

Vendi minha fazenda, que tinha uma plantação de maçã. Ainda estamos dentro da tradição. Essa plantação já foi colhida. Então posso ficar com aquelas maçãs que foram colhidas do pomar (frutos percebidos). Se, por outro lado, os frutos são percipiendos ou pendentes, então eles serão do comprador.
 

Art. 238

Neste artigo, não temos transferência da coisa, mas empréstimo, como de um carro. Então vem um princípio: “a coisa interessa ao dono.” Caso um desastre natural danifique o carro que emprestei a alguém, enquanto a pessoa ainda estava na posse do bem, ela, que é a devedora, não terá culpa. O mesmo se ela tivesse trafegando, com o meu carro, por uma região perigosa e o carro fosse atingido por balas, numa troca de tiros entre bandidos e policiais. Neste caso, até seria possível alegar a culpa do Estado pela insegurança, mas não interessa para a obrigação, quando muito, o Estado poderia ser acionado numa ação de regresso; o que importa aqui é a prestação direita entre tomador do empréstimo e o dono do bem.

        Art. 238. Se a obrigação for de restituir coisa certa, e esta, sem culpa do devedor, se perder antes da tradição, sofrerá o credor a perda, e a obrigação se resolverá, ressalvados os seus direitos até o dia da perda.

“Ressalvados os seus direitos até o dia da perda”: imagine que alugo meu carro por 30 dias para Francisquinho, pactuando com ele um valor de R$ 4,00 ao dia. Ao final do 27º dia, ele, dirigindo corretamente, é gravemente abalroado por um caminhão, que danifica por completo o carro, inclusive ferindo-o. A coisa se perdeu sem culpa de Francisquinho, mas eu, o credor da obrigação de restituição da coisa (carro), tenho meus direitos ressalvados até o dia da perda, ou seja, deverei receber o valor do aluguel pelos 27 dias. Quer dizer que, até o dia da perda, a coisa parece para o dono: “res perit domino”. ³
 

Art. 239:

        Art. 239. Se a coisa se perder por culpa do devedor, responderá este pelo equivalente, mais perdas e danos.

Este artigo é simples. Exemplo: o automóvel alugado tem que ser restituído, mas Francisquinho, para quem aluguei meu automóvel, quando viajou com ele, dirigiu a 180 km/h, e veio a bater, gerando multas e danos. Ele, que é o tomador do empréstimo, deverá responder, pois agiu com culpa. Ele responderá pelo equivalente ao valor do automóvel mais as perdas e danos. A culpa enseja o pagamento até o restabelecimento do status quo ante, ou restituição ao estado anterior.
 

Art. 240:

        Art. 240. Se a coisa restituível se deteriorar sem culpa do devedor, recebê-la-á o credor, tal qual se ache, sem direito a indenização; se por culpa do devedor, observar-se-á o disposto no art. 239.

Se deteriorou sem culpa, como vimos, o credor receberá a coisa no estado em que se encontra, mas, em caso de culpa, devemos voltar ao art. 239. O que diz ele? Pagamento de perdas e danos em caso de culpa.
 

Art. 241:


        Art. 241. Se, no caso do art. 238, sobrevier melhoramento ou acréscimo à coisa, sem despesa ou trabalho do devedor, lucrará o credor, desobrigado de indenização.

Vejamos um exemplo prático. Alguei minha casa para Clarisse passar uma temporada. E aconteceu de passar o DNIT na estrada que dá acesso à minha casa e reformar a via, valorizando todos os imóveis da área. Contrariu sensu, se Clarisse tiver empregado trabalho e teve de desembolsar dinheiro para qualquer reparo, deverá haver o reembolso em favor dela.
 

E o último artigo das obrigações de dar coisa certa. Art. 242:


        Art. 242. Se para o melhoramento, ou aumento, empregou o devedor trabalho ou dispêndio, o caso se regulará pelas normas deste Código atinentes às benfeitorias realizadas pelo possuidor de boa-fé ou de má-fé.

Alguns autores nem dão a devida importância ao Código de Processo Civil, mas deveriam, já que é a ferramenta do advogado. Ele tem que saber o ferramental a ser usado.

Nos artigos 1219 e 1220 do Código Civil encontram-se os procedimentos dos possuidores de boa-fé ou má-fé. Se o locatário da minha casa de praia substitui algum bem acessório, usaremos o art. 1220 para regular o procedimento para agir em relação a ele. 4

Direito de retenção: se o possuidor fez benfeitorias úteis ou necessárias, ele poderá não restituir a não ser que seja reembolsado por elas. Quanto às voluptuárias, ele terá direito a levantá-las, desde que esteja de boa-fé (art. 1219.)

Parágrafo único:

        Parágrafo único. Quanto aos frutos percebidos, observar-se-á, do mesmo modo, o disposto neste Código, acerca do possuidor de boa-fé ou de má-fé.

Quer dizer, os frutos foram percebidos, mas à força ou pela natureza? Veja este exemplo: com pressa, Luarindo vendeu sua fazenda para Luana, “de porteira fechada” (com tudo que estava dentro, plantações, frutos por colher, vacas prenhes, fontes artificiais para o enfeite, etc.) Mas Luarindo queria para si algumas cabeças de gado, mas não pôde carregá-las pois são grandes, e também queria uma parcela das laranjas por colher, mas não poderia esperar até o dia do amadurecimento. Então ele, muito sagaz, chamou veterinários durante a calada da noite para fazer a cesariana das vacas, para que ele obtivesse os bezerros e os colocasse em seu caminhão para desaparecer. Também colheu prematuramente as laranjas, verdes, e as armazenou em sacos, colocou em outro caminhão e partiu. O que fazer? Neste caso, caberá ação contra quem fez mau uso (cesária de vacas e colheita de laranjas verdes). 5

Veja, por fim, este princípio de Ulpiano:

Honeste vivere, sunum cuique tribuire, neminem caederae. Viver honestamente, dar a cada um o que é seu, não prejudicar a ninguém.

No início da próxima aula vamos examinar as execuções de dar coisa certa. Depois examinaremos as obrigações de dar coisa incerta. Recomendação do professor: leiam o Código Civil e também a doutrina. Fazendo isso, todos terão SS.


  1. Aqui o professor nos apresentou um termo estrangeiro, que não consegui copiar.
  2. Neste momento o professor usou o a expressão latina prior in tempore, potior in jure.
  3. Este exemplo foi criado por mim. Por isso ele é problemático: devo eu receber pelo aluguel do 27º dia ou não? Deveria valer até o dia 26? Por isso pus “ao final do 27º dia”.
  4. Entre este parágrafo e o seguinte o professor falou sobre os termos dolus bonus e dolus malus: Dolus bonus: se estou vendendo um automóvel e digo que “voa, de tão rápido”, tenho dolus bônus, pois estou de boa-fé. Se, no entanto, digo que ele possui foguetes, estou de má-fé, então estou praticando o dolus malus.
  5. Terminando os artigos sobre obrigação de dar coisa certa, o professor nos instruiu a ver o art. 421 do Código Civil e o § 242 do BGB, que contém o conceito de Treu und Glauben. <-- obrigado Helena pelo olho treinado! Eu havia grafado de maneira errada a última palavra.

Expressões do dia:

  1. Pater bonus familias: bom pai de família, o sujeito que se presume que agirá corretamente.
  2. Prior in tempore, potior in jure: primeiro no tempo, mais forte ou mais poderoso no Direito.
  3. Res perit domino: a coisa perece para o dono.
  4. Status quo ante: estado anterior ao fato. Já conhecemos essa expressão desde Direito Civil II.
  5. Dolus bonus e dolus malus: volte à nota de rodapé 4, logo acima.