Tópicos:
Vamos
hoje examinar a primeira
modalidade das obrigações: a de dar, de entregar uma prestação. Depois
do
período de Justiniano, o patrimônio do devedor é que responde pelo
cumprimento
de suas obrigações. Então, eventualmente, se João se compromete a
vender o seu
relógio, ele está prestando uma obrigação de dar, que é entregar aquele
relógio
ao Pedro, com quem combinou um preço, por exemplo, de R$ 2.000,00. Mas
o Código
Civil, dentro das modalidades obrigacionais de dar, já focaliza a
obrigação de
dar coisa certa. O que é? Uma obrigação individualizada,
caracterizada, identificada. Exemplo: comprometo-me a vender
meu Honda Civic
para Leopoldo, com número de chassi, cor, especificações técnicas e ano
definidos. Note que a coisa é certa, pois está identificada. Ou então o
relógio
Rolex, com ano de fabricação e identificação tais.
As obrigações de dar coisa certa, como veremos no Código Civil, que teremos que usar de agora em diante em todas as aulas, estão previstas no art. 233, que é o artigo que introduz a parte especial do Código Civil e o Direito das Obrigações:
P A R T
E E S P E C I A L
LIVRO I DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES TÍTULO I DAS MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES CAPÍTULO I DAS OBRIGAÇÕES DE DAR Seção I Das Obrigações de Dar Coisa Certa Art. 233. A obrigação de dar coisa certa abrange os acessórios dela embora não mencionados, salvo se o contrário resultar do título ou das circunstâncias do caso. |
Então
a primeira compreensão que
temos que ter: o Código Civil, quando fala em título, a que ele está se
referindo? A um negócio jurídico. O que é mesmo negócio jurídico? Um
contrato
de compra e venda que gera a obrigação de dar, de entregar o bem
descrito, no
caso, o automóvel. Já que estamos falando em automóveis, se fico de
entregar o
meu carro identificado de tal forma, evidentemente se eu tiver um
aparelho de DVD,
ou som de alta definição, ou outro objeto de valor como acessório, já
aprendemos,
pela parte geral do Código Civil, que o bem acessório segue o bem
principal.
Exemplo: se vendo as vacas de minha fazenda, por óbvio estou vendendo
as que
estão prenhas. Então, consequentemente, estou vendendo também os
bezerros
nascituros. Por isso que dizemos, como no art. 233, que trata das
obrigações de
dar coisa certa, que essa obrigação abrange seus acessórios, de acordo
com o
título. A primeira coisa que vemos é o título, o contrato.¹ É aquela
compra e
venda da fazenda com vacas prenhas, ou automóvel com seu DVD player,
que segue
o bem principal. Salvo, claro, se o vendedor especificar que não
pretende
vender o som. São as circunstâncias do negócio jurídico que
determinarão se o
acessório seguirá o principal.
No artigo subseqüente, o 234, deparamos com a estrutura fundamental do tipo obrigacional. Por que dizemos isso? Porque se ocorre a situação de inadimplemento dessa obrigação, ou seja, a falta de cumprimento da obrigação, o artigo nos dirá quando a culpa do devedor se traduzirá em perdas e danos. Exemplo: eu contrato com Bruno a venda daquele Honda Civic; mas, em vez de guardá-lo em minha garagem, eu saio à noite para uma festa e deixo meu automóvel ao léu, aberto e chamativo. O carro é furtado, e a coisa (o objeto mediato da obrigação) se perde. Neste caso, me comprometi naquela compra e venda, naquele título da obrigação de dar coisa certa, mas não tive o cuidado, a conduta do pater bonus familias a diligência de manter aquele carro no estado de conservação que deveria. Isto implicará na culpa do devedor, que gerará o inadimplemento, o não-cumprimento da obrigação que resultará em perdas e danos. Por que perdas e danos? Porque não temos mais a figura da manus injectio, que havia no Direito Romano. Hoje, a falta de cumprimento da obrigação vai caracterizar as perdas e danos, e acionar-se-á o patrimônio do devedor, não mais a própria pessoa do devedor, que pagaria com seu corpo.
Então, vamos à praticidade, o que está na lei. Art. 234:
Art. 234. Se, no caso do artigo antecedente, a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da tradição, ou pendente a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para ambas as partes; se a perda resultar de culpa do devedor, responderá este pelo equivalente e mais perdas e danos. |
Temos, portanto, a hipótese de não-culpa do devedor em que a coisa se perde antes da transferência. Quando o Código Civil fala em “antes da tradição”, prestem atenção para o seguinte: quando estudarmos o direito de propriedade, veremos que a tradição para bens móveis se dá mediante a simples entrega. Exemplo: vendi o carro, então simplesmente o entrego ao comprador. Para os bens imóveis, a exemplo do direito alemão, a transferência só se dá mediante transcrição no registro de imóveis. Exemplo: vendo meu apartamento para Caio. Mas, para Caio ser proprietário absoluto daquele bem, o registro é necessário. ² Diferentemente do disposto no Código Civil Francês.
Olhem também que o artigo fala em condição pendente, ou condição suspensiva. Exemplo clássico de Pontes de Miranda: “vendo determinada quantidade de soja se o navio cargueiro chegar ao Porto de Santos até o final de agosto.” Evento futuro e incerto, que poderá ou não ocorrer. Se houver o implemento daquela condição, ou seja, o navio chegar dentro do tempo estimado com a mercadoria, o negócio está efetivado, e haverá eficácia, com efeito retro-operante.
Final
do artigo: é o que dizia o Direito
Romano: res perit domino, que
significa “a coisa perece para o dono.” Exemplo: me obrigo a vender meu
automóvel
para Rafaela, mas, antes da tradição, ocorre um maremoto, que invadiu a
garagem, e danificou todo o carro. O que acontece? Não há culpa, pois o
devedor
tomou todas as diligências cabíveis ao caso, e a coisa se perdeu. O
dono,
portanto, terá o prejuízo. Ainda sobre o art. 234, segunda parte: "se a perda resultar de culpa do
devedor, responderá este pelo equivalente e mais perdas e danos."
Ou
seja, a exemplo da situação já imaginada, em que vendi o carro mas o
deixei exposto
na festa, como a culpa é minha, então eu responderei pelas perdas e
danos. O
sujeito já pagou, então, de acordo com o art. 333 do Código de Processo
Civil,
o ônus de provar que eu deixei o carro naquela condição será dele. Isso
gerará
perdas e danos, desdobrada em danos emergentes e lucros cessantes.
O art. 235 não fala em perda da coisa, mas em deterioração. Então, vejamos o dispositivo:
Art. 235. Deteriorada a coisa, não sendo o devedor culpado, poderá o credor resolver a obrigação, ou aceitar a coisa, abatido de seu preço o valor que perdeu. |
O que significa “resolver a obrigação”? O mesmo que dizer “não quero mais.” Deixei o automóvel corretamente estacionado no estacionamento da boate, mas alguns vândalos o riscaram. Ficou deteriorada a coisa, mas não tive culpa. Fiz até contrato de depósito do carro com o estabelecimento, por deixá-lo lá onerosamente. Neste caso, o credor da obrigação poderá não mais querer a coisa, ou obtê-la com o prejuízo abatido.
O art. 236 diz, quando fala sobre a coisa, que:
Art. 236. Sendo culpado o devedor, poderá o credor exigir o equivalente, ou aceitar a coisa no estado em que se acha, com direito a reclamar, em um ou em outro caso, indenização das perdas e danos. |
Então o Código, nesse artigo, fala sobre a culpa do devedor. O automóvel foi jogado à noite, ou o relógio foi deixado exposto. O credor pode aceitar e reclamar. Por que isso? Porque, quando há culpa do devedor, ele terá que pagar, em razão daquele ato desidioso, o valor daquele bem equivalente, mais as perdas e danos.
Art. 237.
Até a tradição pertence ao devedor a coisa, com os seus melhoramentos e
acrescidos, pelos quais poderá exigir aumento no preço; se o credor não
anuir, poderá o devedor resolver a obrigação. [...] |
...com seus melhoramentos acrescidos. É o que os romanos chamavam de “cômodos”. É dizer, se fiquei de vender a minha fazenda para Talita, e o que acontece é o seguinte: a estrada que leva à fazenda está um pouco ruim. O GDF passou por lá e reparou a pavimentação. Significa então que o imóvel foi valorizado. Se a transferência ainda não tiver sido feita, eu poderei exigir um aumento pela prestação. Se o credor (Talita) não anuir, não concordar, poderei eu, o devedor, resolver a obrigação. É como dizer: “não quero mais vender para ti.”
Parágrafo único:
Parágrafo único. Os frutos percebidos são do devedor, cabendo ao credor os pendentes. |
Vendi
minha fazenda, que tinha
uma plantação de maçã. Ainda estamos dentro da tradição. Essa plantação
já foi
colhida. Então posso ficar com aquelas maçãs que foram colhidas do
pomar
(frutos percebidos). Se, por outro lado, os frutos são percipiendos
ou pendentes, então eles serão do comprador.
Neste artigo, não temos transferência da coisa, mas empréstimo, como de um carro. Então vem um princípio: “a coisa interessa ao dono.” Caso um desastre natural danifique o carro que emprestei a alguém, enquanto a pessoa ainda estava na posse do bem, ela, que é a devedora, não terá culpa. O mesmo se ela tivesse trafegando, com o meu carro, por uma região perigosa e o carro fosse atingido por balas, numa troca de tiros entre bandidos e policiais. Neste caso, até seria possível alegar a culpa do Estado pela insegurança, mas não interessa para a obrigação, quando muito, o Estado poderia ser acionado numa ação de regresso; o que importa aqui é a prestação direita entre tomador do empréstimo e o dono do bem.
Art. 238. Se a obrigação for de restituir coisa certa, e esta, sem culpa do devedor, se perder antes da tradição, sofrerá o credor a perda, e a obrigação se resolverá, ressalvados os seus direitos até o dia da perda. |
“Ressalvados
os seus direitos até
o dia da perda”: imagine que alugo meu carro por 30 dias para
Francisquinho,
pactuando com ele um valor de R$ 4,00 ao dia. Ao final do 27º dia, ele,
dirigindo corretamente, é gravemente abalroado por um caminhão, que
danifica
por completo o carro, inclusive ferindo-o. A coisa se perdeu sem culpa
de
Francisquinho, mas eu, o credor da obrigação de restituição da coisa
(carro),
tenho meus direitos ressalvados até o dia da perda, ou seja, deverei
receber o
valor do aluguel pelos 27 dias. Quer dizer que, até o dia da perda, a
coisa
parece para o dono: “res perit domino”.
³
Art. 239. Se a coisa se perder por culpa do devedor, responderá este pelo equivalente, mais perdas e danos. |
Este
artigo é simples. Exemplo: o
automóvel alugado tem que ser restituído, mas Francisquinho, para quem
aluguei
meu automóvel, quando viajou com ele, dirigiu a 180 km/h, e veio a
bater, gerando
multas e danos. Ele, que é o tomador do empréstimo, deverá responder,
pois agiu
com culpa. Ele responderá pelo equivalente ao valor do automóvel mais
as perdas
e danos. A culpa enseja o pagamento até o restabelecimento do status quo ante, ou restituição ao
estado anterior.
Art. 240. Se a coisa restituível se deteriorar sem culpa do devedor, recebê-la-á o credor, tal qual se ache, sem direito a indenização; se por culpa do devedor, observar-se-á o disposto no art. 239. |
Se
deteriorou sem culpa, como
vimos, o credor receberá a coisa no estado em que se encontra, mas, em
caso de
culpa, devemos voltar ao art. 239. O que diz ele? Pagamento de perdas e
danos
em caso de culpa.
Art. 241. Se, no caso do art. 238, sobrevier melhoramento ou acréscimo à coisa, sem despesa ou trabalho do devedor, lucrará o credor, desobrigado de indenização. |
Vejamos
um exemplo prático. Alguei
minha casa para Clarisse passar uma temporada. E aconteceu de passar o
DNIT na
estrada que dá acesso à minha casa e reformar a via, valorizando todos
os imóveis
da área. Contrariu sensu, se
Clarisse
tiver empregado trabalho e teve de desembolsar dinheiro para qualquer
reparo,
deverá haver o reembolso em favor dela.
E o último artigo das obrigações de dar coisa certa. Art. 242:
Art. 242. Se para o melhoramento, ou aumento, empregou o devedor trabalho ou dispêndio, o caso se regulará pelas normas deste Código atinentes às benfeitorias realizadas pelo possuidor de boa-fé ou de má-fé. |
Alguns autores nem dão a devida importância ao Código de Processo Civil, mas deveriam, já que é a ferramenta do advogado. Ele tem que saber o ferramental a ser usado.
Nos artigos 1219 e 1220 do Código Civil encontram-se os procedimentos dos possuidores de boa-fé ou má-fé. Se o locatário da minha casa de praia substitui algum bem acessório, usaremos o art. 1220 para regular o procedimento para agir em relação a ele. 4
Direito de retenção: se o possuidor fez benfeitorias úteis ou necessárias, ele poderá não restituir a não ser que seja reembolsado por elas. Quanto às voluptuárias, ele terá direito a levantá-las, desde que esteja de boa-fé (art. 1219.)
Parágrafo único:
Parágrafo único. Quanto aos frutos percebidos, observar-se-á, do mesmo modo, o disposto neste Código, acerca do possuidor de boa-fé ou de má-fé. |
Quer dizer, os frutos foram percebidos, mas à força ou pela natureza? Veja este exemplo: com pressa, Luarindo vendeu sua fazenda para Luana, “de porteira fechada” (com tudo que estava dentro, plantações, frutos por colher, vacas prenhes, fontes artificiais para o enfeite, etc.) Mas Luarindo queria para si algumas cabeças de gado, mas não pôde carregá-las pois são grandes, e também queria uma parcela das laranjas por colher, mas não poderia esperar até o dia do amadurecimento. Então ele, muito sagaz, chamou veterinários durante a calada da noite para fazer a cesariana das vacas, para que ele obtivesse os bezerros e os colocasse em seu caminhão para desaparecer. Também colheu prematuramente as laranjas, verdes, e as armazenou em sacos, colocou em outro caminhão e partiu. O que fazer? Neste caso, caberá ação contra quem fez mau uso (cesária de vacas e colheita de laranjas verdes). 5
Veja, por fim, este princípio de Ulpiano:
Honeste vivere, sunum cuique tribuire, neminem caederae. Viver honestamente, dar a cada um o que é seu, não prejudicar a ninguém.
No início da próxima aula vamos examinar as execuções de dar coisa certa. Depois examinaremos as obrigações de dar coisa incerta. Recomendação do professor: leiam o Código Civil e também a doutrina. Fazendo isso, todos terão SS.