Direito Civil

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Lugar do pagamento


Vamos terminar hoje a teoria geral do pagamento com a Seção V do capítulo em que o Código Civil trata do pagamento, que é a parte de tempo do pagamento. Como diz o art. 331...

Seção V
Do Tempo do Pagamento

        Art. 331. Salvo disposição legal em contrário, não tendo sido ajustada época para o pagamento, pode o credor exigi-lo imediatamente.

Quer dizer: há casos em que legalmente o pagamento deve ser feito em ou até determinada data, como o pagamento de salários, que deve ser feito até o quinto dia do mês subseqüente. O empregador tem essa obrigação por lei.

O fideicomisso, figura que estudaremos dentro do Direito das Sucessões, também tem suas próprias disposições legais para pagamento.

Pelo art. 331 do Código Civil, o pagamento deve ser exigido imediatamente. Exemplo: Vânia me deve um carro. Ela tem que me entregá-lo, se nada se ajustou em contrário, da forma como ficou no título contratual. Então ela paga o carro no dia 08/10/09 aqui no prédio do CEUB (há que se definir o lugar e tempo do pagamento). O Código faz alusão ao art. 397, que vamos examinar depois, mas vamos fazer um pequeno aperitivo:

        Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor.

O que é o termo? É o final do prazo! Já sabemos disso desde que estudamos os fatos jurídicos.

Voltemos à parte do Código que trata da condição, do termo e do encargo:

CAPÍTULO III
Da Condição, do Termo e do Encargo

        Art. 121. Considera-se condição a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto.

        [...]

        Art. 131. O termo inicial suspende o exercício, mas não a aquisição do direito.

E aqui, no art. 131, vemos que o termo inicial suspende o exercício, mas não a obtenção do direito. O termo é, portanto, a época do pagamento. Qual é o termo? O prazo final. Então Vânia tem que entregar o carro até o dia 8 de outubro de 2009 às 09:50. Esse é o vencimento da obrigação.

Voltando ao art. 331: não sendo ajustado de outra forma à época do pagamento, o credor poderá exigir imediatamente. Esta parte do artigo fala por si mesma.

Art. 332:

        Art. 332. As obrigações condicionais cumprem-se na data do implemento da condição, cabendo ao credor a prova de que deste teve ciência o devedor.

Primeira parte: estudamos a condição suspensiva e a resolutiva. O que é o implemento da condição? É o fato que desencadeia sua conseqüência, como o famoso navio de Pontes de Miranda chegar ao Porto de Santos. No próximo semestre, veremos o contrato de seguro em espécie. O contrato de seguro é um contrato futuro e incerto. Por quê? Ele está dentro de uma condição suspensiva. A companhia de seguro só indenizará pelo sinistro se o automóvel é abalroado, o que é um evento futuro e incerto, pois pode ou não acontecer. É um contrato condicional, portanto. Agora releia o artigo. Quando houver o abalroamento do carro, a companhia de seguro tem que pagar. É o implemento da condição, o tempo do pagamento.

Segunda parte: como é que o segurado dará ciência ao seguro? Com boletim de ocorrência.

Outro exemplo: seguro de vida. Ele também é um seguro com uma condição, porém não é incerta. Certus an, incertus quando: “certo que acontecerá, só não se sabe quando” 1. Será certa em um dia final. É o que os romanos falavam. Nisso, implementar-se-á a condição. Como já sabemos, a morte é evento futuro e certo, só não se sabe a data.  

E mais um exemplo: João se obrigou a me dar 100 mil sacas de soja, mas somente se o navio que as transporta chegar ao Brasil dentro de 15 dias contados a partir de hoje. É o exemplo de Pontes de Miranda, adaptado. É uma condição suspensiva, que só poderá ser cobrada se o navio satisfizer a condição.

Resumindo: o pagamento deve ser feito imediatamente. Essa é a chamada dies interpellat pro homine. Bom livro de Direito Romano, que nos ensinará bastante do latim, é o do ex-ministro Moreira Alves. Quer dizer: o dia interpelará o homem. Significa que, se você possui uma nota promissória em consta que eu firmei com você a obrigação de pagá-lo no dia 1º de dezembro, você terá que aguardar o decurso do prazo; quando chegar, o dia interpelará por você. A idéia do brocardo é algo como “você não precisa cobrar, o próprio dia fará o papel de cobrador, quando ele chegar”. Depois do vencimento, o devedor já estará em mora. Veremos em aulas futuras a mora ex personae. Mas temos que saber que, se a obrigação é condicional, portanto depende de um fato futuro e incerto, somente com o implemento da condição, ou seja, somente quando ocorrer aquele fato é que se pode exigir o pagamento. Em síntese apertada é isso o que temos a entender dos artigos 331 e 332.

Agora temos um artiguinho que temos que estar bem atentos, com três hipóteses em que o credor estará autorizado a exigir o cumprimento da obrigação antes do vencimento, hipóteses essas que temos que entender muito bem. Art. 333:

        Art. 333. Ao credor assistirá o direito de cobrar a dívida antes de vencido o prazo estipulado no contrato ou marcado neste Código:

        [...]

Comecemos pelo caput: “ao credor assistirá o direito de cobrar a dívida antes de vencido o prazo estipulado no contrato ou marcado neste Código.” Mas como que o credor pode cobrar antes do vencimento? Quid juris? Como no Direito, qual o direito? Veremos as hipóteses em que isso é possível. A primeira é: 

        I - no caso de falência do devedor, ou de concurso de credores;

Imaginem um devedor e seu patrimônio. Se ele for comerciante, ele pode ir à falência se o seu patrimônio, ou melhor, seu ativo for menor que seu passivo. Esse comerciante tem um patrimônio de R$ 3 bilhões, mas deve R$ 4 bilhões. Significa que seu ativo não cobre seu passivo, então o Código Civil fala em falência. Quais as hipóteses? Veremos no futuro. Mas, numa sociedade simples, como numa sociedade de advogados, ou uma numa microempresa, ou numa sociedade por quotas de responsabilidade limitada também pode falir, ou a própria sociedade anônima, a S.A. como são as companhias de seguros. Isso tudo é falência. Insolvência, como já sabemos, associa-se ao devedor civil; cada indivíduo, em outras palavras. Nós, devedores civis, não vamos à falência. Se Rodrigo tem R$ 3 bilhões, mas é muito pródigo e contraiu dívida de R$ 4 bilhões, ele está insolvente. Então, o que diz o Código, no inciso I do art. 333? Que, no caso, assistirá ao credor o direito de cobrar antes de vencido o prazo. O que acontece? Mais um fenômeno do Direito Romano: a parêmia, o adágio, o brocardo muito secular: pars conditio creditorium, que, como já vimos nas primeiras aulas, “as partes têm igualdade na condição do crédito.” Aqui vamos apurar os credores quirografários, que são os credores comuns. O empregado da empresa que foi a falência é credor privilegiado; ele tem a primazia, a preferência. São chamados créditos privilegiados. Penhor, hipoteca, anticrese também, que são direitos reais. O credor que tem uma letra de câmbio, o que tem uma nota promissória e o que tem um contrato são credores quirografários, que é o credor comum, sem prioridade.

Depois disso, far-se-á a habilitação dos credores na massa falida do insolvente.

Inciso II:

        II - se os bens, hipotecados ou empenhados, forem penhorados em execução por outro credor;

É o que temos no art. 1422:

        Art. 1422. O credor hipotecário e o pignoratício têm o direito de excutir a coisa hipotecada ou empenhada, e preferir, no pagamento, a outros credores, observada, quanto à hipoteca, a prioridade no registro.

Emprestei dinheiro a Valdomira, que é arrozeira. Como garantia, ela me dá cem sacas de arroz. Minha situação financeira não está muito boa, então podemos dizer que a parte interessante do meu patrimônio é exatamente o arroz confiado a mim pela Valdomira. Mas eu, homem de negócios, havia feito, antes, um contrato com João, em que fiquei de pagá-lo uma gorda quantia de dinheiro. Chega o dia do vencimento da minha obrigação para com João, e ele me executa. Não tenho muito o que dá-lo, exceto as sacas de arroz de Valdomira. João põe o arroz em penhora, deixando-o sub judice. Significa que minha garantia do crédito que tinha para com Valdomira caiu. Nisso, poderei exigir, dela, o pagamento antecipado.

Lembrem-se: prior in tempori, potior in jure.

Mas veja: se a dívida que estava sendo garantida por um crédito hipotecário ou pignoratício foi objeto de execução, o que acontece? Os demais credores ficarão na mão. Então o que diz o Código? Que há o vencimento antecipado da dívida. Então os credores se habilitam no crédito do devedor para procurar sua parte como credores. Os credores se habilitarão no patrimônio do insolvente. Nisso o pagamento poderá ser exigido anteriormente.

E a última hipótese dentro do art. 333:

        III - se cessarem, ou se se tornarem insuficientes, as garantias do débito, fidejussórias, ou reais, e o devedor, intimado, se negar a reforçá-las.

“Se cessarem, ou se se tornarem insuficientes, as garantias do débito, fidejussórias, ou reais [...]”: o que é uma garantia fidejussória? Também vem do latim: fidei = confiança, jus = pessoal. Qual os dois melhores exemplos? Fiança e aval. E se o imóvel se deteriora ou se perde? As garantias reais foram-se. O credor pode exigir reforço de garantia, como dar uma nova obra de arte para penhor ou um novo apartamento para hipoteca. Se o devedor se negar a dar nova coisa, como na hipótese em que as sacas de arroz se estragam. Ipso iure, pelo mesmo direito, ao acontecer isso poderá ocorrer o vencimento antecipado da obrigação.

Esta matéria está imbricada nos direitos reais. Veremos no sexto semestre.

Parágrafo único:

        Parágrafo único. Nos casos deste artigo, se houver, no débito, solidariedade passiva, não se reputará vencido quanto aos outros devedores solventes.

Evidente. Entender o contrário seria exigir que um devedor solvente reforçasse uma garantia. Na solidariedade passiva, pode haver devedores solventes e insolventes na mesma relação. Pode-se antecipar o vencimento com relação ao devedor insolvente, mas não poderá o credor pretender antecipar também o débito dos devedores solventes, que integram aquela mesma relação.

Potier, que fez o Código Civil Francês, dizia que o direito real era uma inflexão da coisa à pessoa. Errado, pois tem que haver outra pessoa envolvida, já que alguém é dono daquela coisa. O direito de propriedade é exercido erga omnes, de acordo com a lição de Miguel Reale, então pressupõe-se que “a outra pessoa” é a coletividade, excluída o próprio dono da coisa. Então, a garantia real é uma ligação que tem uma pessoa a uma coisa. Exemplo: eu tenho uma propriedade. Ela é minha, e está escriturada. Eu tenho uma hipoteca de uma propriedade que é do Voltaire, e sou eventualmente o construtor. Se ele não paga o financiamento, eu tomo dele a propriedade, pois tenho a garantia real, e tenho preferência. Uma característica do direito real é o direito de seqüela: buscar o bem onde quer que ele esteja. O titular daquela propriedade perseguirá o bem onde quer que ele se encontre, então, se X passou para Y, que passou para Z, que passou para W, o proprietário procurará W. É o ônus real, que está sempre ligado a uma coisa.


Isso tá bem explicado na obra de Silvio Rodrigues. Ele é bastante didático nesta parte.

Traga o Código Civil e o Código de Processo Civil na próxima aula.

1 – Caio Mário da Silva Pereira ensina: "(...) as declarações de vontade, quanto à incidência da certeza, podem ser de quatro espécies, a que correspondem outros tantos tipos de negócios jurídicos: a) incertus an incertus quando: não se sabe se acontecerá nem quando poderá acontecer (venderei minha casa se Fulano for Presidente da República), isto é, o fato pode vir a concretizar-se, ou não, e num tempo totalmente indeterminado; b) incertus an certus quando: não se sabe se acontecerá, mas, se acontecer, será dentro de um tempo determinado (venderei minha casa a Fulano, se ele se casar até o fim do ano), ou seja, o fato pode vir a realizar-se ou não, mas dentro de um termo determinado e preciso; c) certus an incertus quando: sabe-se que o fato acontecerá, mas ignora-se o momento (venderei minha casa quando Fulano morrer), isto é, o acontecimento é certo que ocorrerá, mas a sua situação no tempo é indefinida; d) certus an certus quando: sabe-se que o evento sobrevirá e determina-se o momento (venderei minha casa no fim da primavera), isto é, o acontecimento é uma decorrência necessária da lei natural, bem como a determinação de sua oportunidade. Somente as duas primeiras traduzem condição, pois que às duas últimas hipóteses falta o que lhes é indispensável, a incerteza do evento. É, entretanto, possível que um acontecimento certo seja erigido em condição, desde que se lhe aponha uma circunstância adicional como é a limitação no tempo." (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, volume 1. Rio de Janeiro; Forense, 2004, p. 557). Fonte: http://www.cvm.gov.br/port/descol/respdecis.asp?File=4785-0.HTM, acessível em 08/10/09 às 22:10.

Expressões do dia:

  1. Certus an, incertus quando: Certo que acontecerá, só não se sabe quando. Vejam as variações dessa expressão na lição de Caio Mário acima.
  2. Dies interpellat pro homine: o dia interpelará pelo homem.
  3. Quid juris?: qual o direito? Ou "como no Direito?"   
  4. Pars conditio creditorium: todos são iguais na condição do crédito. Já conhecemos.
  5. Prior in tempori, potior in jure: primeiro no tempo, melhor no direito. Também já vimos antes.
  6. Ipso iure: pelo mesmo direito.