Direito Civil

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Transmissão de obrigações


Silvio Rodrigues tem a melhor obra sobre este tópico. Curso de Direito Civil – obrigações, volume 2.

Vamos rapidamente terminar a solidariedade passiva.

Voltemos a pensar nas relações internas entre os co-credores ou co-devedores, e nas relações externas estabelecidas entre os credores e devedores. Tínhamos parado no exame do art. 284:

        Art. 284. No caso de rateio entre os co-devedores, contribuirão também os exonerados da solidariedade pelo credor, pela parte que na obrigação incumbia ao insolvente.

Então tínhamos A, B, C e D como credores, e E, F, G e H como devedores. O que diz o Código? Pensem num rateio entre co-devedores, em que tem que ser rateado o valor de R$ 400. A cada credor caberá R$ 100,00. Digamos que F, que é um dos devedores, venha a se tornar insolvente. Então, o que acontecerá? A dívida de D, E e G será acrescida da parte do insolvente. Significa que mesmo ao exonerado da solidariedade caberá a quota do insolvente.

Art. 285:

        Art. 285. Se a dívida solidária interessar exclusivamente a um dos devedores, responderá este por toda ela para com aquele que pagar.

Como uma dívida solidária possa interessar a um dos co-devedores. Digamos que um dos co-devedores tem um fiador, e interessa que esse co-devedor pague, pois do contrário o fiador terá que pagar. O fiador tem o haftung, que é a responsabilidade (não se esqueçam dos termos do Direito Alemão que aprendemos). Se não interessa ao devedor que seu fiador pague o credor, o próprio devedor efetua o pagamento, e deixa o fiador livre.

A transmissão das obrigações

É bom dividir o Direito das Obrigações em quatro capítulos. Um deles seria o que acabamos de ver, que é a parte geral e modalidades de obrigações. O segundo é a transmissão das obrigações, que é o que iniciaremos agora. O terceiro é o pagamento e o quarto é o inadimplemento. Modalidades de obrigações são classificações como as obrigações de dar, obrigações indivisíveis, obrigações solidárias, etc. Já a transmissão das obrigações é o seguinte: imagine a pessoa natural. A pessoa nasce, adquire personalidade, vive, enquanto transaciona no mundo jurídico com as outras, e morre, quando do falecimento. É exatamente do mesmo jeito com as obrigações.

A obrigação tem uma transmissão. Agora ficaremos acostumados com o termo cessão de créditos ou de direitos. Modernamente a obrigação se constitui num patrimônio que o credor tem, um crédito. Esse crédito pode ser cedido a outrem. Essa é a grande pedra de toque do Direito das Obrigações: o crédito cedido é a transmissão da obrigação. E ele morre com o pagamento, que é o ato de solver a obrigação. No final do semestre veremos a patologia da obrigação quando ela não é paga, que é o inadimplemento. Pode ser parcial, como é o caso da mora, que é o retardamento injustificado do cumprimento da obrigação, ou o inadimplemento pode se traduzir nas perdas e danos, em que não interessa mais ao credor recebê-la.

Como podemos ceder o crédito? Vejamos. O Direito Romano não conseguia visualizar como que uma pessoa poderia ceder seu crédito a outra. A feitura, a elaboração de uma eventual cessão de um crédito era considerada como uma novação. Veremos aqui que a novação é um instituto diferente, que está no Código Civil, que é uma nova obrigação. Se tenho crédito de R$ 1.000,00 para com alguém, o Direito Romano não admitia que esse crédito pudesse ser passado para outra pessoa. Significa que as partes da obrigação mudariam, e se constituiria uma nova obrigação. Na transmissão das obrigações, existe um triângulo entre os sujeitos. Por quê? Porque a obrigação continua a mesma. Então veja o exemplo: Ana Bolena tem um crédito a receber de Henrique. O crédito pode ser representado nos títulos de crédito, como cheque, debênture, nota promissória, etc. Ela pode esperar o vencimento da obrigação para receber, ou então ceder o crédito a outrem. Ana figura, então, como cedente ou alienante. Ana Bolena, que tem um crédito de R$ 100,00 para receber de Henrique ao final do ano, vende hoje por R$ 80,00. Aquele que compra, que figura na qualidade de cessionário, passa a ser chamado adquirente. Temos, portanto, três figuras: o alienante, que é o cedente; o adquirente, que é o cessionário, e o devedor, que é o cedido. E mais. Geralmente, as cessões de crédito ocorrem de caráter oneroso. Significa que, quando Ana Bolena transferiu o crédito de R$ 100,00 para Catarina de Aragão, ela vendeu por R$ 80,00. O título também pode ser cedido a título gratuito. Neste caso não haverá responsabilidade pela existência do crédito. Então o título, sempre que for cedido a título oneroso, criará uma responsabilidade ao cedente pela existência desse crédito. Evidentemente que se Ana passar um cheque ou nota promissória, ela não poderá falsificar a assinatura do cedido (Henrique). Art. 295:

        Art. 295. Na cessão por título oneroso, o cedente, ainda que não se responsabilize, fica responsável ao cessionário pela existência do crédito ao tempo em que lhe cedeu; a mesma responsabilidade lhe cabe nas cessões por título gratuito, se tiver procedido de má-fé.

Só terá responsabilidade se houver má-fé. Por exemplo: Ana dá a Catarina, gratuitamente, um título já prescrito. Significa que não cabe ação de regresso. Um título prescrito não nem tem mais existência no mundo jurídico. Então a cessão a título oneroso, que é o que particularmente nos interessa, tem uma representação e uma situação jurídica muito importante. O título circula, e, assim sendo, ele é objeto de cessão de direitos, ou de créditos. E veremos, agora, aquelas hipóteses em que determinados créditos são incessíveis, ou seja, quando não podem ser cedidos, pela peculiaridade da lei, da natureza da obrigação, ou de seu objeto.

Veremos depois o instituto da notificação. Vamos chegar lá aos poucos.

Os pressupostos que o próprio Silvio Rodrigues coloca, sobre o crédito, são aqueles que estão inexos (não anexos). Volte ao art. 104:

        Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:

        I - agente capaz;

        II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

        III - forma prescrita ou não defesa em lei.

Só se pode alienar o crédito se lícito; não se for resultante de uma partilha de haxixe.

Há objetos de créditos que não são cessíveis. E onde está isso? Art. 286:

TÍTULO II
Da Transmissão das Obrigações

CAPÍTULO I
Da Cessão de Crédito

        Art. 286. O credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação.

Esta parte final (depois do sinal de ponto-e-vírgula) adveio do novo Código Civil, que é estabelecida de acordo com o art. 421, que fala na boa-fé objetiva. É copia fiel do art. 1065 do velho Código.

O credor pode ceder seu crédito: significa que não há óbice, não há inibição. “...se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor...”: exemplo: direito personalíssimo. Sou menor de idade, e tenho uma pensão alimentícia de meu pai. Então, o que diz a Lei? O direito à pensão alimentícia é indisponível, e o crédito alimentício, portanto, não pode ser cedido, por força de seu caráter de subsistência.

Segunda situação: dispositivo de lei. Exemplo: acidente de trabalho. Joãozinho se acidentou, e passou a receber um crédito do INSS. Ele não pode ceder esse crédito a outrem. Isso porque a incapacidade é dele.

Terceira hipótese: “a convenção com o devedor assim estabelece”. O que é isso? Credor e devedor pactuam cláusulas modificativas do direito associado ao bem. Há três modalidades de cláusulas:

  1. Cláusula de incomunicabilidade. É usada em negócios jurídicos, por exemplo, em que doa-se um bem a outrem, com o encargo de que esse bem não se comunique ao futuro cônjuge, quando o donatário se casar.
  2. Cláusula de inalienabilidade: a pessoa que recebeu o bem não pode aliená-lo. Ele poderá fazer uma sub-rogação, como pedir ao juiz para trocar aquele bem por outro, talvez porque aquele já esteja velho.
  3. Cláusula de impenhorabilidade: É outra cláusula que pode ser colocada num imóvel. Os bens de família são bens impenhoráveis, por expressa disposição legal. Mas, se a família tiver outros imóveis, se um desses outros for muito estimado, ele poderá ser declarado impenhorável. São as três hipóteses previstas pela lei.

Vamos dizer agora que Janene sofreu um acidente de trabalho e eventualmente resolve ceder o crédito de R$ 1.000,00 a que tem direito mensalmente. O credor, se estiver de boa-fé, poderá receber, já que não sabe que aquele crédito é intransferível. O que é o instrumento da obrigação? O contrato, o título, que é omitido. Aquele que pretende ceder então omitirá do cessionário, que adquire achando se tratar de um crédito circulável.

Art. 422:

        Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

Isso encontra paralelo na obra de Karl Larenz, e no § 242 do BGB. Treu und glauben. Princípio da verdade e da mentira. Rudolf Von Jhering traduziu uma obra para o espanhol, em que aparecem os termos brumas e veras: mentiras e verdades. Bruma é uma falácia, enquanto vera é uma verdade. É como uma obra filosófica do Direito.

Terminamos o art. 286, que é o que introduz a cessão de crédito. Bem constringido está sub judice. Vender bem penhorado é ato nulo.

O que acontece no Direito? Na verdade, todo o Direito é integrado com os outros ramos. As obrigações, por exemplo, representam o comprometimento no Direito das Sucessões, no Direito de Propriedade, e tudo está relacionado. Por isso que é muito importante a parte geral das obrigações, que irradiará efeitos sobre todos os outros campos jurídicos.

Art. 287:

        Art. 287. Salvo disposição em contrário, na cessão de um crédito abrangem-se todos os seus acessórios.

Nem precisaria ter essa norma no Código Civil. Isso porque sabemos que o acessório segue o principal. Lote com bonificações traz consigo seus acessórios.

Art. 288:

        Art. 288. É ineficaz, em relação a terceiros, a transmissão de um crédito, se não celebrar-se mediante instrumento público, ou instrumento particular revestido das solenidades do § 1º do art. 654.

Existência, validade e eficácia: na teoria tridimensional do Direito de Miguel Reale, ele usa esses três elementos que, na verdade, foram criados por Pontes de Miranda. Hoje não temos mais fatos jurídicos disciplinados no Código, mas negócios jurídicos. Ipso facto temos a inexistência, a invalidade e a ineficácia do negócio. Exemplo: o negócio jurídico casamento, que é um negócio jurídico sui generis, que quer dizer uma situação específica de criar, procriar, realizar o sexo... Então a existência corresponde a um casamento que seja realizado por pessoas de sexos opostos. Um casamento valido é um casamento que tenha sido realizado de acordo com as normas jurídicas, enquanto o casamento eficaz é o que produz efeitos em relação a terceiros. Por que tudo isso? Porque é o último grau. Pontes fala em eficacização do negócio jurídico, que é quando ele irradia todos os efeitos oriundos da existência e da validade. Outro exemplo, Direito das Coisas: estou fazendo a alienação de um lote. Só pode ser feito por instituto público, pois se trata de bem imóvel. Quando faço um pacto antenupcial, não posso usar uma folha de caderno, mas devo comparecer diante do tabelião. Hoje o regime padrão de casamento é o regime dos aquestos. Então diz o art. 288 do Código Civil (leia novamente):

        Art. 288. É ineficaz, em relação a terceiros, a transmissão de um crédito, se não celebrar-se mediante instrumento público, ou instrumento particular revestido das solenidades do § 1º do art. 654.

Por exemplo: tenho créditos oriundos da locação de um imóvel de minha propriedade. Posso transferir esse crédito alguém desde que eu faça mediante instrumento público. Isso está imbricado com o art. 289:

        Art. 289. O cessionário de crédito hipotecário tem o direito de fazer averbar a cessão no registro do imóvel.

Exemplo: Messalina tem um crédito hipotecário. Ela tomou, como garantia, um bem de Claudio, seu devedor. Essa transferência se chama averbação. Por quê? Porque só se averbam bens imóveis à margem do registro público. Quando se faz a transferência de um bem imóvel, deve-se fazer, de acordo com o Direito Alemão, discriminar o objeto da transcrição: “há tantos dias comprei, e transcrevo este bem para fulano de tal...” entretanto um bem que tenha sido objeto de hipoteca não é transcrito, mas averbado. Não se pode fazer por instrumento particular. Vamos ao art. 654:

        Art. 654. Todas as pessoas capazes são aptas para dar procuração mediante instrumento particular, que valerá desde que tenha a assinatura do outorgante.

        § 1º O instrumento particular deve conter a indicação do lugar onde foi passado, a qualificação do outorgante e do outorgado, a data e o objetivo da outorga com a designação e a extensão dos poderes conferidos.

        § 2º O terceiro com quem o mandatário tratar poderá exigir que a procuração traga a firma reconhecida.

Pode ser uma procuração, mas não necessariamente; pode-se também fazer uma cessão. Ao se fazer a cessão, devem-se ter os elementos constantes do § 1º do artigo.

Art. 290:

        Art. 290. A cessão do crédito não tem eficácia em relação ao devedor, senão quando a este notificada; mas por notificado se tem o devedor que, em escrito público ou particular, se declarou ciente da cessão feita.

O Código Civil anterior dizia “não vale”, em vez de falar “não tem eficácia”. O Código atual é mais rigoroso com a terminologia.

Notificação é informação, intimação é feita pela justiça, quando em curso um processo. Temos outras duas figuras em juízo, dadas pelo Código de Processo Civil. As outras duas são a interpelação e a citação. A notificação, que é a que nos interessa agora, é uma informação que se dá sobre determinado ato jurídico. Exemplo: você transferirá um crédito. O devedor tem que ser notificado, e não intimado, para que vá pagar. Pode ser por carta com AR. A notificação, como veremos na próxima aula, pode ser judicial ou extrajudicial.


Termos do dia: 

  1. Brumas e veras: mentiras e verdades, respectivamente. São termos espanhóis que correspondem ao alemão treu und glauben. Foi usada por Ihering.
  2. sub judice: sob juízo. Quando se fala de um caso sub judice, dizemos que esse caso está atualmente em apreciação pelo Poder Judiciário. Se se tratar de um bem, o dito bem está constringido, congelado, acautelado, ou sob proteção da justiça, ou sobre ele um impedimento.