Esquema
Vimos a teoria geral do pagamento, daqueles a quem se deve pagar, quem deve receber; lugar do pagamento e sua regra geral, que é o domicílio do devedor, a dívida querable, a dívida portable, o tempo do pagamento, a exigência da obrigação, e hoje vamos examinar a primeira forma indireta do pagamento. Qual é? Pagamento por consignação. Chama-se forma indireta porque não é um pagamento feito naquela situação normal, da dívida que deve ser exigida imediatamente. Por isso os autores chamam de indireta.
Ao pegarmos qualquer manual de Direito Civil, constataremos que os autores dizem que o instituto da consignação em pagamento é metade de Direito Material e metade Direito Processual. É um instituto eclético. Por isso teremos normas do Código Civil em sintonia com normas do Código de Processo Civil.
Então temos, no esquema acima, o art. 334 do Código Civil, que é o artigo que introduz o instituto, combinado com o art. 890, §§ 1º e 4º do Código de Processo Civil. Vejamos, portanto, o que é a consignação em pagamento. Não esgotaremos o esquema hoje.
Art. 334 do Código Civil:
CAPÍTULO II
Do Pagamento em Consignação Art. 334. Considera-se pagamento, e extingue a obrigação, o depósito judicial ou em estabelecimento bancário da coisa devida, nos casos e forma legais. |
É o Capítulo II da Teoria Geral do Pagamento. Veja o que diz o legislador: considera-se pagamento e extingue a obrigação o depósito judicial, que vamos examinar em outras hipóteses, que não é o depósito em dinheiro, ou depósito feito em estabelecimento bancário, que é uma inovação do Código Civil de 2002 em relação ao Código Civil de 1916. O antigo Código não falava, em seu art. 972, sobre estabelecimento bancário.
A consignação em pagamento pode ser feita judicialmente e ela será assim feita quando o credor não quiser receber a obrigação em dinheiro, ou quando se tratar de uma obrigação com corpo certo. Já vamos explicar. A primeira modalidade de depósito judicial é aquela que não se trata de dívida em dinheiro. Exemplo: uma obrigação de entregar um cavalo. Veremos nos Códigos que esta é feita através de um depósito judicial. Não chegamos ao juiz e entregamos o cavalo. Fazemos uma petição inicial, com os requisitos do art. 282 do Código de Processo Civil. O devedor diz: estou devendo ao Leonardo um cavalo, que está situado no Country Club. Então o foro competente é o Foro do Gama. Então faço a petição com o depósito judicial.
Mas também pode o pagamento ser feito em estabelecimento bancário. Quando é feito? Quando se trata de uma dívida em dinheiro, de obrigações pecuniárias. Quando é uma obrigação pecuniária, o devedor diz: “eu devo ao credor um aluguel, que é uma obrigação de trato sucessivo, que vence de mês a mês, e dou-lhe R$ 1.000,00 por mês pela quitinete, a serem depositados numa conta bancária pré-estabelecida”. Assim, está no contrato que o locatário deve pagar a prestação mensal de R$ 1.000,00, mas ocorre um incidente que gera um custo adicional, um excesso d’água, por exemplo. É um incidente daquele apartamento, e o condomínio debitou esse excesso dessa conta bancária que os contratantes acertaram como a conta em que os depósitos seriam feitos. Isso resultaria numa obrigação, portanto, R$ 1.000,00 + o valor do excesso, digamos R$ 150,00; R$ 1.150,00, portanto. O que acontece? Há uma divergência, pois o locatário entende que deve ao locador somente R$ 1.000,00, enquanto o último reivindica R$ 1.150,00. O que o locatário tem que fazer? O devedor tem que consignar, depositar. E aí o Código Civil atendendo o Código de Processo Civil, diz: quando se trata de dívida em dinheiro, ele pode fazer num estabelecimento bancário oficial ou não-oficial. Se estiver aqui em Brasília, ele fará na Caixa Econômica Federal ou no Banco do Brasil. E se ele estiver na cidade de Não-Me-Toque, no Rio Grande do Sul? Pode ser no Bradesco, que tomou conta do mercado lá, que não é o estabelecimento oficial, mas é um estabelecimento bancário.
Vamos ver o caput do art. 890 do Código de Processo Civil e parágrafos:
TÍTULO I
DOS PROCEDIMENTOS ESPECIAIS DE JURISDIÇÃO CONTENCIOSA CAPÍTULO I DA AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO Art. 890. Nos casos previstos em lei, poderá o devedor ou terceiro requerer, com efeito de pagamento, a consignação da quantia ou da coisa devida. § 1o Tratando-se de obrigação em dinheiro, poderá o devedor ou terceiro optar pelo depósito da quantia devida, em estabelecimento bancário, oficial onde houver, situado no lugar do pagamento, em conta com correção monetária, cientificando-se o credor por carta com aviso de recepção, assinado o prazo de 10 (dez) dias para a manifestação de recusa. § 2o Decorrido o prazo referido no parágrafo anterior, sem a manifestação de recusa, reputar-se-á o devedor liberado da obrigação, ficando à disposição do credor a quantia depositada. § 3o Ocorrendo a recusa, manifestada por escrito ao estabelecimento bancário, o devedor ou terceiro poderá propor, dentro de 30 (trinta) dias, a ação de consignação, instruindo a inicial com a prova do depósito e da recusa. § 4o Não proposta a ação no prazo do parágrafo anterior, ficará sem efeito o depósito, podendo levantá-lo o depositante. |
O primeiro trecho do artigo é “nos casos previstos em lei”. Que lei? O Código Civil, nas hipóteses do art. 335, que veremos a seguir. Obrigação em dinheiro, conforme dito no § 1º: obrigação pecuniária. Também no § 1º vemos “estabelecimento bancário onde houver”. Aqui entra processo, que viveremos no dia-a-dia. Processo vem de procedere, do latim, que quer dizer “ir para frente”.
Digamos então que um locatário deve ao locador uma obrigação de trato sucessivo, firmada num contrato de locação de uma quitinete no sudoeste, que dá ao locador R$ 1.000,00 por mês. Mas houve o excesso d’água que gerou a obrigação extra de R$ 150,00. Ele diz “não. O nosso contrato é de R$ 1.000,00 de locação. Eu não tenho que pagar excesso d’água.” Não houve o rompimento de cano nem benfeitoria voluptuária, mas uma situação necessária, em que foi utilizada água em demasia. Significa então que o devedor tem que depositar os mil Reais num estabelecimento bancário onde houver, e o banco mandará uma carta com aviso de recepção (AR) ao credor para que se manifeste se aceita ou não aquele valor que foi depositado pelo devedor. Veja o final do artigo: “...cientificando-se o credor por carta com aviso de recepção, assinado o prazo de 10 (dez) dias para a manifestação de recusa.” O prazo é de 10 dias. O credor pode dizer: “devedor, obrigado pelo seu depósito de R$ 1.000,00, mas me recuso a aceitá-lo porque sua obrigação é maior pois houve o excesso que é por sua conta”. Então, o que diz o Código? § 2º:
§ 2o Decorrido o prazo referido no parágrafo anterior, sem a manifestação de recusa, reputar-se-á o devedor liberado da obrigação, ficando à disposição do credor a quantia depositada. |
Se não houve manifestação de recusa por parte do credor, que não comunicou ao banco, não disse se aceitava ou recusava, então isso importa anuência. A quantia depositada, de 1.000 reais, ficará para o credor.
Vejamos outra hipótese que ocorre quando há recusa. § 3º:
§ 3o Ocorrendo a recusa, manifestada por escrito ao estabelecimento bancário, o devedor ou terceiro poderá propor, dentro de 30 (trinta) dias, a ação de consignação, instruindo a inicial com a prova do depósito e da recusa. |
Ocorrendo a recusa: isso é prática. Um contrato de previdência privada, ou contrato de prestação de serviço educacional, se houver adicionais cobrados pelo credor e o devedor não quer pagá-los, este vai ao banco e deposita o valor que acha que deve ao credor, ou melhor, o próprio valor que está no contrato, e o banco mandará a carta com AR para o credor dizendo: “você tem um prazo de 10 (dez) dias para manifestar-se se aceita ou não o valor depositado pelo seu devedor”. Se passarem os 10 dias, entende-se extinta a obrigação. Por outro lado, se recusado o valor pelo credor, essa recusa terá que ser feita por escrito com destino ao gerente do banco: “prezado Senhor Gerente Joaquim Barbacena [...] o Sr. Leonardo depositou referentemente ao aluguel do apartamento tal [...] venho por meio desta comunicar a minha recusa com relação àquela carta com aviso de recepção protocolizada sob o número 12345 [...]” O que o devedor faz? Ele pega o depósito que fez, instruindo a inicial, ou a prova do depósito (R$ 1.000,00) e a prova da recusa. O depósito extrajudicial, aquela consignação que foi feita extrajudicialmente, já que estava ocorrendo no banco, e transformará a obrigação em uma obrigação judicial, escrevendo ao juiz: “Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito, [...] eu, fulano de tal [identificação, conforme exigida pelo art. 282 do CPC], há tantos dias, fiz o depósito de uma importância correspondente ao contrato de aluguel tal. O credor manifestou-o através do recibo constante nestes autos que não quer receber esse valor. O depósito foi feito conforme se verifica nas provas anexadas tal e tal. Quero, então, fazer este depósito judicial e requeiro que seja expedido um alvará para levantamento desta importância.” Assim, ele está fugindo do quê? Dos efeitos do inadimplemento contratual. Se não fizer, ele ficará inadimplente, e terá que pagar perdas e danos, juros de mora, eventualmente dano moral, etc.
§ 4º:
§ 4o Não proposta a ação no prazo do parágrafo anterior, ficará sem efeito o depósito, podendo levantá-lo o depositante. |
Qual é o mesmo o prazo? 30 dias. Se não for proposta a ação, perde-se o direito, portanto é um prazo decadencial. Quer dizer: se o devedor achar depois que deve mesmo os R$ 1.150,00, ele pode pedir o levantamento do dinheiro. Note que “mandar carta com AR” não é o mesmo que “acionar”.
Vamos agora ver as hipóteses legais da consignação, voltando ao Código Civil. Art. 335:
Art. 335. A consignação tem lugar: I - se o credor não puder, ou, sem justa causa, recusar receber o pagamento, ou dar quitação na devida forma; II - se o credor não for, nem mandar receber a coisa no lugar, tempo e condição devidos; III - se o credor for incapaz de receber, for desconhecido, declarado ausente, ou residir em lugar incerto ou de acesso perigoso ou difícil; IV - se ocorrer dúvida sobre quem deva legitimamente receber o objeto do pagamento; V - se pender litígio sobre o objeto do pagamento. |
Dar quitação na devida forma é a hipótese do art. 320:
Art. 320. A quitação, que sempre poderá ser dada por instrumento
particular, designará o valor e a espécie da dívida quitada, o nome do
devedor, ou quem por este pagou, o tempo e o lugar do pagamento, com a
assinatura do credor, ou do seu representante. Parágrafo único. Ainda sem os requisitos estabelecidos neste artigo valerá a quitação, se de seus termos ou das circunstâncias resultar haver sido paga a dívida. |
E aqui no art. 335, falamos de uma dívida portable, porque o devedor tem que carregar a prestação ao domicílio do credor, ou melhor, o credor tem que “portar aquele valor” até o domicílio do devedor. Então se o credor estiver sem condições de receber ou recusar sem justo motivo, a consignação poderá ocorrer.
Inciso II: é uma hipótese de dívida querable, que o credor quer recebê-la, que ele tem que carregar até domicílio do devedor. O credor não vai receber, então o que faz o devedor? Deposita, para evitar os efeitos do inadimplemento.
Inciso III: se o representante legal não vai receber a dívida no domicílio do devedor, este não ficará isento da obrigação. Ele terá que depositar de qualquer jeito. Quem deve, tem que pagar, seja o devedor indo ao domicílio do credor ou vice-versa.
E quando que o credor se torna incapaz de receber? Digamos que ele se tornou esquizofrênico ou pródigo, ou então teve um AVC. Ainda assim o devedor tem que pagar, embora seja o credor incapaz de receber. Alguém tem que representá-lo. Credor desconhecido: firmei uma nota de crédito para Lucas, que passou para frente, não me notificou e nada disse. Ainda assim a dívida tem que ser paga. Eu desconheço, mas sei que dia 15/10 eu devia ao Lucas o valor de R$ 12.000,00. Então terei que depositá-lo em juízo. Assim é feita uma citação por edital, que é a expedida quando o credor estiver em lugar incerto ou não sabido. Ausente: pode ser caso de ausência provisória ou definitiva. Também se aplica ao credor que reside em lugar incerto, aquele que está sempre em viagem. Então o devedor escolhe o foro onde foi feito o contrato e pede para o credor ser citado por edital. Lugar de difícil acesso ou perigoso: não deve o credor prudente subir a favela da rocinha para procurar seu credor. Então ele faz a consignação judicial.
Inciso IV: pode ter a ver com seguro. Tenho um seguro de vida, que é o exemplo mais clássico. Nomeio minha mulher como minha beneficiária. O seguro, na verdade, pode ser deixado para quem o falecido quiser, inclusive para quem não é herdeiro. Veja o art. 793 do Código Civil:
Art. 793. É válida a instituição do companheiro como beneficiário, se ao tempo do contrato o segurado era separado judicialmente, ou já se encontrava separado de fato. |
Outro exemplo: você, casado hoje, nomeou Joana, sua mulher, como beneficiária de seu seguro de vida. Você mudou de mulher dois anos depois, e passou a conviver com a Francisca. Mas você não firmou no cartão-proposta (documento onde é feita a nomeação do beneficiário do seguro) se ela era sua companheira, amante, ou se era uma pessoa com inibição legal. E você morre em enquanto convivendo com Francisca. O que tem que fazer a companhia de seguros? Ela terá que consignar aquele valor, e as “candidatas” vão querer o dinheiro. O que faz a companhia? Fica em dúvida, e não pode pagar a quem não tenha certeza, e quem paga mal, paga duas vezes. Então ela consigna. Antigamente a companhia pagava para qualquer uma, e “lavava as mãos”. Hoje, está pacificado que quem deve decidir é o juiz, e não a companhia.
Companheirismo é famus, modus e tratus. Significa que, para identificar quem é companheiro de quem, basta verificar a fama, o modo e o trato entre os dois.
A companhia não vai entrar na discussão de família ou relações, ela só deposita em juízo e acabou a chateação para ela. Logo, se há dúvida para a companhia, ela deposita em juízo e acabou o problema para ela.
Inciso V do art. 335:
V - se pender litígio sobre o objeto do pagamento. |
Eu devia um cavalo ao João, mas Lucas se apresenta dizendo que o cavalo é dele. Há um litígio! O que fazer? Deposito o cavalo em juízo? Sim! Mas Calma, não deposito o cavalo em juízo, mas faço uma petição pedindo o depósito do cavalo.
Art. 336:
Art. 336. Para que a consignação tenha força de pagamento, será mister concorram, em relação às pessoas, ao objeto, modo e tempo, todos os requisitos sem os quais não é válido o pagamento. |
Quais os requisitos? Da parte geral do pagamento: quem deve pagar, a quem se deve pagar, o terceiro interessado, e todos os envolvidos na relação jurídica do pagamento: credor e devedor.
Art. 337:
Art. 337. O depósito requerer-se-á no lugar do pagamento, cessando, tanto que se efetue, para o depositante, os juros da dívida e os riscos, salvo se for julgado improcedente. |
E agora o art. 891 do Código de Processo Civil:
Art. 891. Requerer-se-á a consignação no lugar do pagamento, cessando para o devedor, tanto que se efetue o depósito, os juros e os riscos, salvo se for julgada improcedente. |
É uma repetição do art. 337 do CC. Se o pedido de consignação for julgado procedente, o que fazer? Está resolvida a questão. Todos os riscos, todos os efeitos, os juros da dívida, os consectários, os honorários, multa contratual se for o caso, salvo se for julgado improcedente. Neste caso, o devedor não está alforriado da obrigação. É o que diz o art. 337 do Código Civil juntamente com o art. 891 do Código de Processo Civil.
Parágrafo único do art. 891 do CPC:
Parágrafo único. Quando a coisa devida for corpo que deva ser entregue no lugar em que está, poderá o devedor requerer a consignação no foro em que ela se encontra. |
É o caso do cavalo. Se o cavalo estiver na Hípica, faz-se a consignação no foro de Brasília. Se estiver no Country Club, é o foro do Gama o foro certo.
Consignação, na verdade, é fazer o papel de Pôncio Pilatos.
Veremos os artigos 338 até 345 na próxima aula.
Expressões do dia: