Direito Civil

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Obrigação de dar coisa incerta, obrigação de fazer e obrigação de não fazer

Breve esquema

Obrigação de dar coisa incerta

Obrigação de fazer

Obrigação de não fazer

Obrigação de dar coisa incerta

A obrigação de dar coisa incerta é aquela obrigação em que a prestação não se encontra determinada. Ela é até determinável. O Código Civil fala que, nas obrigações de dar coisa incerta, o devedor tem que dar algo com relação ao gênero e quantidade.

Seção II
Das Obrigações de Dar Coisa Incerta

        Art. 243. A coisa incerta será indicada, ao menos, pelo gênero e pela quantidade.

Exemplo: devo ao Lucas “100 sacas de arroz”. Então, com relação a esse fato, que é objeto de um contrato verbal, não se encontra determinado qual é o tipo de arroz que deverei pagar ao Lucas. Apenas digo que devo 100 sacas. Então vejam bem que, no exemplo desta esta obrigação, que é incerta, está determinada a quantidade, que é 100 sacas, e está determinado que é se trata de arroz. Álvaro Vilaça de Azevedo diz que o legislador deveria ter determinado pela espécie e quantidade, pois a espécie é mais restrita. Exemplo: eu devo cem cabritos. Então, qual é a espécie? Dentro do rebanho caprino ficaria mais especificado, segundo o autor. Mas quando digo “eu devo cem ovelhas”, esta situação é extremamente transitória, porque chegará um determinado momento em que eu, o devedor, que é de quem geralmente fica a cargo escolher o cumprimento da obrigação, fará o que Pontes de Miranda chama de concretização. O que é a concretização? É o que o veremos na próxima aula: as obrigações alternativas. Nelas, haverá a concentração. Nas obrigações genéricas, o termo técnico não é bem concentração, mas concretização. No momento em que Lucas diz que eu devo a ele cem sacas de arroz, na hora do cumprimento a prestação deverá ser especificada, como arroz tipo exportação, ou vinho da Colônia de Garibaldi, do Rio Grande do Sul. Assim, estamos determinando, através da concretização, uma obrigação que é certa. Quando eu pago, fazendo a solução, tenho que dizer de qual espécie são, afinal, essas garrafas de vinho. Vinho francês, vinho nacional, o quê? É o que diz o art. 244 do Código Civil:

        Art. 244. Nas coisas determinadas pelo gênero e pela quantidade, a escolha pertence ao devedor, se o contrário não resultar do título da obrigação; mas não poderá dar a coisa pior, nem será obrigado a prestar a melhor.

A escolha sempre pertence ao devedor. O que é o título da obrigação? O contrato, o pacto. A parte final diz que não poderá o devedor dar a pior coisa nem será obrigado a dar a melhor. Por isso dar coisa média. Veja o esquema acima. Significa que não podemos dizer o seguinte: devo ao Lucas 100 cavalos que estão na minha fazenda lá no Riacho Fundo. Pagarei, farei a concretização da obrigação, que é a mais transitória delas. No momento da concretização, não posso dar para ele os 100 piores, os pangarés doentes; não posso dar a pior coisa que tenho, mas tampouco tenho a obrigação de dar a melhor. Daí a obrigação de dar coisa média. Essa assertiva encontra também ressonância no art. 313 do Código Civil:

        Art. 313. O credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa.

Quer dizer, o credor, no pagamento, não é obrigado a receber coisa diferente, mesmo se mais valiosa. Mas, ipso facto, também não se pode dar a pior. Por quê? Porque é indeterminada, então deve-se dar algo de qualidade média, como os cavalos saudáveis, mas não necessariamente os campeões.

Art. 245:

        Art. 245. Cientificado da escolha o credor, vigorará o disposto na Seção antecedente.

Isso tudo é inerente ao tipo obrigacional. Basta aplicar o que aprendemos para as obrigações de dar coisa certa. Como as situações em que há culpa do devedor, quando não há culpa do devedor, realização de benfeitorias, deterioração, etc.

A última característica da obrigação de dar coisa incerta é o que colocamos em latim no esquema: “o gênero jamais perece”. Genus nunquam perit. Usaremos depois o exemplo de Silvio Rodrigues. O que quer dizer?

Art. 246:

Art. 246. Antes da escolha, não poderá o devedor alegar perda ou deterioração da coisa, ainda que por força maior ou caso fortuito.

Fiquei de dar para Lucas 100 cavalos de minha fazenda. Pergunto: posso chegar e dizer “os 100 cavalos tiveram gripe suína. Estou livre da obrigação.”? Não. O Código Civil diz que, antes da escolha, não poderá o devedor alegar perda ou deterioração da coisa ainda que por força maior ou caso fortuito. Vis major. Os dois eventos têm certo grau de similitude. Isso não isentará o devedor do cumprimento da obrigação, a não ser no caso do exemplo de Rodrigues: comprometo-me a dar uma pedra de 10 quilates de diamante, pedras essas que só se encontrariam em determinado local do planeta, mas eu fui roubado!. Significa que, num caso fortuito, se alguém roubasse essas jóias, o devedor estaria isento dessa obrigação. Mas, teoricamente, como o gênero jamais perece, quando digo que devo uma determinada quantidade de arroz, de cavalo ou vinho, e esses produtos vêm a se deteriorar, terei que buscar de outro lugar uma coisa daquele mesmo gênero para pagar, pois ainda não concretizei a obrigação. Obrigação indeterminada beneficia o credor antes da concretização. Ainda que os cavalos tenham que ser buscados em outra fazenda. É isso que faz com que a obrigação de dar coisa incerta seja mais onerosa ao devedor. Por fim, cabe notar que uma geada não prejudica o direito do credor, justamente porque o gênero jamais perece.
 

Obrigação de fazer

Pontes de Miranda diz que toda obrigação de fazer importa uma obrigação de dar. Interessante colocação. Por exemplo: peço para que alguém me pinte um quadro. Essa obrigação pode ser personalíssima, chamada intuitu personae, ou não. Vejamos. Se quero, por exemplo, que a equipe do Prof. Ivo Pintanguy venha fazer uma cirurgia plástica, essa obrigação será intuitu personae. Essa obrigação só pode ser exeqüível por aquela pessoa ou equipe. Outro exemplo: contrato Roberto Carlos para me fazer o show que fez recentemente em Barretos. Também é uma obrigação intuitu personae, pois ele é insubstituível. Então, o que diz o Código? Art. 247:

CAPÍTULO II
Das Obrigações de Fazer

        Art. 247. Incorre na obrigação de indenizar perdas e danos o devedor que recusar a prestação a ele só imposta, ou só por ele exeqüível.

Então RC se compromete a fazer um show, mas, por uma cláusula potestativa, ele se recusa a se apresentar. Ou, então naquele dia em que contratei para o casamento do meu filho uma cantora lírica de Brasília chamada Alberta, mas ela não compareceu. Ela se recusa a comparecer. O que acontecerá? Ela terá que pagar perdas e danos, pois ela não poderá ser substituída por outra pessoa, mesmo que tivesse as características vocais que ela tem. Mors omina solvit: a morte acaba com tudo. Michael Jackson ficou de se apresentar em Londres, mas sua morte terminou com a obrigação. O espólio teria que retornar o dinheiro, ou seria caso de enriquecimento ilícito. A obrigação, que era exeqüível somente por ele, não poderia mais ser cumprida; não se poderia chamar seu irmão para cantar no lugar dele. Daí vamos para outro dispositivo do Código Civil.

Art. 248:

        Art. 248. Se a prestação do fato tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obrigação; se por culpa dele, responderá por perdas e danos.

Também fixamos por um exemplo: contratei uma dupla sertaneja para se apresentar aqui. Mas, na estrada, um caminhão os mata. Não houve culpa deles, então a obrigação está resolvida. Mas, se tiver havido culpa, eles responderão por perdas e danos. Como na hipótese em que eles tenham ingerido bebida alcoólica e vierem a se acidentar. Neste caso, eles terão responsabilidade civil, e não foram diligentes, probos, com uma conduta íntegra em sua relação contratual. Bibi Ferreira, a cantora, atriz e diretora carioca, por beber, teve que pagar perdas e danos por não ter comparecido no show marcado, por culpa deliberada. Mas, se for um caso como o do professor Voltaire, que não podia caminhar, não há culpa, e a obrigação fica resolvida. Observação: não confunda com as conseqüências. Estamos falando somente do cumprimento da obrigação. Morte de Michael Jackson o desobrigou de apresentar, mas seu espólio ainda poderá responder por perdas e danos pelos ingressos já vendidos para os shows de Londres. Não se pode arbitrar, na maioria dos casos, o valor do dano.

Mas também pode ser caso de obrigação de fazer substituível, como contratar alguém para construir um muro. Neste caso, se o contratante precisar muito do serviço, já que dará uma festa e precisará de sua casa devidamente separada da vizinha, e o pedreiro não comparecer em tempo, é lícito pedir para que alguém faça em seu lugar, à custa do devedor. É o que diz o art. 249:

        Art. 249. Se o fato puder ser executado por terceiro, será livre ao credor mandá-lo executar à custa do devedor, havendo recusa ou mora deste, sem prejuízo da indenização cabível.

        [...]

O mesmo para a hipótese na qual o Professor Voltaire não tenha ficado doente coisa nenhuma, mas deliberadamente deixou de vir dar aula. Significa que houve recusa do professor em ministrar aula. É a mesma situação em que determinado artista deveria se apresentar conforme combinado, mas não comparece. Nesses casos, o que diz o Código?  Que o credor poderá pedir para que um terceiro o faça. Isso porque o devedor deu azo, ensejo a essa situação por culpa.

E, daqui, vamos para o parágrafo único do mesmo artigo:

        Parágrafo único. Em caso de urgência, pode o credor, independentemente de autorização judicial, executar ou mandar executar o fato, sendo depois ressarcido.

Em caso de urgência, outro prestador da obrigação poderá ser chamado, com cobrança posterior do devedor. É um instituto novo, que não havia no Código de 1916. Como um médico chamado para prestar algo urgente. Se não há leitos no hospital, e a pessoa pede tutela antecipada, o Estado responderá por isso se não cumprir. Agora, se vocês querem construir um muro na república de vocês para então poderem realizar uma festa, e a empresa contratada não aparece, outra poderá ser chamada, para então cobrar da primeira. Não é uma obrigação personalíssima, pois a construção do muro é exeqüível por outra.

Jus est ars aequi et boni. O que é equidade? Boms-senso, paridade. Não posso exigir de uma pessoa que contratei que seja um super-homem. É o Direito. Quer dizer, se alguém contrata um cirurgião de média qualidade, mas eventualmente ele se recusa a operar como tal, e não resta outra opção a não ser nomear um cirurgião famoso e caro, o originalmente contratado terá que custear o preço cobrado por aquele.

A obrigação de fazer pode ser relativa às qualidades essenciais da pessoa, ou ela pode nada ter a ver com qualidades essenciais da pessoa, que, caso não desempenhada, qualquer um poderá supri-la.

Obrigações de não fazer

Non altius tollendi: essa obrigação já existia no Direito Romano. O que é isso? É a obrigação de não construir mais alto. Exemplo atual: somos vizinhos e moramos no Lago Sul. Mas tua casa tem uma inclinação mais baixa. Eu me comprometo contigo a não construir um muro acima de três metros para não obstaculizar tua visão. Significa que tenho uma obrigação de não fazer determinada coisa. Mais um exemplo: alguém tem uma fábrica de pastelaria em determinada região. Ele vende esse estabelecimento comercial, ao mesmo tempo que se compromete a não abrir outra fábrica de pastelaria do mesmo gênero naquela mesma região, mas ainda assim estabelece, nas redondezas, outra fábrica semelhante. Nisso ele incide numa das sanções do Código Civil, pois ele assumiu uma obrigação de não fazer.  Art. 250:

CAPÍTULO III
Das Obrigações de Não Fazer

        Art. 250. Extingue-se a obrigação de não fazer, desde que, sem culpa do devedor, se lhe torne impossível abster-se do ato, que se obrigou a não praticar.

Neste primeiro exemplo, do Lago, o GDF diz: agora os muros que cercam as propriedades terão que ter 3,5m de altura, e não mais 3m. Então, quando aquela autoridade pública estabeleceu nova norma, norma essa que tem uma supremacia sobre o pacto privado. Significa que a obrigação de não fazer se dissolve, ou se resolve, como diz o Código sem culpa do devedor, pois é impossível se abster do ato. O poder público o obrigou a descumprir, e o que havia sido pactuado fica resolvido, desfeito.  Nisso vem o art. 251:

        Art. 251. Praticado pelo devedor o ato, a cuja abstenção se obrigara, o credor pode exigir dele que o desfaça, sob pena de se desfazer à sua custa, ressarcindo o culpado perdas e danos.

        [...]

Quer dizer, no exemplo do muro, que se o vizinho constrói algo mais alto do que o combinado, ele fica obrigado a desfazer. Há outra disposição do Código Civil, que diz:

        Parágrafo único. Em caso de urgência, poderá o credor desfazer ou mandar desfazer, independentemente de autorização judicial, sem prejuízo do ressarcimento devido.

Caso de urgência. Imagine que alguém fosse fazer uma inauguração de determinada peça teatral. O que acontece? Houve uma construção, que gerou sombra sobre o local do palco; então o sujeito que construiu alto é obrigado a desfazer sem autorização judicial. Imagine a confusão. Construção pretoriana: decisões reiteradas dos tribunais, como no seguinte exemplo: houve uma invasão de um prédio dentro do limite territorial de outro, desrespeitando o direito de propriedade. Pergunta-se: deve-se mandar destruir o prédio invasor, que já está pronto? Não, a jurisprudência entende que a situação, se for causar um prejuízo ainda maior, essa situação será resolvida apenas em perdas e danos.  


Expressões do dia:

  1. Ipso facto: por conta disso, em decorrência de;
  2. Genus nunquam perit: o gênero jamais perece;
  3. Vis major: força maior;
  4. Intuitu personae: obrigação personalíssima;
  5. Mors omina solvit: a morte solve tudo;
  6. Jus est ars aequi et boni: o Direito é a arte da equidade e do que é bom. Já conhecemos.
  7. Non altius tollendi: não construir mais alto.