Direito Internacional Público

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Conclusão das imunidades, renúncia à imunidade e relação do Estado com a jurisdição local



Qual é mesmo a diferença entre cônsul e diplomata? Que tipo de interesse cada um carrega? O cônsul carrega o interesse das pessoas, enquanto o diplomata preocupa-se com o do Estado. Então, se um particular tem interesse em praticar atos de comércio com determinado Estado, ele deve procurar o cônsul. Outra utilidade é para o registro de nascimento de criança, que vem a conhecer a luz em solo estrangeiro. E várias outras coisas de ordem individual, como também para os que forem condenados a penas graves de restrição de liberdade. Por causa disso é que o quadro dos diplomatas é bem mais amplo do que os dos cônsules. Estes representam o Estado, mas tratam de assuntos particulares. O quadro de imunidades e privilégios é bem mais amplo para o diplomata. Já o cônsul não possui tantas imunidades; elas não são tão amplas quanto às dos diplomatas, mas são limitadas aos seus atos de função. Essa é a diferença fundamental. Vejamos três exemplos de aplicação das imunidades, dois reais e um imaginário, que ocorreram aqui no Brasil.

1971: Cônsul da República Dominicana escreve um memorando aos seus superiores criticando o vice-cônsul, ofendendo-o, acusando de corrupção e incompetência. O vice-cônsul ajuizou uma ação contra o cônsul por injúria. O STF entendeu que o cônsul agira nos limites de sua função, portanto era imune.

1972: Cônsul chileno se envolve em uma briga de vizinhança. Ele praticou lesão corporal contra o vizinho, e, quando invocou sua imunidade, o Supremo entendeu que ela não se aplicava, pois ele não havia agido no domínio de suas funções. Ele foi processado normalmente.

Caso ilustrativo, que caiu no concurso do Ministério Público Federal: era uma vez um casal, de marido estrangeiro, e mulher também, porém de outro país com etnia bem diferente. Ambos têm um filho nascido no Brasil, e se dirigem à repartição consular do Estado para registrar a criança. A funcionária do consulado olha para o bebê e começa a especular sobre as propriedades fenotípicas da criança em relação ao seu pai, chegando à conclusão de que o aquele homem não poderia ser o pai da criança, e terminou por não deixá-los entrar na repartição nem registrá-la, que era o que queriam. Saíram de lá querendo processar a secretária por injúria. Pergunta: havia ela agido no exercício de suas funções? Uma candidata errou a questão por dizer que agiu fora da função, pois ela não estava lá para fazer críticas e comentários sobre os que vêm em busca da ajuda do consulado.

Então somos levados a crer que o crime de injúria, que parece ser comum nos ambientes consulares e diplomáticos, é sempre praticado fora do exercício da função, daí imaginarmos, prontamente, que a imunidade não incide. Não é bem assim. Se o funcionário expede um passaporte falso, isto também seria excesso no exercício da função. Devemos saber, neste caso, o que a Convenção de Viena tem a dizer sobre isso. A expedição de passaporte falso é um ato praticado no contexto do exercício da função. Mas esse raciocínio também é insuficiente, pois um segurança atirar contra um visitante também seria um ato da função. Não aconteceu, mas parece à professora que sim. Raciocinemos: é um ilícito cometido no exercício das funções. Qual seria a diferença entre expedir passaporte falso ou ofender alguém? Tudo é ilícito. O gabarito da questão do MPF acima dizia que fora um ato cometido dentro do exercício da função, pois estava inserto no contexto, analisado mais amplamente. Então podemos inclusive imaginar o disparo feito por um funcionário do consulado, que, apesar de ilícito e excedente, seria um ato praticado no contexto de seu trabalho.

Inviolabilidades: não pode o diplomata ser coagido, processado ou preso. O cônsul pode ser preso, de acordo com a Convenção de Viena de 1963, se o crime for grave e a prisão tiver sido autorizada por autoridade judiciária. O que é crime grave? Essa avaliação está aberta ao juiz. Exemplo: cônsul honorário de Israel foi acusado de fotografar uma adolescente em situação pornográfica e divulgar na internet. Houve uma discussão no STF a respeito da gravidade desse crime. Os ministros se dividiram: uns entenderam que a conduta não era tão grave porque permitia sursis e a pena mínima era só de um ano. Ellen Gracie, por outro lado, entendeu que o crime era grave porque envolvia criança e, de acordo com o Código Penal, se envolve menores de idade, o crime é considerado mais grave, e essa foi a tese vencedora.

Os diplomatas não precisam prestar depoimento, mas cônsules sim, na qualidade de testemunhas ou réus.

Inviolabilidade dos locais consulares: são invioláveis na medida da utilização funcional. O que mais é utilização funcional? A razão de ser do artigo talvez seja porque o cônsul honorário é escolhido, pelo Estado que se faz representar, normalmente entre os nacionais locais. Exemplo: o cônsul brasileiro na Turquia era um turco, comerciante, casado com uma brasileira, e falava muito bem português. Significa então que o Estado não precisaria enviar um cônsul de carreira para exercer tais funções consulares. Normalmente se escolhem pessoas que tenham algum vínculo, que dominem a língua, que sejam considerados por algum motivo amigos daquele Estado. No caso dos cônsules honorários, não existe uma repartição consular; significa que não pode o comerciante pensar que sua loja de tapetes é inviolável no que excede o exercício das funções consulares. Isso para a repartição consular. Já os arquivos e documentos consulares são, assim como os arquivos e documentos diplomáticos, invioláveis onde quer que eles estejam. Se um cônsul esquecer um arquivo ali na mesa do CEUB, o arquivo será inviolável. Não existem grandes diferenças no que se refere à isenção fiscal aos locais consulares. Sobre a residência do cônsul recaem as mesmas imunidades; não há muita diferença entre os cônsules “missi” (de carreira) e cônsules honorários. Ambos gozam da inviolabilidade funcional. 1

Art. 36 da Convenção de Viena sobre Relações Consulares:

Artigo 36

Comunicação com os Nacionais do Estado que Envia

        1. A fim de facilitar o exercício das funções consulares relativas aos nacionais do Estado que envia:

        a) os funcionários consulares terão liberdade de se comunicar com os nacionais do Estado que envia e visitá-los. Os nacionais do Estado que envia terão a mesma liberdade de se comunicarem com os funcionários consulares e de visitá-los;

        b) se o interessado lhes solicitar, as autoridades competentes do Estado receptor deverão, sem tardar, informar a repartição consular competente quando, em sua jurisdição, um nacional do Estado que envia for preso, encarcerado, posto em prisão preventiva ou detido de qualquer outra maneira. Qualquer comunicação endereçada à repartição consular pela pessoa detida, encarcerada ou presa preventivamente deve igualmente ser transmitida sem tardar pelas referidas autoridades. Estas deverão imediatamente informar o interessado de seus direitos nos termos do presente sub-parágrafo;

        c) os funcionários consulares terão direito de visitar o nacional do Estado que envia, o qual estiver detido, encarcerado ou preso preventivamente, conservar e corresponder-se com ele, e providenciar sua defesa perante os tribunais. Terão igualmente o direito de visitar qualquer nacional do Estado que envia encarcerado, preso ou detido em sua jurisdição em virtude de execução de uma sentença. Todavia, os funcionários consulares deverão abster-se de intervir em favor de um nacional encarcerado, preso ou detido preventivamente, sempre que o interessado a isso se opuser expressamente.

        2. As prerrogativas a que se refere o parágrafo 1º do presente artigo serão exercidas de acordo com as leis e regulamentos do Estado receptor, devendo, contudo, entender-se que tais leis e regulamentos não poderão impedir o pleno efeito dos direitos reconhecidos pelo presente artigo.

Sempre que alguém estiver preso, correndo risco de sofrer significativa pena privativa de liberdade, essa pessoa tem direito a que o cônsul de seu Estado seja avisado da situação para que fiscalize as condições de sua defesa, se está recebendo a devida assistência jurídica. É um artigo que sofre múltiplas violações. Só a CIJ já analisou diversas ações propostas por Estados contra os EUA por violação ao art. 36 da Convenção de Viena de 1963. Tudo começou com o caso Angel Breard, nacional do Paraguai que foi condenado à morte, e o cônsul paraguaio não foi avisado. O cônsul ajuizou ação perante a Corte Internacional de Justiça alegando ofensa ao art. 36 da Convenção. A corte autorizou medida cautelar para que a pena não fosse executada, que fosse suspensa. Os Estados Unidos alegaram que isso em nada mudaria a sentença, dada a gravidade do crime. Depois de executado, a ação perderia o sentido. E com isso vem outra questão, que veremos depois: havia uma imunidade quanto ao caráter obrigatório das medidas cautelares. As autoridades locais da Virginia entenderam que as cautelares não eram obrigatórias, e, entendendo grave o crime, executaram o sujeito.

Três anos depois, em 2001, a história se repete com um alemão, chamado LaGrand. Se houve o mesmo entendimento: a medida cautelar e comunicação ao cônsul não influiria no resultado do processo. Mas a diferença é que, enquanto o paraguaio desistiu da ação, a Alemanha prosseguiu, e foi até a resolução do mérito pela CIJ. Queria que a Corte dissesse se houve ilícito internacional e que se reconhecesse a responsabilidade do Estado infrator. A Corte terminou por reconhecer a responsabilidade dos Estados Unidos e também gerou-se o entendimento de que as cautelares tinham sim caráter obrigatório.

Já em 2004, houve um caso com desfecho diferente, o caso Avena. Havia alguns mexicanos no corredor da morte condenados por estupro e homicídio. Os processos foram suspensos e revistos. 2
 

Renúncia à imunidade

Pode um diplomata renunciar à sua imunidade? Não, pois a própria Convenção de Viena prevê que as imunidades não existem para beneficiar indivíduos, mas em função do cargo que existem, do caráter representativo, do interesse de representação dos Estados; então somente o Estado de origem pode renunciar à imunidade de seu agente. No cível isso terá um desdobramento. A questão é que a renúncia precisa ser dupla: primeiramente no processo de conhecimento, depois no processo de execução. No penal, a renúncia é ampla. Não se conhece um caso de renúncia à imunidade diplomática no cível, mas sim no penal. Um deles ocorreu no início do século XX, em Bruxelas, que foi o caso Balmaceda – Waddington. Ernesto Balmaceda, chileno de 19 anos, foi designado em 1905 para servir como diplomata na embaixada do Chile em Bruxelas. Seu superior imediato, Luis Waddington, tinha dois filhos: Carlos e Adelaida. Balmaceda cortejou Adelaida e a família logo descobriu que ele a havia deflorado, e a pressão para se casarem começou. Balmaceda foi forçado a noivar com Adelaida, contra sua vontade, e a noticia viria a público num jantar, alguns dias depois. Balmaceda secretamente escreveu para que sua família providenciasse sua transferência de embaixada para que não fosse forçado a se casar. Antes que conseguisse, a notícia vazou, e Carlos, o futuro cunhado, foi confrontá-lo e certificar-se de que Balmaceda cumpriria sua palavra. Quando negou-se a prosseguir com o casamento, Carlos Waddington lhe atirou três vezes.

Carlos foge para a embaixada do Chile e alegou imunidade diplomática e extraterritorialidade. A Bélgica não deu prosseguimento ao processo pois precisava de um aval do Estado chileno para fazê-lo. Luis Waddington, pai de Carlos, e um representante do Estado do Chile compareceram à Bélgica para expressamente renunciar à imunidade diplomática de Carlos. Ele foi julgado, e terminou absolvido em 1907, quando a justiça entendeu que ele agira em legítima defesa da honra da irmã.

Apesar desse quadro amplo de imunidades, as Convenções de Viena deixam bem claro que é preciso que um agente estatal ou estrangeiro respeite o Direito local. “Imune sim, mas ninguém está dispensado de observar o Direito do local de trabalho”. As próprias Convenções de Viena insistem nesse aspecto.

Acabamos a parte de imunidades, inviolabilidades e isenções.
 

Estado estrangeiro e jurisdição local

Estávamos falando até agora das imunidades das pessoas. As imunidades dos agentes estão previstas nas Convenções de Viena de 1961 e 1963. Vamos falar agora das imunidades do próprio Estado estrangeiro, da pessoa jurídica de direito público externo. Esta imunidade não está prevista em nenhuma Convenção de Viena. Talvez porque os Estados pactuantes tenham presumido que era desnecessário, já que previu que as imunidades dos agentes estatais e que as convenções não eram para beneficiar indivíduos, mas sim em função do caráter representativo das funções. Então, pensou-se que não era necessário mencionar a imunidade do próprio Estado. Isso pode ter passado isso pela cabeça dos pactuantes. Fato é que o Estado estrangeiro é imune à jurisdição local, significando que o Estado não pode se submeter à autoridade de outro Estado. Por quê? Princípio da igualdade soberana dos Estados. “entre os pares, não pode haver jurisdição nem juízo.” Os iguais não se julgam. Essa regra é uma regra de caráter costumeiro. Durante muito tempo essa regra teve caráter absoluto; sempre que se ajuizava uma ação contra um Estado estrangeiro, as autoridades cuidavam de julgar extinto o processo.

Nessa época, a presença de um Estado no território de outro era limitada aos agentes estatais, cônsules e diplomatas. Depois da segunda guerra mundial, começou a se tornar freqüente a presença de um Estado no território de outro, como em atos de comércio e atividades de investimento; assim eles começaram a se fazer representar, e praticavam atos em que se encontravam empresas, grandes corporações, contratos de trabalho, prestações de serviços, e tudo que podemos imaginar em matéria de contratos, numa atividade que excedia à representação estatal. Começou a se perceber que os particulares que contratavam Estados estrangeiros ficavam desamparados, desprovidos de jurisdição. Ocorreu num dos grandes centros de efervescência capitalista na Europa. Isso virou motivo de preocupação. E, aí, as jurisdições começaram a desenvolver, por elas próprias, uma teoria de imunidade limitada. O que é isso? É a idéia de que os Estados têm capacidades típicas. Os Estados praticam atos típicos de soberanias, mas também podem praticar atos de uma empresa privada. Então, quando os Estados praticam atos tipicamente estatais, eles merecem a imunidade da jurisdição. Quando agem como empresas privadas, praticando atos típicos delas, então, de acordo com o entendimento dessas jurisdições, eles não merecem a imunidade. É a diferença então entre jure gestionis e atos de jure imperii, que são transações feitas por Estados ou seus representantes, como os diplomatas, que asseguram a manutenção da imunidade por terem caráter de atos públicos, enquanto os atos de jure gestionis (atos de mera gestão) são atos de caráter privado, ainda que praticados por Estados ou seus representantes. 3

A jurisdição então observava se o Estado agia de fato como uma soberania ou se comportando como um particular. As ações eram diversas, com violação de propriedade intelectual, liberdade civil, exploração de navios, participação em sociedades comerciais, e assim por diante. Ocorreu, então, a quebra da imunidade absoluta do Estado. Ela continuou existindo, mas deveria ser aferida caso a caso. Havia, então, uma necessidade de se uniformizar isso, pois precisavam-se de regras, de segurança jurídica. A primeira tentativa de codificação foi a Convenção Européia sobre Imunidade do Estado, firmada em Basiléia, na Suíça, em 1972. Em 14 artigos, ela elenca situações, pensando em atos do Estado suscetíveis de serem considerados como atos de gestão, que são atos de natureza privada, e que são ensejadores da quebra da imunidade do Estado. A convenção não produz nenhum tipo de definição geral. Não há um conceito filosófico, abstrato, dizendo exatamente o que é um ato de gestão, mas é inteiramente casuística. Prevê relações jurídicas entre particulares e Estado que poderão ensejar a quebra da imunidade do Estado. São, por exemplo, questões de responsabilidade civil, danos produzidos pelo Estado aos particulares, e tudo o que as jurisdições já previam, como participação na sociedade, atos de comércio, e assim sucessivamente. Assim houve esse movimento, essa tentativa de codificação daquilo que as jurisdições locais já elaboraram como teoria da imunidade limitada.

Isso foi incorporado por algumas legislações locais, como a americana, que editou o Foreign Sovereign Immunities Act (Ato sobre Imunidades das Soberanias Estrangeiras) em 1976. Lesão corporal, por exemplo: o Estado teria responsabilidade civil por ela. A legislação britânica trouxe uma novidade: classificava como ato de natureza privada um contrato de trabalho entre representações diplomáticas com os particulares locais. Quando admitiam um particular local para trabalhar em sua embaixada, o Estado estrangeiro praticava um ato que não seria imune à jurisdição inglesa.

Mas isso tinha um problema, que inevitavelmente causava confusão: era em relação à execução da sentença. Por quê? Porque era preciso encontrar bens pertencentes ao Estado estrangeiro que não fossem afetos à missão de serviço público do Estado. Chegou-se a dizer que os bancos centrais não poderiam ser executados, nem um fundo, porque era destinado ao pagamento de verbas diplomáticas... Então o problema persistiu depois das Convenções de Viena por que dificilmente se encontrariam, dentro de um Estado, bens que fossem de propriedade do Estado estrangeiro que não fossem imunes, como a própria embaixada ou o consulado. Começou, portanto, a se formar, aqui, a teoria da imunidade de jurisdição limitada, limitação essa em relação aos atos de soberania ou de Estado. Começou a se formar uma nova regra costumeira, que era nada mais, nada menos do que a relativização da imunidade. Antes, havia a imunidade absoluta do Estado estrangeiro; depois disso, a imunidade foi limitada aos atos de jure imperii. (atos de império)

Como o Brasil se inscreveu nesse movimento? Em 1989, há 20 anos, portanto, um pouco depois. Isto explica porque a presença do Estado brasileiro nesses outros Estados era mínima, quase sempre ligada à representação estatal, à atividade consular e diplomática. Até 1989 havia muitas ações contra o Estado, especialmente trabalhistas. Havia muitas ações trabalhistas contra as embaixadas. Como a embaixada não é pessoa jurídica, então a ação era ajuizada contra o próprio Estado. As pessoas que trabalhavam durante anos eram demitidas, sem recolher nenhum tipo de verba trabalhista. Então a justiça federal foi acionada e alegava-se imunidade de jurisdição, culminando na extinção do processo. Até que em 1989, uma ação ajuizada por um funcionário da República Democrática Alemã chegou ao Supremo Tribunal Federal.  Leiam o voto do então Ministro J. F. Rezek 4, de poucas páginas. Ele votou no sentido de conhecer e dar provimento à apelação cível em questão, por importar o entendimento de que a imunidade dos Estados não mais era absoluta, mas que deveria “comportar temperamentos”. Está mais bem explicado do que no próprio livro. É a apelação cível 9696-3/89. O ministro Sydney Sanches era o relator. Dizia ele que competia à justiça do trabalho julgar demandas contra o Estado estrangeiro, e que esse artigo da Constituição (art. 114) já quebrava a imunidade do Estado estrangeiro. Mas Rezek dizia que era regra de competência e não de jurisdição, dizendo que era da justiça do trabalho receber demandas trabalhistas contra o Estado estrangeiro. Ambos votaram no mesmo sentido, mas com fundamentos diferentes. Antes, essas demandas eram recebidas pela justiça federal, e deveriam ser executadas pela justiça do trabalho. Isso não quer dizer que a justiça do trabalho seja obrigada a julgar o feito. Ela poderia, se quisesse, reconhecer a imunidade de jurisdição como se fazia a justiça federal antes. A imunidade do Estado é uma regra de natureza costumeira, que deve ser buscada no costume internacional. Como reconheceremos a existência desse costume? Olhando as decisões jurisdicionais do mundo inteiro, a convenção Européia, com a tentativa de codificação, que olhava para as legislações nacionais, o que atestaria a existência de uma nova regra costumeira. Então leia o voto, que lança um olhar sobre esse movimento e diz que o costume mudou. Aquela norma absoluta da imunidade de jurisdição caiu em desuso; a regra costumeira, o direito costumeiro consagra a imunidade relativa dos atos do Estado. E admitindo então que a norma agora tem caráter relativo é que se entendeu que o Estado, nas causas de natureza trabalhista, não era mais imune, e poderia ser processado. A justiça do trabalho deveria receber e analisar se o particular teria razão ou não. A partir daí os Estados deixam de ser imunes em caráter absoluto à jurisdição local. O Supremo reconhece a relativização da imunidade, a partir dessa decisão, baseada numa norma costumeira internacional.  

Na execução dessas sentenças, ainda existe o Estado; mas quais os bens disponíveis para a execução? O que sabemos é que os bens da missão diplomática são invioláveis. Os bens consulares também. E agora? Como encontrar, sobretudo no Brasil, bens que não tenham a ver com a atividade diplomática e consular sobre as quais recai uma imunidade costumeira? Havia uma funcionária da embaixada americana que tinha uma grossa soma a receber. O que fazer? Chegaram a cogitar entregar a ela a Casa Thomas Jefferson.

E o que entende a jurisprudência como sendo um ato de natureza privada? Se pesquisarmos, veremos que tipo de processo existe contra um Estado. Contrato de prestação de serviços, por exemplo, em que a embaixada se recusa a pagar o vidraceiro. Ou os honorários de um médico. Outro caso, em que vem sendo quebrada a imunidade absoluta, é o delito de trânsito, cometido por agentes estatais, que são imunes, mas o Estado representado não é.

Jucelino da Nóbrega: vidente ao qual se atribuem algumas descobertas. A embaixada americana havia oferecido recompensa a quem descobrisse algo, e, mesmo depois de Jucelino surgir com a resposta, ele jamais recebeu a recompensa. Ajuizou ação contra os EUA 5. Alegaram que esse ato não era exatamente um ato trabalhista típico nem contrato de prestação de serviços. Não havia nada parecido com isso até então. A conclusão que podemos tirar é que relações jurídicas entre Estados estrangeiros e particulares locais são problemáticas.

Olhem a armadilha: execução fiscal contra um consulado. O que é isso? Quem ajuíza ação de execução fiscal é a Fazenda Pública, como, por exemplo, a Fazenda Nacional contra o Consulado Francês em SP. Em primeiro lugar, a Fazenda é pessoa jurídica, em que o Estado está por trás. Então, esta é uma ação de Estado contra Estado, o que é impossível. Neste caso, dever-se-ia acionar a Corte Internacional de Justiça. Somente relações jurídicas entre particular e Estado que ensejam a quebra da imunidade do Estado.

Litígio entre dois Estados não justifica a quebra da imunidade. O que não pode é particular ficar desprovido de jurisdição numa relação com outro Estado. 6

Caso interessante: em um certo Estado do hemisfério norte, o filho de um embaixador de outro Estado teve um incidente com o segurança de uma boate. Houve briga, e o segurança sofreu lesões corporais de natureza grave. A polícia chega ao local e constata a imunidade. E agora? Não havia como processar penalmente o sujeito porque ele era imune, mas a solução foi processar o Estado de origem do sujeito. Os Estados agem por meio dos seus representantes. Quando o filho de um diplomata bate em seu carro, a jurisprudência já entende que o Estado deve ser responsabilizado.

É difícil executar as sentenças. Na Itália, uma empresa brasileira de navios chegou a ser executada. 7

Sobre essa dificuldade de se tipificar o que é um ato de gestão, já que não existe uma definição geral, que é invariavelmente casuística, temos que listar alguns. Um deles é o ato de comércio. Mas, enfim, alguns são fáceis de identificar sem conflitos, enquanto outros são mais obscuros. As Nações Unidas está há décadas já trabalhando num projeto de tratado. A convenção de 2004 das Nações Unidas sobre a imunidade de seus Estados ainda não está em vigor. Nem se vêem referências a ela nos manuais. Mas ela atesta a existência desse Direito costumeiro internacional. 


Dêem uma olhada nessas 6 páginas do voto do Ministro Rezek, pesquisem rapidamente sobre o tema, e dêem uma olhada nas ementas dos tribunais.
  1. Faltou uma pequena frase, que não capturei, sobre as imunidades dos funcionários consulares, no final deste parágrafo.
  2. A professora adverte: cuidado antes de cometer um crime nos EUA, pois haverá uma chance de o art. 36 da Convenção de Viena sobre Relações Consulares ser violado lá.
  3. Fontes: http://www.proz.com/kudoz/french_to_english/law_general/3129986-jure_imperii.html e http://www.highbeam.com/doc/1O49-juregestionis.html, acessíveis em 29/08/09.
  4. http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?numero=9696&classe=ACi
  5. http://www.stj.jus.br/webstj/Processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200400885222&pv=000000000000 – RO nº 39. Na página que abrir, escreva “RO 39” sem aspas, no primeiro campo.
  6. Neste parágrafo e antes dessas palavras, a professora mencionou o caso Egito-Síria, quando formaram a República Árabe Unida, que logo causou problemas entre os povos originários de cada um dos Estados.
  7. Não encontrei esse caso.