Vamos agora ao Capítulo III do Título I da parte especial do Código Penal. Este é o capítulo que trata da periclitação da vida e da saúde.
Fala-se, aqui, em perigo de dano. Por perigo entendemos a mera exposição. Se tivermos qualquer resultado naturalístico, excluímos o perigo, e falamos do próprio dano. No primeiro caso, que é o do art. 130, temos o perigo de contágio venéreo:
Art.
130 - Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato
libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber
que está contaminado: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa. § 1º - Se é intenção do agente transmitir a moléstia: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. § 2º - Somente se procede mediante representação. |
A partir do momento em que se expõe alguém à possibilidade de contrair moléstia contagiosa por sexo ou ato libidinoso, devendo saber que se tem a moléstia, o sujeito já está expondo, que é o verbo do tipo, então o crime já está verificado. Se a moléstia for transmitida, já estaremos na situação da lesão corporal. No caso, lesão corporal gravíssima, se houver enfermidade incurável ou de difícil cura.
Os crimes de perigo são crimes formais, que são os que a consumação se dá imediatamente. Passemos, então, à classificação doutrinária dos crimes de perigo:
Objetividade jurídica: as normas penais dos arts. 130 a 136 existem para proteger a vida e a saúde.
Sujeito ativo: encontraremos alguns autores, a exemplo de Guilherme de Souza Nucci, dizendo que o crime de perigo é crime próprio, o que é um entendimento da corrente minoritária. Pode, de acordo com a corrente majoritária, ser qualquer pessoa que tenha moléstia venérea grave. Nucci entende que, por ser qualquer pessoa que tenha doença venérea, o crime é próprio, pois há uma discriminação da pessoa, uma especificação. O entendimento majoritário dirá que é um crime comum. Doença venérea é qualquer doença relacionada ao sexo.
Sujeito passivo: qualquer pessoa mesmo. Nisso não há divergências na doutrina.
Tipo
objetivo: falamos do dolo, do verbo. O verbo é expor,
que é “colocar em risco”.
Tipo subjetivo: intenção do agente. Temos duas modalidades: a dolosa, em que o agente quer o resultado e age no sentido de atingi-lo, e a culposa, porque o tipo diz que “sabe que tem ou deveria saber que tem (a moléstia)”. Nesse último caso, o agente atua com negligência (facere, pois o sujeito age positivamente ao transmitir), portanto neste crime fala-se tanto de dolo quanto de culpa.
É
um crime de
ação livre. Mas temos
mais uma divergência em relação a Guilherme Nucci.
Ele dirá que não é crime de
ação livre, pois o ato tem que ser sexual. Apesar de ele
pertencer ao
entendimento minoritário em relação a isso, a
professora corrobora o
entendimento dele.1 Nucci entende que o crime
não
é de ação livre
pois não é por qualquer ato que se perfaz a conduta,
já que não se pode
transmitir a doença venérea com um olhar; entretanto a
corrente majoritária defende
que é sim por qualquer ato. Passar
a
mão em alguém, a
princípio, não é um ato libidinoso; se a
mão está contaminada e o agente tem a
intenção de transmitir a moléstia, o autor
não incorrerá no § 2º do art. 130,
mas responderá por tentativa de lesão corporal. Se,
entretanto, o contato da
mão for, em si, libidinoso, aí sim o sujeito
responderá pelo perigo de contágio
venéreo qualificado pela intenção de transmitir a
doença (veremos a forma
qualificada adiante), mais estupro, em concurso formal
impróprio. 2
Ato libidinoso: qualquer ato que estimule o prazer, a libido. Ato sexual: a cópula mesmo, com penetração, vaginal ou anal.
É, portanto, crime de ação vinculada.
Ação penal: pública condicionada à representação. Por quê? É uma situação em que se lida com a intimidade da pessoa, portanto, pelos motivos que estudamos em Direito Penal 2, o Estado deve atuar, mas faculta à vítima a possibilidade de ela não ter sua desgraça exposta. Ela precisará oferecer representação ao Ministério Público.
É admitida a tentativa. Exemplo: um casal está prestes a iniciar a cópula sem preservativo. O homem está contaminado e a parceira ainda assim aceita realizar o ato sexual, desde que ele use preservativo. O parceiro nega e, aproveitando que os dois já estão nus e abraçados, ele tenta penetrá-la, mas ela pula fora da cama. Está configurada a tentativa do crime de perigo de contágio venéreo. Isso porque seria preciso que a penetração ocorresse para que a parceira fosse exposta ao risco. Se o homem tivesse sucesso na investida, uma vez penetrada, a mulher já estaria exposta e em perigo de contrair a moléstia, e o crime já estaria configurado.
Temos a forma qualificada, descrita no § 1º:
§ 1º - Se é intenção do agente transmitir a moléstia: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. |
O parágrafo fala sobre a vontade de transmitir. Quando estamos no caput, falamos em exposição da vítima à possibilidade do contágio. A pena para a forma qualificada é reclusão de 1 a 4 anos. O caput do art. 130 descreve um crime culposo, mas, se incide a qualificadora, é porque temos dolo. Se o agente sabe que tem a doença e expõe a vítima, há que se verificar o caso concreto: se ele sabe que tem a doença e não se importa se a vítima irá contraí-la ou não, o agente age com dolo eventual; se ele sabe que tem a doença e sabe de seus riscos, mas não acredita que a parceira será infectada, significa que ele agiu com culpa consciente, e, por fim, se ele sabe que tem a doença mas sequer imagina que tenha chances de transmiti-la à parceira, ele agiu com culpa inconsciente. Agora se, entretanto, o agente não sabe que tem a doença e expõe a parceira, ainda assim fala-se em culpa inconsciente. O dolo do caput é a exposição.
Se
o agente quer
transmitir, mas
não tem a doença e não sabe disso, o crime
é impossível.
Perigo de
contágio de moléstia grave
Art. 131:
Art.
131 - Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que
está contaminado, ato capaz de produzir o contágio: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. |
No artigo anterior tínhamos a exposição, já aqui temos a prática propriamente dita. Veja a ação nuclear: praticar. Prática de que? Qualquer ato. Neste caso então, necessariamente temos que ter dolo, e não há possibilidade de culpa. Tanto que diz o tipo: “...com o fim de...” Então, se por acaso o sujeito age, libidinosamente ou não, com a intenção de transmitir moléstia de que está contaminado, de tal forma que o contágio tenha chances de acontecer, ele já incorre no art. 131.
Moléstia grave é totalmente diferente de moléstia venérea. Esta é relativa ao sexo. A moléstia grave depende de perícia médica para ser constatada. O conceito de moléstia grave é qualquer manifestação nociva de evolução mórbida ou de difícil cura.
Exemplo: gripe suína. O sujeito pode surgir no ambiente espirrando, por isso é uma ação livre, e não precisa ser sexual.
Se o sujeito tem a intenção de passar para alguém uma DST mas não foi por nenhum outro ato que não o libidinoso ou a relação sexual ele está também no tipo do artigo.
Diga que o sujeito tem AIDS. Ele quer transmitir para o parceiro, e mantém com ele ato sexual. Neste caso ele está no artigo anterior. Se, no entanto, ele quer transmitir a alguém, mas não tem parceiro, então não pode ser por ato venéreo. Assim ele decide pegar o sangue e esfregá-lo. Neste caso, a moléstia é venérea, mas a forma de transmissão se caracteriza pela lesão corporal, tentada ou consumada. Este detalhe cairá na prova.
Vamos à qualificação do crime.