Direito Penal

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Crimes de perigo – continuação


Tópicos:
  1. Perigo de contágio venéreo
  2. Perigo para a vida ou saúde de outrem
  3. Abandono de incapaz
  4. Abandono de recém-nascido
  5. Omissão de socorro

Perigo de contágio venéreo

Art. 130:

CAPÍTULO III
DA PERICLITAÇÃO DA VIDA E DA SAÚDE

        Perigo de contágio venéreo

        Art. 130 - Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado:

É um capítulo do Código Penal sobre o qual temos certa divergência. Estamos acostumados a lidar com coisas racionais, e que de preferência nos levem a uma solução certa. O Direito não é certo; ele se faz por posicionamentos. Nos crimes contra o patrimônio, ocorre muita divergência tanto na doutrina quanto na jurisprudência. É fácil haver modificação nas duas. Então, devemos adotar um posicionamento e fundamentar. Se ninguém mais o adota, então pode ser caso para repensá-lo. Procure pesquisar sobre outro pensador que corrobore essa visão. Por quê? Por que, aqui nos crimes de perigo, e na periclitação da vida e da saúde, deve-se tomar cuidado, principalmente quem adota a obra de Fernando Capez, que diz que nos crimes de perigo não existe  a questão da forma, como se falar em crime formal ou material. Ele adota os conceitos de perigo concreto e abstrato. O concreto é o que tem que ser aferido caso a caso, enquanto o abstrato é o notório, e dispensa a discussão. A professora não gosta dessa parte específica da obra de Capez portanto não a adota, mas jamais retira a recomendação para que leiamos o autor. O Cespe também não adota o Capez nesse ponto.

Então voltemos aos crimes de perigo.

Quando falarmos em perigo de contágio venéreo, teremos uma situação de exposição. Essa é a ação nuclear do tipo. Para a consumação do crime, basta a mera exposição. A tentativa não está ligada à transmissão; mas o agente tenta ter relação sexual com aquela pessoa e não consegue. A transmissão é mero exaurimento do crime. Acharemos divergência dizendo que, no caput, quando menciona que o agente deveria saber que está contaminado, isso não seria uma situação de culpa, mas de dolo eventual. Mas nesse particular a jurisprudência adota o posicionamento de Magalhães Noronha. Então falamos na modalidade culposa sim: a pessoa que deveria saber que estava contaminada em função dos atos praticados anteriormente: se ela é sexualmente ativa, tem muitos parceiros e não costuma usar preservativo, é de se pensar que ela provavelmente tem uma moléstia.

A culpa será consciente ou inconsciente? Não fará diferença.

Logo, para haver perigo de contágio venéreo, temos que ter duas situações: transmissão por meio do ato libidinoso, ou por meio de relação sexual. Ao tentar transmitir a moléstia com a mão, não estamos mais no crime de perigo de contágio venéreo, mas lesão corporal. Caiu na prova do Cespe se era possível enquadrar neste artigo a transmissão da moléstia com a mão. Então, para que se tenha perigo de contágio venéreo, basta haver a mera exposição de uma DST. O método de transmissão tem que ser ato libidinoso ou relação sexual. E nisso existe mais uma divergência, sobre AIDS: Magalhães Noronha admite a AIDS como doença venérea, enquanto Capez e Nucci entendem que doença não estaria dentro do conceito de doença venérea. Vejamos: o contágio é mera exposição, assim já temos o crime consumado. Se houver qualquer resultado, o crime não é simplesmente de expor. Se a pessoa é contaminada mesmo, então já passamos para um crime mais grave: lesão corporal ou homicídio. Por isso a situação da AIDS ficou um pouco complicada nessa discussão. É DST, de acordo com Magalhães. Se expuser e a vítima não pegar a doença, já temos pelo menos o perigo de contágio venéreo. A outra parte da doutrina dirá que AIDS não é perigo de contágio venéreo, pois, como não tem cura, no momento em que se expõe, há o risco assumido de matar ou há o próprio animus necandi, então fala-se em homicídio.

Logo, para que se configure o crime de perigo de contágio venéreo tem que ter relação sexual ou ato libidinoso. Se pegar a doença, será caso de lesão corporal ou homicídio.
 

Perigo de contágio de moléstia grave

Art. 131:

        Art. 131 - Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio:

        Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

        Perigo para a vida ou saúde de outrem

O perigo de contágio de moléstia grave é mais amplo, porque pode se dar por qualquer meio de transmissão. Não precisa ser por ato libidinoso. Para que se verifique o crime de perigo de contágio de moléstia grave, precisa-se de perícia técnica. É outra situação de exposição de perigo, porque a partir do momento em que a pessoa é contaminada, não falamos mais em perigo, mas em lesão corporal ou homicídio.
 

Perigo para a vida ou saúde de outrem

Art. 132:

        Art. 132 - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:

        Pena - detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.

        Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais.

O cuidado aqui é com os crimes de perigo comum, a partir do art. 250. A situação de perigo pode ser qualquer uma, e será verificado caso a caso. Este é um crime residual, subsidiário, e só será enquadrado quando não se puder enquadrar a conduta em mais nenhum outro tipo. Vamos qualificar doutrinariamente.

  1. Objetividade jurídica: vida e saúde, como todos os crimes de perigo.
  2. Sujeito ativo: qualquer pessoa.
  3. Sujeito passivo: pessoas certas e determinadas. Quando falamos isso, não precisamos saber nome, CPF e identidade. É um grupo identificável, que está em determinado lugar, portanto. Algo que pode ser selecionado dentro do ambiente.
  4. Tipo objetivo: exposição, dolo. Não há modalidade culposa; o dolo é necessário, seja direto ou eventual.
  5. Tipo subjetivo: vontade livre e consciente. Observação: se sobrevier qualquer resultado, não se tratará mais deste crime, pois este é residual. A exposição de perigo e à saúde, desde que não corresponda a um fato mais grave. Ligar o celular e fazer uma ligação ou enviar uma mensagem SMS em pleno vôo, já que as companhias aéreas e a ANAC afirmam ser um grande risco, é expor a vida de outrem a perigo direto e iminente. Também incorre no art. 132 o sujeito que resolve brigar com o motorista de ônibus em pleno movimento. Se vier ocorrer lesão de alguém, o crime já será outro.

Muito se cobra sobre o disparo de arma de fogo. E também a situação da pessoa que, embriagada, dirige ao volante. Se for o primeiro caso, aplicamos a lei do desarmamento, que é a lei especial, por força do princípio da especialidade. E, quanto ao alcoolizado no volante, aplicamos o art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro:

        Art. 306.  Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de  álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: (Redação dada pela Lei Seca)

        Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Antes de 1997, portanto, antes de 23 de janeiro de 1998, que foi quando o CTN entrou em vigor, ao agente que dirigisse alcoolizado seria imputado o crime de perigo para a vida ou saúde de outrem.

A outra situação que temos é a causa de aumento no parágrafo único:

        Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais. (Incluído pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998)

Significa que a causa de aumento não incide se o transporte é para lazer. Se é para lazer, em razão do princípio da reserva legal, não poderemos aplicar. Essa norma surgiu para acabar com o risco para a atividade dos bóias-frias, mas não teve eficácia alguma. Não interessa se é transporte público ou particular. E mais uma situação: para que se aplique essa causa de aumento, o transporte deverá estar sendo feito em desacordo com as normas legais. Na prova cairá de maneira bem besta. Cuidado também na hora de aplicar o CTN em vez do CP.

Se sobrevier uma situação de lesão corporal, responde-se por lesão corporal. Se sobrevier a morte, o sujeito responde por homicídio culposo.

Vamos agora dar um pulo para o art. 250:

TÍTULO VIII
DOS CRIMES CONTRA A INCOLUMIDADE PÚBLICA

CAPÍTULO I
DOS CRIMES DE PERIGO COMUM

        Incêndio

        Art. 250 - Causar incêndio, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem:

        Pena - reclusão, de três a seis anos, e multa.

        Aumento de pena

        § 1º - As penas aumentam-se de um terço:

        I - se o crime é cometido com intuito de obter vantagem pecuniária em proveito próprio ou alheio;

        II - se o incêndio é:

        a) em casa habitada ou destinada a habitação;

        b) em edifício público ou destinado a uso público ou a obra de assistência social ou de cultura;

        c) em embarcação, aeronave, comboio ou veículo de transporte coletivo;

        d) em estação ferroviária ou aeródromo;

        e) em estaleiro, fábrica ou oficina;

        f) em depósito de explosivo, combustível ou inflamável;

        g) em poço petrolífico ou galeria de mineração;

        h) em lavoura, pastagem, mata ou floresta.

        Incêndio culposo

        § 2º - Se culposo o incêndio, é pena de detenção, de seis meses a dois anos.

Note que o art. 250 está no Capítulo I (dos crimes de perigo comum) do Título VIII, que é o título dos crimes contra a incolumidade pública. Veja bem: perigo comum. Lembram que falamos em pessoas certas e determinadas no sujeito passivo do tipo penal do art. 132? Não é o caso aqui. Se estamos num avião, o grupo de passageiros é determinado e seleto. Mas, se tenho uma cerca eletrificada, e fico torcendo para que invadam meu domicílio, não falamos mais em grupo certo, pois qualquer um poderá cair na armadilha do ofendículo. Daí perigo comum.

E o avião que estiver para cair sobre uma região habitada? Ele poderá muito bem cair na cabeça de alguém. Neste caso sim, é argüível a imputação de crime de perigo comum.

O crime de perigo para a vida ou saúde de outrem não admite tentativa para a maior parte da doutrina. Entretanto para a jurisprudência é perfeitamente admissível. Capez, Nucci e Cespe admitem.
 

Abandono de incapaz

Art. 133:

        Abandono de incapaz

        Art. 133 - Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono:

        Pena - detenção, de seis meses a três anos.

        § 1º - Se do abandono resulta lesão corporal de natureza grave:

        Pena - reclusão, de um a cinco anos.

        § 2º - Se resulta a morte:

        Pena - reclusão, de quatro a doze anos.

        Aumento de pena

        § 3º - As penas cominadas neste artigo aumentam-se de um terço:

        I - se o abandono ocorre em lugar ermo;

        II - se o agente é ascendente ou descendente, cônjuge, irmão, tutor ou curador da vítima.

        III – se a vítima é maior de 60 (sessenta) anos (Incluído pela Lei nº 10.741, de 2003)

Abandonar incapaz é deixar de prestar assistência a ele. É pessoa que está sobre seu cuidado, autoridade ou vigilância.

É considerado crime formal. Basta o ato de abandonar, e não precisa de nenhum resultado naturalístico para que se verifique o crime.

Outra observação: abandonar é não querer mais o incapaz. Abandonar temporariamente, por outro lado, configura o crime de maus-tratos.

Situações qualificadas:

§§ 1º e 2º:

        § 1º - Se do abandono resulta lesão corporal de natureza grave:

        Pena - reclusão, de um a cinco anos.

        § 2º - Se resulta a morte:

        Pena - reclusão, de quatro a doze anos.

São qualificadoras, então substituímos a pena do caput, ainda na primeira fase. Temos também causas de aumento: se por acaso abandona-se o incapaz, que não necessariamente é uma criança, em local ermo, há aumento de pena de 1/3. O local ermo é um local solitário, com pouco fluxo de pessoas. Segunda causa de aumento: ser o agente cônjuge, ascendente, descendente, irmão, curador, tutor da vítima. Macetinho: “CADICuTu”. Isso porque a assistência relativa a essas pessoas presume-se maior. Terceira possibilidade de causa de aumento: ser a vítima maior de 60 anos. Esse inciso foi acrescentado com o Estatuto do Idoso.
 

Abandono de recém-nascido

Art. 134:

        Art. 134 - Expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria:

        Pena - detenção, de seis meses a dois anos.

        § 1º - Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:

        Pena - detenção, de um a três anos.

        § 2º - Se resulta a morte:

        Pena - detenção, de dois a seis anos.

Encontraremos jurisprudência dizendo que o disposto neste tipo penal é um privilégio em relação ao abandono de incapaz. Não aceitem isso. Abandono de recém-nascido é deixar o recém-nascido sem assistência. Vamos qualificar.

Causas de aumento:

Se resultar lesão corporal grave ou gravíssima ou morte, não estamos mais na pena do caput, mas na da qualificadora. A pena, que era detenção de seis meses a dois anos, passará para detenção de um a três anos, caso resulte lesão corporal grave ou gravíssima, ou detenção de dois a seis anos, se resultar morte.
 

Omissão de socorro

Art. 135:

        Omissão de socorro

        Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:

        Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

        Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.

Omissão de socorro é deixar de prestar assistência podendo fazê-lo sem prejuízo de exposição própria a uma pessoa que esteja em situação de perigo iminente. Também considera-se omissa a pessoa que deixa de ligar para a autoridade competente pelo socorro.

Notem que, no abandono de incapaz, há o liame do dever legal de cuidado, mas aqui não.

Isso é o caput.

Não pode haver situação de garante, ou de dever jurídico. Qualifiquemos o crime:

Quanto à omissão de socorro, já sabemos que a conduta está prevista dentro do homicídio culposo. Então, na situação de omissão de socorro juntamente com homicídio, a primeira pergunta a se fazer é: teve a omissão algum nexo de causalidade com aquele homicídio? Se sim, estamos dentro do homicídio culposo, no art. 121, § 4º.

Passar de carro por um acidente e não prestar socorro: responde-se por omissão de socorro, pois houve nexo com o resultado, caso as vítimas do acidente venham a morrer. Se, entretanto, o motorista pára o carro para socorrer as vítimas e se impressiona com o a cena sangrenta, também há relação de causalidade. Foi homicídio culposo. Neste caso responde-se por homicídio culposo qualificado. CUIDADO. Essa expressão é errônea, pois o § 4º é uma causa de aumento, e não uma qualificadora do homicídio culposo, então não se deve falar em homicídio culposo qualificado.

Não se responde pelos dois crimes.

O caput diz que a assistência tem que ser prestada desde que isso não importe risco pessoal. O risco patrimonial é irrelevante como escusa. Então, não pode o agente pretender se eximir da culpabilidade alegando que, em vez da vítima, ele preservava seu patrimônio.

Última observação: expor-se a perigo é entrar em estado de necessidade. Ninguém espera de nós uma situação de heroísmo.