Direito Civil

segunda, 12 de abril de 2010

Mútuo


 

Vamos terminar o estudo do mútuo hoje. O que é mesmo? Contrato para o consumo de bens fungíveis.

Traços característicos: temporariedade. Se não for temporário, ele será, na verdade, uma doação. A restituição é necessária para diferenciar o contrato de mútuo do contrato de doação. Outro traço importante é que ele não é intuitu personae, diferentemente do comodato. Por quê? Como a maioria dos mútuos são em dinheiro, e como se tratam de negócio feito pelo mutuante, esqueça a pessoalidade. “Empresta-se dinheiro!” (a quem pagar). Por existir um interesse econômico, ele não será personalíssimo.

Exemplo de mútuo: emprestarei dinheiro para que alguém construa uma casa. Se a pessoa não construir, o contrato não terá sido cumprido. Significa então que o mútuo pode ter uma destinação, que faz parte do contrato, e é obrigação contratual.

 

Capacidade

O art. 104 dispõe que a validade do negócio jurídico requer agente capaz. Vamos, então, começar pela capacidade do mutuário, que é aquele que pega emprestado o bem. Se empresto para menores, o contrato não terá validade. Por não ter validade, não se pode reaver o que foi emprestado. Então preste atenção aos menores picaretas. O contrato exige agente capaz.

Porém temos exceções para esses casos. Primeiro, lemos o art. 588, para depois ler as exceções: “O mútuo feito a pessoa menor, sem prévia autorização daquele sob cuja guarda estiver, não pode ser reavido nem do mutuário, nem de seus fiadores.” Por que o mútuo não pode ser reavido de fiador? Boa pergunta de prova. afinal, o mutuante e o fiador podem ser duas pessoas capazes! É que o contrato de fiança é acessório. Se o principal é inválido, inválido será o acessório.

Art. 589: “Cessa a disposição do artigo antecedente:

        I – se a pessoa, de cuja autorização necessitava o mutuário para contrair o empréstimo, o ratificar posteriormente;

        II – se o menor, estando ausente essa pessoa, se viu obrigado a contrair o empréstimo para os seus alimentos habituais;

        III – se o menor tiver bens ganhos com o seu trabalho. Mas, em tal caso, a execução do credor não lhes poderá ultrapassar as forças;

        IV – se o empréstimo reverteu em benefício do menor;

        V – se o menor obteve o empréstimo maliciosamente.

Imagine que emprestei dinheiro para o filho do vizinho. A posterior ratificação pelo pai dele fará com que o contrato tenha validade desde o dia em que foi concluído. É como se houvesse sub-rogação nas obrigações do que tomou emprestado; ou como se o contrato tivesse sido feito com o pai do menino desde o começo.

Inciso II: “essa pessoa” é exatamente aquela de quem deveria vir a autorização. Posso pegar de volta o dinheiro que o menino usou para comprar comida? Sim, do pai dele. O que são alimentos? Quando o pai paga pensão alimentícia, o que ele está pagando ao filho? Tudo que for de primeira necessidade. Comida, vestuário, educação e saúde. Tudo isso é considerado alimento.

Inciso III: menor com bens ganhos só pode ser o emancipado. É o art. 5º, parágrafo único, inciso V: “Parágrafo único. Cessará, para os menores, a incapacidade: [...] V - pelo estabelecimento civil ou comercial, ou pela existência de relação de emprego, desde que, em função deles, o menor com dezesseis anos completos tenha economia própria.” Nem precisava estar escrito isso. Menor que tem bens ganhos com o próprio trabalho deixa de ser considerado menor. Então essa parte do inciso é supérflua. Segunda parte: quem emprestou não pode cobrar mais do que o sujeito tem para quitar.

Inciso IV: o jovem comprou um carro ou um iPod com o dinheiro que o emprestei. Isso foi benefício revertido em favor dele. Neste caso, poderei reaver o empréstimo.

Inciso V: ou seja, utilizando dessa condição que a legislação lhe dá. Ou então ficou calado sabendo que não teria que pagar. Pode-se, neste caso, cobrar do responsável.

Vamos colocar um item VI, que é muito importante: “se o empréstimo contraído pelo menor beneficiar diretamente a pessoa que deveria autorizá-lo.” Neste caso, também cessará a disposição do artigo anterior. Por quê? Imagine que o menino comprou um belo casaco de pele. Para ter pegado o dinheiro emprestado, ele normalmente precisaria de autorização. Assim, a não autorização irá causar seu enriquecimento ilícito, e ele poderá ser cobrado. Também há que se notar que o menor provavelmente não irá sair com o casaco; quem irá aproveitá-lo será exatamente sua mãe, que espertamente negou a autorização. A má-fé não é de quem contratou, mas a quem aproveitou.

O que fazer em todos esses casos? Ajuizar ação de conhecimento chamada ação de reconhecimento de dívida. O juiz analisará e deverá notar que o vizinho comprou um casaco fútil ou um iPod com o dinheiro emprestado.

 

Capacidade do mutuante

No mútuo, transferimos a propriedade. E só podemos transferir a propriedade do que é nosso. Imagine que Thalyssa, criadora de aves, possua vinte marrecos, que os confia a Taty, sua vizinha, para que cuide deles enquanto aquela faz uma viagem para Burkina Faso. Rafaela, apreciadora de iguarias exóticas e amiga de Taty, pede-lhe os marrecos emprestados para fazer canja de marreco para seus convidados. Taty os dá. Thalyssa, chegando de viagem, pede de volta suas aves. Mas elas não estão mais em posse de Taty! O que cabe a Thalyssa fazer? Ação de evicção, pois o vício no negócio entre Taty e Rafaela era exatamente no título de direito, já que Taty não era proprietária dos marrecos e, portanto, não podia tê-los alienado de forma alguma para Rafaela. Taty, neste caso, era incapaz de realizar essa transação.

Importante saber duas coisas: os detentores do poder familiar (antigo pátrio poder), bem como os tutores, curadores e responsáveis legais só podem contrair empréstimo onerando seus pupilos mediante prévia autorização judicial com comprovada utilidade do empréstimo. Vejam a lógica: sou tutor de Pedrito, e cuido do dinheiro dele, que recebeu como herança de seus pais mortos num acidente. Amanda vem até mim pedir o dinheiro emprestado. Posso emprestar a ela? Não, a não ser com a autorização judicial para tal, mediante comprovação de utilidade. Até mesmo os pais precisariam da autorização judicial caso o dinheiro fosse do filho menor mesmo, como em herança deixada por outra pessoa que escolheu Pedrito como herdeiro.

Pessoas jurídicas podem mutuar? Sim, de acordo com o seu contrato social ou estatutos. Os contratos sociais são as regras de vigência da sociedade. Tudo que não está proibido em lei ou contrato pode ser feito.

 

Empréstimo em dinheiro

O que é isso? Mútuo. E se há cobrança de juros? Mútuo feneratício ou oneroso. É importante saber algumas coisas sobre juros. Temos a lei de usura. O que é usura? Cobrar juro com taxas muito elevadas ou estabelecidas acima da lei. É ilícito civil. O que temos que saber é que ela proíbe a cobrança de juros sobre juros, ou capitalização de juros, ou anatocismo. Se você pega R$  100,00 emprestados à taxa de 10% ao mês, caso consiga restituir o empréstimo no mês que vem, você pagará R$ 110,00. E se você esperar dois meses? Pela regra, incidiriam 10% novamente sobre esse último valor, ou seja, R$ 110,00 + 10% = R$ 121,00. Antes, o acréscimo absoluto foi de R$ 10,00; desta vez, foi de R$ 11,00. Esse R$ 1,00 de diferença é juro sobre juros, o que é vedado.

O que a Constituição fala sobre juros? O Poder Constituinte Originário tentou estabelecer uma cobrança máxima de 12%. Mas essa norma foi revogada pela Emenda Constitucional nº 40 de 2003. É que, em verdade, a economia é determinada pelo mercado, e não pelo legislador. A Emenda diz que, em regra, não existe limite legal para a cobrança de juros. Mas há contratos específicos que permitem a capitalização de juros, a cobrança de juros sobre juros, que são o contrato de empréstimo bancário, instituições financeiras em geral. A Lei de Financiamento Rural também autoriza. No empréstimo hipotecário, dado sobre o sistema de habitação, também pode haver cobrança de juros sobre juros. Outras leis limitam a taxa anual de juros. A Emenda 40 revogou o art. 192 da Constituição. Agora, a proibição que existe é em função da lei de usura, não mais da Constituição.

Outra observação: os juros pode ser estabelecidos em quanto a parte quiser, mas as partes não podem convencionar a capitalização de juros.

Há dois tipos de juros: compensatórios e moratórios. Compensar o quê? Pelo período que o mutuante fica sem o dinheiro. E mais: o risco que se corre ao emprestar o dinheiro. Seriam, portanto, os frutos ou a renda do capital mutuado. E os juros moratórios? Juros de mora. O que são mesmo? Aqueles cobrados na forma “1% ao dia” ou “10% ao mês” em função do atraso, de mora, que representam indenização pelo atraso no cumprimento da obrigação.

Veja que interessante: juro sobre juro é uma coisa, mas a cobrança ao mesmo tempo de juros moratórios e juros compensatórios é outra. Não prosperará um pedido em juízo alegando que isso se trata de juro sobre juro.

 

Obrigações e direitos das partes

O mutuário é o que toma emprestado. Qual a obrigação dele? Restituir o que recebeu em coisas da mesma espécie, qualidade e quantidade, na data pactuada. O prazo estipulado é o que põe termo ao contrato, ou “quando meu pai comprar o marreco que ele me prometeu”, ou “quando eu arrumar um emprego”.

E se eu pedir três ovos de pata emprestados, e eles não mais estiverem disponíveis? No Direito Civil, tudo se resolve com to$tõe$. Pode-se estipular no contrato: devolver-se-á a coisa ou o seu valor. Esse não deixa de ser um contrato de mútuo, e não virou compra e venda. Por que mesmo? Porque contratos não se transformam em outros.

Outra obrigação do mutuário: pagar os juros, no caso do mútuo feneratício.

Obrigações do mutante: primeira é a responsabilidade pelos vícios da coisa. Ele não poderá emprestar algo que esteja deteriorado. Isso importará se o mútuo for oneroso ou não. De quem é a responsabilidade pelos vícios? Se dos três ovos um estava podre, quem pegou emprestado só terá que devolver dois. Em mútuo oneroso, a responsabilidade é maior: responde-se por culpa e dolo. No gratuito, somente por dolo.

Imagine um empréstimo de R$ 1.000,00 dado em notas de R$ 50,00, mas duas das 20 notas são falsas. Se se tratar de um mútuo não oneroso, o mutuante só responderá caso tenha incluído dolosamente as duas notas falsas. Sendo oneroso, responderá também por culpa, na medida do prejuízo tido pelo mutuário.

Outra obrigação do mutuante: não tolher o consumo por parte do mutuário. Não se pode atrapalhá-lo. Se eu vir a pessoa para quem emprestei dinheiro jogando no bicho, não poderei atrapalhar de jeito nenhum. A não ser que o contrato especifique um fim para o dinheiro emprestado.

Quanto aos direitos, o mutuante poderá exigir garantia da restituição se: I – antes do vencimento, o mutuário vier a sofrer notória mudança em seu patrimônio. Emprestei R$ 1.000,00 para Helena, que terá que me pagar daqui a um ano, mas sem nenhum juro. No terceiro mês, ela sofre alguns azares na vida e passa a viver precariamente, sem luxos, até morando de favor. Neste caso, o mutuante poderá exigir uma garantia. Se Helena não der, isso será uma causa de extinção. Desde o momento em que a garantia não foi dada ela já estará em mora.

Se eu apenas sinto que ela está em situação financeiramente complicada, nada disso valerá pois a mudança de patrimônio deverá ser notória.

Exigir restituição da coisa no momento oportuno. Ou é o vencimento do contrato, ou é aquele em que a coisa foi usada. O “dia em que eu arrumar um emprego” também pode ser o momento oportuno, se assim contratado.

Demandar a resolução do contrato se o mutuário deixar de pagar os juros. Não deixa de ser óbvio, mas não devemos deixar de incluir nesta lista. É descumprimento do contrato, então podemos usar a cláusula resolutória.

 

Extinção do mútuo

Primeira coisa é, evidentemente, o vencimento do prazo convencionado.

A segunda causa é o rol do art. 592, que prevê a hipótese de silêncio quanto ao prazo: “Não se tendo convencionado expressamente, o prazo do mútuo será:

        I – até a próxima colheita, se o mútuo for de produtos agrícolas, assim para o consumo, como para semeadura;

        II – de trinta dias, pelo menos, se for de dinheiro;

        III – do espaço de tempo que declarar o mutuante, se for de qualquer outra coisa fungível.

Vejam que interessante o inciso II: se alguém me pedir R$ 2,00 emprestado, só poderei exigi-los depois de 30 dias, no mínimo. No máximo, é o tempo que eu quiser.

Descumprimento de cláusula contratual. É a terceira possibilidade. Esse descumprimento de cláusula contratual só se aplicará para mútuos onerosos. Se for mútuo gratuito, o mútuo não será extinto; deverá ser analisado o que esse descumprimento causa. Só será caso de extinção se não houver a apresentação oportuna de garantia, como a que exigi de Helena ao notar que ela claramente mudou de situação patrimonial.

Distrato. Como qualquer contrato. O mutuário e o mutuante resolvem desfazer o contrato de comum acordo.

Resilição unilateral. Quando ela pode acontecer? Somente pelo mutuário, o devedor. Não pode o mutuante exigir antecipadamente a restituição. Lembrem-se que, no comodato, o comodante pode resilir por causa urgente e imprevista. No mútuo não, de forma alguma.

Portanto, as causas de extinção do mútuo são vencimento do prazo, hipóteses legais do art. 592, descumprimento de cláusula contratual, distrato e resilição unilateral.

Atenção para a questão dos juros: emprestei R$ 1.000,00 para Bruno, à taxa juros de 10% ao mês. Ele pagará o principal depois. Seis meses depois ele me paga o principal. A princípio, como sou o mutuante, não poderei me opor a esse pagamento antecipado. Como funcionarão os juros? Qual a regra? Se nada foi dito, o principal foi pago e não há mais que se falar em juros. Mas pode-se colocar no contrato que, em caso de resilição unilateral, os juros de todo o período serão devidos. O pagamento antecipado da dívida não afastará o pagamento dos juros. Note que isso não caracterizará enriquecimento sem causa pois foi exatamente esse o pacto feito pelos contratantes, mesmo que o principal tenha sido pago e, portanto, extinto, o que nos levaria a crer que o acessório seguiria sua sorte e também seria extinto. Não é assim, na verdade.

Há casos em que isso é razoável. Exemplo: pessoa de orçamento apertado saca R$ 1.000,00 de sua poupança para emprestar a alguém. Antes, ela vivia dos rendimentos daquela poupança, ainda que fossem bem pequenos. Ao retirar o dinheiro da conta, pode-se frustrar o rendimento contratado com o banco. Quando essa oportunidade apareceu, ela combina que seu mutuário devolverá com juros de 10% ao mês, e pagará o valor do principal ao final do período de um ano. Mas o mutuário lhe procurou mais cedo e, quando ainda faltavam quatro meses para o término do período, devolve-lhe o dinheiro. Com isso, extinguir-se-ia a obrigação principal e, com ela, os juros, que haviam se tornado seu meio de subsistência. Então, para se precaver, ela contrata da seguinte forma: “o valor deverá ser restituído ao final de um ano, mas, em caso de pagamento antecipado, os juros do período integral serão devidos.”

Em caso de extinção, o contrato terá que ser denunciado.

Efetivação de algum modo terminativo previsto no próprio contrato. Exemplo: “se eu arrumar um emprego, te pagarei imediatamente.”

Segunda-feira teremos uma revisão. É bom vir para ganhar ponto.