Direito Civil

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Doação - conclusão

 

Vamos terminar a doação hoje.

O contrato de doação, diferentemente de outros, contém restrições à liberdade de doar. São restrições bem peculiares, típicas à doação.

 

Restrições à liberdade de doar

São quatro restrições. A primeira é a doação de todos os bens do doador. É o art. 548: “É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador.” Não terá validade a doação de todos os bens. Por que isso? À primeira vista pode parecer que busca-se para proteger os herdeiros. Mas e se o morto não deixar herdeiros? É uma preocupação, na verdade, bem egoísta. O que acontecerá é que a pessoa não terá mais como viver. Quem será onerado com essa doação? O Estado, pois haverá mais um mendigo nas ruas. Deve-se reservar certa quantia, portanto.

Pois bem, o que é “certa quantia”? Cada caso terá que ser analisado separadamente. Isso é impossível de ser absolutizado.

Essa nulidade é total ou somente do que faltava para a subsistência? É total, pois não será possível aferir esse quantitativo em cada caso. Seria levar um problema por demais complicado ao Judiciário. Por simplicidade, então, anula-se tudo. Se alguém doou 8 milhões de dólares, que era tudo que o doador tinha, que tudo seja devolvido, para que, se ele quer mesmo doar, doe apenas parte do que tem, e assim a doação será válida.

Pode haver também a reserva de usufruto de alguém. Estudaremos melhor no semestre que vem. Mas vejam o que é: tenho uma casa, mas não moro nela. Quero doá-la para minha afilhada. É a única coisa que tenho, e não posso doar tudo. Então, o que posso fazer é transferir a propriedade para ela com meu usufruto. Enquanto eu estiver vivo, eu usarei e usufruirei desse bem. Quando eu morrer, transfere-se a propriedade e o usufruto. Neste caso, transferi para ela a propriedade, mas não transferi o direito ao uso e ao fruto. Significa que, se eu alugar essa casa, o fruto do contrato de locação será meu.

Doação de parte inoficiosa: tenho um conjunto de bens. 50% deles corresponderão à parte inoficiosa, que é sinônimo de “indisponível”. A outra parte poderei doar para a Sociedade Protetora dos Gatos sem Bigode. Quando eu doo enquanto em vida, poderei doar parte do meu patrimônio que está dentro dos 50% disponíveis, especificando isso no termo de doação.

Se eu doar além de 50%, certamente terei doado pelo menos alguma coisa além do que eu poderia, e a parte indisponível será inevitavelmente atingida. Isso é a doação de parte inoficiosa.

Primeira pergunta: quando que o cálculo é feito? Quando morro, ou quando faço o negócio jurídico? Quando faço o negócio, pois do contrário trará insegurança jurídica. Imagine que eu só morra daqui a 30 anos. Neste caso, será difícil aferir, depois de tanto tempo, a que parte correspondia aquele bem doado na ocasião.

Outra pergunta: a ação cabível é a revocatória de doação inoficiosa. Nesta ação, o que será pedido? A nulidade somente da parte que passou. Cuidado então para não confundir com a situação acima, em que alguém doa a universalidade dos seus bens. Lá, a nulidade é absoluta e abrange todo o negócio; aqui não, anula-se somente a parte que excedeu o que poderia.

Validada a doação, o negócio jurídico está consolidado. O negócio não é resolúvel.

Então vejam: doei hoje, dia 21/05, metade de meus bens. Seis meses depois, resolvi fazer nova doação, também de 50%, a outra pessoa. Naquela data, comprovei que foi doação de parte disponível, então não houve problema. E continuei dispondo, com grandes intervalos de tempo. Isso não terá problema, em tese. Poderá, entretanto, o prejudicado (meu herdeiro) provar que houve má-fé minha, com o intuito de prejudicá-lo.

Se somos advogados, os herdeiros vão ao nosso escritório e dizem: “doutor, meu pai está doando tudo que é nosso!” Qual deverá ser a resposta: “provavelmente nunca será de vocês. Desde, é claro, que não configure fraude. O pai pode estar apenas "animadão", mas é direito que ele tem. Se não estiver fazendo com o objeto de fraudar direito de herdeiros, ele poderá doar à vontade. Nós podemos tentar provar a fraude, mas fazer essa prova será uma odisseia.” É a verdade.

A diferença disso para o pródigo é que este é doente. Do pródigo, cabe interdição.  Pura animação não é motivo para interditar; o pai pode simplesmente estar apaixonado, ou ter tido um “surto” de bondade. Interdição é um processo muito mais complicado. A interdição pode retroagir à época das doações se se provar que o sujeito já estava com problemas psiquiátricos. Do contrário, não retroagirá.

Observação: cônjuge é herdeiro.

A ação revocatória pode ser impetrada em vida? Para podermos revogar, pode-se fazer somente quando o doador morrer, ou ainda em vida? Isso divide opiniões na doutrina. Alguns dirão que não pois isso chega a caracterizar um pacta corvina, já que tem por objeto bens de pessoa viva, enquanto outros sustentam que a necessidade de se esperar a morte do doador geraria insegurança jurídica, pois poderá demorar muito tempo, e ficará difícil delinear precisamente a parte que fora doada.

 

Doação da qual resulta prejuízo para credores do doador

Se a doação prejudicar credores do doador, é permitida sua revogação. Claramente, protege-se o credor. Se alguém doa devendo, o sujeito deverá primeiro pagar o que deve aos seus credores. Só então poderá fazer a doação. A melhor ação aqui para o credor é a ação pauliana, do art. 158: “Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos. § 1º Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente. § 2º Só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles.

 

Doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice

Cúmplice não é apenas o amante, mas qualquer pessoa com quem se tenta tido relação sexual, ainda que eventualíssima. Está enquadrado aqui o caso de uma mulher que dorme apenas uma vez com seu personal trainer e doa um relógio de alto valor para ele, sendo casada. Essa ação é privativa do cônjuge enquanto ele viver. Só depois de sua morte que os herdeiros ganharão a legitimação para a propositura dessa ação. E se a mulher é viúva? Ninguém poderá, pois ela não tem cônjuge, e não é adúltera! Então, a ação tem que ser intentada enquanto o cônjuge está vivo.

E se o cônjuge estiver vivo e for interdito? Boa questão para pesquisa.

 

Revogação da doação

Aqui chamamos de revogação e não extinção da doação. Há motivos comuns a todos os contratos, como erro, dolo, fraude, coação, objeto ilícito, falta de forma exigida, e assim por diante. Também pode ser revogada a doação se for resolúvel o negócio. Qual é o tipo de doação resolúvel? Aliás, o que é um negócio resolúvel? Aquele que não se resolveu completamente. Doação com cláusula de retorno, por exemplo. Outra doação resolúvel é a doação propter nuptias. Parece doação com encargo, mas esta é tratada de forma completamente diferente. Na doação propter nuptias, o domínio é resolúvel, e, caso não realizado o casamento, volta-se ao status quo ante. E há mais um caso: doação a nascituro que não chega a nascer ou nasce morto.

Descumprimento do encargo é outro motivo de revogação. Porém, antes de ajuizar  ação revocatória, o doador deverá notificar o donatário para cumprir o encargo. É o art. 562: “A doação onerosa pode ser revogada por inexecução do encargo, se o donatário incorrer em mora. Não havendo prazo para o cumprimento, o doador poderá notificar judicialmente o donatário, assinando-lhe prazo razoável para que cumpra a obrigação assumida.

Algo que também ocorre é a revogação por ingratidão. A lei traz um rol de quatro espécies de doação que não se revogam por ingratidão. São elas:

Para simplificar, também, o legislador previu que só as doações puras podem ser revogadas. Foi o que falamos há pouco.

Art. 557: “Podem ser revogadas por ingratidão as doações:

        I – se o donatário atentou contra a vida do doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra ele;

        II – se cometeu contra ele ofensa física;

        III – se o injuriou gravemente ou o caluniou;

        IV – se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava.

Este artigo traz uma lista exaustiva de hipóteses em que a doação poderá ser revogada por ingratidão. Note que pode haver revogação em caso de homicídio ou de calúnia, um crime grave e outro não tão grave, mas não será possível a revogação por ingratidão em caso de crime de gravidade intermediária, como roubo ou extorsão.

Observações:

 

Prazo para ajuizar a ação revocatória

Prazo para caducidade da ação é decadencial de 1 ano, a contar da data que o doador fica sabendo do fato que possibilita a revogação.

Essa ação é pessoal do doador. E se o doador morre, sendo pessoal a ação dele, podemos pensar que isso significa que o donatário poderá se sentir seguro pois não há mais ninguém legitimado para intentar a ação. Mas não é bem assim, pois a morte pode decorrer de homicídio praticado pelo donatário contra o doador, hipótese do primeiro inciso do art. 557. Neste caso, poderá caber aos herdeiros a propositura da ação quando o doador morrer, e o art. 561, mais específico, completa a ideia do 557, I: “No caso de homicídio doloso do doador, a ação caberá aos seus herdeiros, exceto se aquele houver perdoado.

A ação é dirigida ao donatário, apenas. Se o autor intenta a ação revocatória por ingratidão por algum motivo, não necessariamente uma tentativa de homicídio, e morre depois ajuizar, os herdeiros poderão dar prosseguimento.

E se quem morre é o donatário? Seus herdeiros não poderão ser demandados em juízo.

Art. 558: “Pode ocorrer também a revogação quando o ofendido, nos casos do artigo anterior, for o cônjuge, ascendente, descendente, ainda que adotivo, ou irmão do doador.

Só que só pode ajuizar o doador. 1 Mas, se ele estiver vivo, e o donatário ofender seu cônjuge, ascendente, descendente ou irmão, o doador poderá revogar.

Art. 563: “A revogação por ingratidão não prejudica os direitos adquiridos por terceiros, nem obriga o donatário a restituir os frutos percebidos antes da citação válida; mas sujeita-o a pagar os posteriores, e, quando não possa restituir em espécie as coisas doadas, a indenizá-la pelo meio termo do seu valor.

É o seguinte: doei algo para Talita, que depois vendeu a coisa para alguém. Posteriormente, a donatária demonstrou-se ingrata. Não posso ir atrás da coisa em poder do terceiro, pois não tenho direito real, mas poderei pedir valores da Talita.

Terminamos a doação. Depois vamos para locação, empreitada e depósito.


  1. Aqui a professora falou mais uma curta frase, bem baixinho e rapidamente, que não consegui capturar.