Vamos terminar a doação hoje.
O contrato de doação, diferentemente de outros, contém restrições
à liberdade de doar. São restrições bem peculiares, típicas à doação.
Restrições à
liberdade de doar
São quatro restrições. A primeira é a doação de todos os bens do doador. É o art. 548: “É nula a doação de todos os bens sem reserva
de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador.” Não terá
validade a doação de todos os bens. Por que isso? À primeira vista pode parecer
que busca-se para proteger os herdeiros. Mas e se o morto não deixar herdeiros?
É uma preocupação, na verdade, bem egoísta. O que acontecerá é que a pessoa não
terá mais como viver. Quem será onerado com essa doação? O Estado, pois haverá
mais um mendigo nas ruas. Deve-se reservar certa quantia, portanto.
Pois bem, o que é “certa quantia”? Cada caso terá que ser
analisado separadamente. Isso é impossível de ser absolutizado.
Essa nulidade é total ou somente do que faltava para a
subsistência? É total, pois não será possível aferir esse quantitativo em cada
caso. Seria levar um problema por demais complicado ao Judiciário. Por
simplicidade, então, anula-se tudo. Se alguém doou 8 milhões de dólares, que
era tudo que o doador tinha, que tudo seja devolvido, para que, se ele quer
mesmo doar, doe apenas parte do que tem, e assim a doação será válida.
Pode haver também a reserva de usufruto de alguém.
Estudaremos melhor no semestre que vem. Mas vejam o que é: tenho uma casa, mas
não moro nela. Quero doá-la para minha afilhada. É a única coisa que tenho, e
não posso doar tudo. Então, o que posso fazer é transferir a propriedade para
ela com meu usufruto. Enquanto eu estiver
vivo, eu usarei e usufruirei desse bem. Quando eu morrer, transfere-se a
propriedade e o usufruto. Neste caso, transferi para ela a propriedade, mas não
transferi o direito ao uso e ao fruto. Significa que, se eu alugar essa casa, o
fruto do contrato de locação será meu.
Doação de parte
inoficiosa: tenho um conjunto de bens. 50% deles corresponderão à parte inoficiosa, que é sinônimo de
“indisponível”. A outra parte poderei doar para a Sociedade Protetora dos Gatos
sem Bigode. Quando eu doo enquanto em vida, poderei doar parte do meu
patrimônio que está dentro dos 50% disponíveis, especificando isso no termo de
doação.
Se eu doar além de 50%, certamente terei doado pelo menos
alguma coisa além do que eu poderia, e a parte indisponível será
inevitavelmente atingida. Isso é a doação de parte inoficiosa.
Primeira pergunta: quando que o cálculo é feito? Quando
morro, ou quando faço o negócio jurídico? Quando faço o negócio, pois do contrário trará
insegurança jurídica. Imagine que eu só morra daqui a 30 anos. Neste caso, será
difícil aferir, depois de tanto tempo, a que parte correspondia aquele bem
doado na ocasião.
Outra pergunta: a ação cabível é a revocatória de doação inoficiosa. Nesta ação, o que será pedido? A
nulidade somente da parte que passou.
Cuidado então para não confundir com a situação acima, em que alguém doa a
universalidade dos seus bens. Lá, a nulidade é absoluta e abrange todo o
negócio; aqui não, anula-se somente a parte que excedeu o que poderia.
Validada a doação, o negócio jurídico está consolidado. O
negócio não é resolúvel.
Então vejam: doei hoje, dia 21/05, metade de meus bens. Seis
meses depois, resolvi fazer nova doação, também de 50%, a outra pessoa. Naquela
data, comprovei que foi doação de parte disponível, então não houve problema. E
continuei dispondo, com grandes intervalos de tempo. Isso não terá problema, em
tese. Poderá, entretanto, o prejudicado (meu herdeiro) provar que houve má-fé
minha, com o intuito de prejudicá-lo.
Se somos advogados, os herdeiros vão ao nosso escritório e
dizem: “doutor, meu pai está doando tudo que é nosso!” Qual deverá ser a
resposta: “provavelmente nunca será de vocês. Desde, é claro, que não configure
fraude. O pai pode estar apenas "animadão", mas é direito que ele
tem. Se não estiver fazendo com o objeto de fraudar direito de herdeiros, ele
poderá doar à vontade. Nós podemos tentar provar a fraude, mas fazer essa prova
será uma odisseia.” É a verdade.
A diferença disso para o pródigo é que este é doente. Do
pródigo, cabe interdição. Pura animação
não é motivo para interditar; o pai pode simplesmente estar apaixonado, ou ter
tido um “surto” de bondade. Interdição é um processo muito mais complicado. A
interdição pode retroagir à época das doações se se provar que o sujeito já
estava com problemas psiquiátricos. Do contrário, não retroagirá.
Observação: cônjuge é herdeiro.
A ação revocatória pode ser impetrada em vida? Para podermos
revogar, pode-se fazer somente quando o doador morrer, ou ainda em vida? Isso
divide opiniões na doutrina. Alguns dirão que não pois isso chega a
caracterizar um pacta corvina, já que
tem por objeto bens de pessoa viva, enquanto outros sustentam que a necessidade
de se esperar a morte do doador geraria insegurança jurídica, pois poderá
demorar muito tempo, e ficará difícil delinear precisamente a parte que fora
doada.
Doação da qual
resulta prejuízo para credores do doador
Se a doação prejudicar credores do doador, é permitida sua
revogação. Claramente, protege-se o credor. Se alguém doa devendo, o sujeito deverá
primeiro pagar o que deve aos seus credores. Só então poderá fazer a doação. A
melhor ação aqui para o credor é a ação pauliana, do art. 158: “Os negócios de transmissão gratuita de bens
ou remissão de dívida, se os praticar o devedor já insolvente, ou por eles
reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos
credores quirografários, como lesivos dos seus direitos. § 1º Igual direito
assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente. § 2º Só os credores
que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles.”
Doação do cônjuge
adúltero ao seu cúmplice
Cúmplice não é apenas o amante, mas qualquer pessoa com quem
se tenta tido relação sexual, ainda que eventualíssima. Está enquadrado aqui o
caso de uma mulher que dorme apenas uma vez com seu personal trainer e doa um
relógio de alto valor para ele, sendo casada. Essa ação é privativa do cônjuge
enquanto ele viver. Só depois de sua morte que os herdeiros ganharão a
legitimação para a propositura dessa ação. E se
a mulher é viúva? Ninguém poderá, pois ela não tem cônjuge, e não é adúltera!
Então, a ação tem que ser intentada enquanto o cônjuge está vivo.
E se o cônjuge estiver vivo e for interdito? Boa questão
para pesquisa.
Revogação da doação
Aqui chamamos de revogação e não extinção da doação. Há
motivos comuns a todos os contratos, como erro, dolo, fraude, coação, objeto
ilícito, falta de forma exigida, e assim por diante. Também pode ser revogada a
doação se for resolúvel o negócio. Qual é o tipo de doação resolúvel? Aliás, o
que é um negócio resolúvel? Aquele que não se resolveu completamente. Doação
com cláusula de retorno, por exemplo. Outra doação resolúvel é a doação propter nuptias. Parece doação com
encargo, mas esta é tratada de forma completamente diferente. Na doação propter nuptias, o domínio é resolúvel,
e, caso não realizado o casamento, volta-se ao status quo ante. E há mais um caso: doação a nascituro que não
chega a nascer ou nasce morto.
Descumprimento do encargo é outro motivo de revogação.
Porém, antes de ajuizar ação
revocatória, o doador deverá notificar o donatário para cumprir o encargo. É o
art. 562: “A doação onerosa pode ser
revogada por inexecução do encargo, se o donatário incorrer em mora. Não
havendo prazo para o cumprimento, o doador poderá notificar judicialmente o
donatário, assinando-lhe prazo razoável para que cumpra a obrigação assumida.”
Algo que também ocorre é a revogação por ingratidão. A lei traz um rol de quatro espécies de doação que não se
revogam por ingratidão. São elas:
Para simplificar, também, o legislador previu que só as
doações puras podem ser revogadas. Foi o que falamos há pouco.
Art. 557: “Podem ser
revogadas por ingratidão as doações:
I – se o donatário atentou contra a
vida do doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra ele;
II – se cometeu contra ele ofensa
física;
III – se o injuriou gravemente ou o
caluniou;
IV – se, podendo ministrá-los, recusou
ao doador os alimentos de que este necessitava.”
Este artigo traz uma lista exaustiva de hipóteses em que a
doação poderá ser revogada por ingratidão. Note que pode haver revogação em
caso de homicídio ou de calúnia, um crime grave e outro não tão grave, mas não
será possível a revogação por ingratidão em caso de crime de gravidade
intermediária, como roubo ou extorsão.
Observações:
Prazo para ajuizar a
ação revocatória
Prazo para caducidade da ação é decadencial de 1 ano, a
contar da data que o doador fica sabendo do fato que possibilita a revogação.
Essa ação é pessoal do doador. E se o doador morre, sendo pessoal
a ação dele, podemos pensar que isso significa que o donatário poderá se sentir
seguro pois não há mais ninguém legitimado para intentar a ação. Mas não é bem
assim, pois a morte pode decorrer de homicídio praticado pelo donatário contra
o doador, hipótese do primeiro inciso do art. 557. Neste caso, poderá caber aos
herdeiros a propositura da ação quando o doador morrer, e o art. 561, mais
específico, completa a ideia do 557, I: “No
caso de homicídio doloso do doador, a ação caberá aos seus herdeiros, exceto se
aquele houver perdoado.”
A ação é dirigida ao donatário, apenas. Se o autor intenta a
ação revocatória por ingratidão por algum motivo, não necessariamente uma
tentativa de homicídio, e morre depois ajuizar, os herdeiros poderão dar prosseguimento.
E se quem morre é o donatário? Seus herdeiros não poderão
ser demandados em juízo.
Art. 558: “Pode
ocorrer também a revogação quando o ofendido, nos casos do artigo anterior, for
o cônjuge, ascendente, descendente, ainda que adotivo, ou irmão do doador.”
Só que só pode ajuizar o doador. 1 Mas, se ele
estiver vivo, e o donatário ofender seu cônjuge, ascendente, descendente ou
irmão, o doador poderá revogar.
Art. 563: “A revogação
por ingratidão não prejudica os direitos adquiridos por terceiros, nem obriga o
donatário a restituir os frutos percebidos antes da citação válida; mas
sujeita-o a pagar os posteriores, e, quando não possa restituir em espécie as
coisas doadas, a indenizá-la pelo meio termo do seu valor.”
É o seguinte: doei algo para Talita, que depois vendeu a
coisa para alguém. Posteriormente, a donatária demonstrou-se ingrata. Não posso ir atrás da coisa em
poder do terceiro, pois não tenho direito real, mas poderei pedir valores da
Talita.
Terminamos a doação. Depois vamos para locação, empreitada e
depósito.