Vimos o vencimento do cheque na aula passada, e aprendemos
que o cheque é uma ordem de pagamento à vista. Qualquer coisa que se escreva no
cheque que torne-o diferente desnatura-o como cheque. O banco é obrigado a
pagar na data apresentada, independente da data escrita na cártula.
Desenvolvemos a prática do cheque pós-datado. A relação dele
com a súmula 370 é que, muitas das vezes, passo um grupo de três cheques
pós-datados e pode vir a ocorrer de o cidadão depositar os todos de uma vez. E
não havia o que fazer, pois o cheque estava regulamentado segundo as resoluções
do Banco Central, e também pela própria legislação, que lhe confere natureza
jurídica de ordem de pagamento à vista. Se é à vista, ele deverá ser pago
quando o sacado tiver a vista do
cheque, e não deveria haver mais discussões. Se houver a provisão de fundos, os
cheques deverão ser pagos.
Para fins de Direito Cambiário, a apresentação do cheque
antes do vencimento não traz consequência alguma, mas, para o Direito Civil,
poderá sim trazer consequências. Em fevereiro de 2009, o STJ editou a Súmula 370.
Vejamos: O que é jurisprudência?
Decisões reiteradas de um tribunal. Quando são por demais reiteradas, o
tribunal edita uma súmula, ou melhor,
um enunciado de súmula, que é um
resumo que passará a nortear todos os julgamentos daquela corte. Até que se
chegou ao enunciado atual da Súmula 370: “Caracteriza dano moral a apresentação
antecipada de cheque pré-datado.”
Isso significa que, se passo um cheque para daqui a 30 dias para
Eleonora e ela o deposita hoje, posso ajuizar pedido de dano moral contra ela,
certo? Não exatamente. O enunciado da
Súmula serve apenas como norteador de
decisões.
Visitem a página
no site do STJ em que se encontra a Súmula.¹ Ou, se quiser navegar desde a
raiz do site (www.stj.jus.br), vá ao menu à
esquerda, vá em consultas, depois súmulas. Você irá para uma página que exibirá
as súmulas em ordem decrescente. Então, clique no ícone que contém uma lupa
(acima da palavra ajuda, que por sua vez está acima da lista de súmulas), que
lhe enviará à página de pesquisa de súmulas, e digite o número 370 no campo “número”.
Você chegará à página do link acima.
Quando entramos na página de qualquer súmula, vemos o enunciado, o número da súmula, a sessão,
que é de direito privado. O STJ é dividido em três sessões, cada uma dividida
em duas turmas. A primeira sessão é composta pela primeira e pela segunda
turma, a segunda sessão pela terceira e quarta turmas e a terceira sessão pela
quinta e sexta turmas. A primeira trata de Direito Público, a segunda trata de Direito
Privado, e a terceira trata de Direito Previdenciário, Direito Penal e assuntos
referentes a servidores públicos. Há também, na página de cada súmula, a referência legislativa, com o Direito
aplicável. No caso, a Lei 7357/85, a Lei do Cheque, que vimos na aula passada.
Temos Recursos Especiais desde 1993 sobre o assunto. Por fim, temos os Precedentes, que são os Recursos
Especiais julgados pelo Superior Tribunal de Justiça sobre essa matéria.
A partir de todos os julgados dos RESPs, partiu-se para a
montagem da Súmula 370.
Para verificar o real espírito da súmula, temos que
trabalhar com os julgados, que foram os precedentes, para então saber o que se passou
na cabeça dos ministros.
Estrutura do acórdão
O que é mesmo um acórdão? É uma decisão do Colegiado. Os
ministros julgadores que compõem aquele Colegiado julgarão, irão acordar com a
proposição feita pelo relator do processo e daí forma-se a decisão. É o oposto
da decisão monocrática, feita singularmente. Também chamada de decisão solitária.
Temos a ementa,
que é o resumo do julgado, da matéria que está sendo tratada. A ementa está
para o acórdão assim como o dispositivo está para a sentença. Na ementa temos o
que foi decidido.
O acórdão tem também um relatório,
assim como a sentença, e o voto, que
é a manifestação do relator, em que ele diz por que julga daquela maneira,
assim como a fundamentação está para a sentença, e a parte final, que é a
ementa, a parte dispositiva da sentença.
O relatório contém a matéria tratada e o histórico de como
aquele processo chegou ao STJ.
Quando começou a prática do cheque “pré-datado” no Brasil, os
tribunais começaram a rejeitar os pedidos de indenização por motivo de
apresentação antecipada. Entendia-se que, como o cheque é uma ordem de
pagamento à vista, ao se colocar uma data futura, ele estaria sendo desnaturado
como título de crédito, então não caberia mais dano moral em virtude de sua
apresentação antecipada, e o cheque funcionaria apenas um representativo de
dívida. Depois de muito tempo, todos os tribunais passaram a admitir a prática
porque era corriqueira. O Judiciário não poderia virar as costas para a
realidade social. “Se todos fazem isso, temos que criar uma jurisprudência
própria para o cheque pré-datado!”, pensou-se.
REsp 213.940
Neste julgado, em que uma mulher pedia danos morais pela
apresentação antecipada de um cheque, o estabelecimento recorreu alegando que não
houve problemas maiores para a mulher. Ainda assim o recurso restou improvido,
pois apesar de a emitente não ter tido seu nome incluso em cadastros de
inadimplentes, o constrangimento não deixou de existir, e que o encerramento de
conta corrente ou inclusão do nome da consumidora no SPC ou Serasa seriam meras
agravantes.
Cuidou o magistrado de pontuar que dano moral é algo de foro
íntimo e não quantificável objetivamente, portanto a razoabilidade deve ser
usada para o arbitramento do valor.
O recorrente (o estabelecimento comercial) também alegou contrariedade
da decisão do TJRJ às normas dos arts. 4º e 5º da a Lei de Introdução ao Código
Civil, um dos requisitos de admissibilidade. Quando estudarmos recursos, veremos
que o REsp, o Recurso Especial encaminhado para o STJ, tem dois requisitos de
admissibilidade: contrariar dispositivo de lei federal e existência de divergência
entre a decisão de um tribunal com outros tribunais do país. Devemos verificar
em que ponto a decisão recorrida contraria o dispositivo de lei federal, ou
onde que há divergência com decisão de outro tribunal.
Quando tivemos o acidente do Boeing da Gol com o jato Legacy
da Embraer em 29/9/2006, um escritório foi contratado para fazer um levantamento
da jurisprudência quanto aos danos morais para as famílias. O STJ pensava em
150 salários mínimos, mais o pensionamento vitalício. Isso talvez chegasse aos
R$ 80 mil por família, bem menos do que a indenização que seria devida caso a
condenação ocorresse nos Estados Unidos.
Note a ementa do julgamento desse REsp: “devolução de cheque
sem fundo constitui fato capaz de gerar
prejuízo moral”. Compare com o enunciado. Capaz de gerar significa que não
necessariamente gerará. No caso dos autos, houve prejuízo de ordem moral porque
houve a devolução de cheque sem fundo, que faz negativar a imagem do indivíduo,
pois passa a figurar como emitente de cheque
sem fundo.
Segundo acórdão: 557.505
...com relatoria do Ministro Menezes Direito.
O professor entendeu como absurdo esse acórdão já que, nesta
hipótese, o recorrente, que é o autor, já tem o nome sujo. A loja, por algum
motivo, antecipou o depósito do cheque, e o emitente alegou dano moral. Note também
que ele é um recorrente em causa própria, logo é advogado. Sem prova de que
houve combinação de apresentar só na data, que era ônus do requerente, o Tribunal
de Alçada do Estado de Minas Gerais negou seu pedido de indenização por danos
morais.
Na ementa vemos que o cheque apresentado antes da hora pressupõe o dano moral, seja pelo fator surpresa,
seja porque capaz de ensejar uma série de aborrecimentos. Para o REsp,
também, indicou inobservância, pelo tribunal que emitiu a decisão recorrida, de
dispositivos do CDC (lei federal) que versam sobre propaganda enganosa e
inversão do ônus da prova.
Menezes Direito invocou o teor dos precedentes dos REsps
213940 e 237376 e os aplicou ao caso concreto.
REsp 707.272
O Tribunal de Justiça da Paraíba também teve uma decisão sua
sobre o assunto recorrida. Foi o REsp 707.272. A relatora foi a Ministra Nancy
Andrighi. Ela, em seu voto, reconhece que a prática de passar cheques
pós-datados tornou-se nacionalmente aceita e menciona o erro comum na
terminologia, chamando-o corretamente de “pós-datado”.
Já trabalha com outro aspecto do cheque pós-datado: é uma
relação de confiança, uma relação contratual. Estabelece-se um pacta sunt servanda. Então, alegou-se exceptio non adimpleti contractus. "O
construtor (promitente alienante) ao aceitar o pagamento com o cheque em data
posterior à assinatura do contrato, assumiu a obrigação de não apresentá-lo
antes da data avençada com o consumidor (promissário adquirente)".
Apresentar o cheque em data futura não o desnatura. É uma
ordem de pagamento à vista de qualquer jeito. A condenação, então, não foi pela
simples devolução, mas pela quebra de confiança, portanto de contrato, o que
gera dever de indenizar.
REsp 921.398
Vamos falar pouco sobre este julgado.
No acórdão da ação em que o advogado que postulava em causa própria, este já
tinha seu nome inscrito no SPC. Aqui, ninguém tem nome sujo, e o que caracteriza o
dano moral é a devolução antes do prazo.
O que é dano moral? O que o caracteriza? É um dano psicológico,
que atinge o emocional, a honra. Dano à honra é relativamente fácil de provar,
mas psicológico não. Apesar de honra ser subjetiva, ela pode ser percebida
objetivamente, daí sua alegação não depende de prova. Daí estar dito na ementa
que o dano moral tem caráter in re ipsa, que quer dizer “por ele mesmo”.
O dano precisa ser decorrente da apresentação, não pode ser preexistente.
O que vimos em todos esses acórdãos? Para a caracterização do dano moral, foi necessário: quebra da boa-fé, violação contratual e necessária ocorrência de dano, mesmo que não tenham sido externos como a finalização de conta corrente ou inclusão do nome em cadastros desagradáveis. Portanto, o enunciado não é tão sólido como parece.
1 – http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/doc.jsp?processo=370&&b=SUMU&p=true&t=&l=10&i=1