Direito Penal
terça-feira, 2 de março de 2010
Retrospectiva histórica dos crimes contra os costumes
Até 1830 tivemos as Ordenações do Reino, ano esse em que foi criado
um Código Criminal do Império. Tínhamos normas de caráter penal e
processual penal. Nas Ordenações havia uma confusão: os crimes contra
os costumes eram tratados como crimes contra a honra das famílias. Qual
é a diferença na objetividade jurídica entre crimes contra os costumes
de então e os atuais crimes contra a dignidade sexual? Nas Ordenações,
não tínhamos uma sistematização. No Código de 1830 passamos a ter uma
parte geral, uma parte especial e, em título próprio, crimes sobre
honra e dignidade da família. A honra era do marido, e não da própria
vítima.
Aquele era o período da vingança privada. A retribuição
do mal pelo mal. A mulher que não provasse o dissenso era condenada à
morte.
Em 1890 tivemos o primeiro Código da República. Nenhum
avanço. Foi feito antes da Constituição de 1891. A pena de morte foi
suprimida pouco antes por causa dos erros da justiça. Foi uma transição
complicada, pois.
Havia Direito Canônico mais Direito Romano,
depois Direito Medieval, seguido dos ideais da modernidade, com
humanização das penas. Só teremos mesmo a mudança no Código de 1940. O
que acontece naquele ano? Passamos a ter crimes contra a honra, contra
os costumes e contra a família. A sistematização permanece a mesma. Em
2009 tivemos a mudança para crimes contra a dignidade sexual.
Os
costumes da época se referiam à moral pública sexual. Não ser protegida
a liberdade sexual como atributo individual, mas coletivo. Costumes são
a moral da sociedade, a respeito da liberdade sexual. Família é o
grupamento social que, por sua vez, constitui a sociedade.
O
grande passo do Código de 1940 foi efetivamente fazer uma lapidação dos
bens jurídicos e separá-lo: bem jurídico da pessoa humana, do
patrimônio, da Administração Pública, e todos os demais.
Ainda
assim ficamos com alguns resquícios da cultura do século XIX, como a
presença de crimes de rapto e posse sexual mediante fraude. Hoje em dia
não mais falamos em posse mas sim em violação sexual mediante fraude.
Outro ranço era o capítulo: "do lenocínio e do tráfico de mulheres".
Depois da reforma promovida pela Lei 12015/2009 e da assinatura pelo
Brasil da Convenção de Palermo, fala-se em tráfico de pessoas, não só
de mulheres. Observação que nos servirá mais tarde: a Convenção
Internacional dispõe sobre o tráfico de pessoas para quaisquer fins,
enquanto o Código Penal brasileiro só se refere a tráfico de pessoas
para fins libidinosos.
Antigamente, as mulheres vitimadas
deveriam ser honestas, especialmente nos crimes de posse sexual
mediante fraude e atentado violento ao pudor mediante fraude. A
honestidade estava mais vinculada ao marido, que passaria a ser
apontado como o "marido da estuprada". A honestidade da mulher
tornava-se objeto de prova e de investigação.
Já no século XXI
acabaram-se com as figuras da sedução corrupção de menores. Neles a
mulher, além de ser honesta, tinha que ser ingênua e pura. Só as moças
entre 14 e 17 anos poderiam ser vítimas.
Outra coisa que mudou
foi a famosa "presunção de violência". Quando a vítima era menor de 14
anos ou era alienada mental e o agente conhecia essa condição, ou ainda
quando a vítima não pudesse oferecer resistência, dizia-se que o crime
foi praticado mediante violência mesmo que não se encontrassem
vestígios no corpo da vítima.
Quanto ao ultraje público ao pudor, há uma imprecisão: o nome certo deveria ser "ultraje público ao pudor".
Que
alterações foram relevantes? Em 2000, incluiu-se no Código Penal a
figura do assédio sexual. É um crime que pode ser praticado por alguém
que tenha superioridade hierárquica em relação a alguém para poder
constrangê-lo a ter ato sexual.
Em 2005, veio outra mudança: com
a Lei 11106, o termo "mulher honesta" foi suprimido. A redação dos
tipos penais que o envolviam passou a ser apenas "constranger mulher".
Essa menção de honestidade era considerado pejorativo em relação à
mulher, e que ela virava alvo da investigação para que se apurasse se
ela realmente era honesta e se ela poderia ser sujeito passivo dos
crimes que a mencionavam.
O mesmo diploma alterador revogou a
sedução e o rapto para fins libidinosos, ao mesmo tempo que adicionou
uma qualificadora ao art. 148, se o crime de seqüestro ou cárcere
privado for praticado para fins libidinosos.
Finalmente, veio a
Lei 12015 em 2009. O Título VI, denominado "dos crimes contra os
costumes", foi renomeado para "dos crimes contra a dignidade sexual". O
bem jurídico tutelado agora é individual e não mais coletivo, como eram
no tempo em que os crimes sexuais eram tidos como violações aos
costumes. A lei também trouxe os crimes sexuais contra vulneráveis,
atribuindo pena mais severa a constrangimentos com fins libidinosos
praticados contra menores de 14 anos, alienados mentais ou os incapazes
de oferecer resistência.
Não se esqueçam que toda pessoa tem o
direito à liberdade sexual, o que significa que atos libidinosos
praticados consensualmente não podem ser tidos como criminosos, salvo
se o agente não tiver, pelas circunstâncias ou pela lei, capacidade
para consentir. É o caso dos vulneráveis e menores, que a lei presume
não entenderem o que estão fazendo. Por outro lado também a lei pune os
"agentes externos" que se beneficiam da disposição do próprio corpo de
uma pessoa para fins de prostituição. É o caso dos rufiões: a
prostituta tem o livre direito de vender seu corpo; o que não pode é
haver pessoas mediando, favorecendo essa conduta, impedindo que a
atividade seja abandonada, facilitando a entrada no negócio, ou tirando
proveito, econômico ou não da prostituição. A prostituição não requer
pagamento pela prestação oferecida pela mulher de programa.
Quando
a Parte Especial do Código Penal for reformada, espera-se que os crimes
deste título migrem para o título dos crimes contra a pessoa, pois, em
últlima análise, quando falamos em dignidade sexual, falamos,
indiretamente, em dignidade da pessoa humana.
A terminologia,
com a nova lei, muda pouca coisa em relação ao passado. "Conjunção
carnal", por exemplo, não deixou de existir. Para o Direito Penal, a
conjunção carnal é o coito vagínico entre homem e mulher. Não se deve,
por óbvio, confundir "conjunção carnal" com "ato libidinoso diverso da
conjunção carnal", que pode abranger qualquer ato sexual.
Os
sujeitos ativos dos crimes sexuais podem ser qualquer pessoa, desde que
tenha as características para a ele(a) ser impoutada a prática desses
crimes. Os sujeitos passivos podem ser qualquer pessoa. Não se esqueça
que essa foi uma mudança trazida pela Lei 12015 com relação ao sujeito
passivo do crime de estupro: antes, só a mulher poderia ser, enquanto
hoje é qualquer pessoa. Também os vulneráveis, que não podem consentir
com a prática do ato.
E os modos de execução? Nos crimes sexuais, temos quatro: violência, grave ameaça, fraude e abuso de poder.
O
cuidado que teremos que tomar é na interpretação: pode haver estupro
simples, estupro qualificado pelo resultado lesão corporal grave,
estupro qualificado pelo resultado morte, concurso material de estupro
com homicídio, ou concurso material de estupro com lesão corporal, ou
até mesmo estupro em concurso com vias de fato.
A grave ameaça
está no art. 147, que contém o crime de ameaça, enquanto a fraude não
tem tipo próprio, mas encontramos em muitos momentos no Código Penal:
falsificação de documentos, supressão de documentos, dissimulação de
homicídio, simulação de duplicatas, e as várias outras hipóteses do
art. 171. Cada caso concreto terá que ser apreciado individualmente. Em
geral, falamos em fraude quando nos referimos a meios artificiosos,
ardilosos, enganosos ou dissimulados.
O abuso de poder está
presente no crime de assédio sexual. É a relação de caráter objetivo
que se estabelece entre pessoas que tenham vínculos de superioridade ou
inferioridade hierárquica. Só há abuso de poder quando há uma pessoa
que manda e outra tem a obrigação de obedecer.
Na próxima aula começaremos os crimes em espécie.