Crimes contra a assistência familiar
Abandono
Crimes contra o pátrio poder (poder familiar), tutela e
curatela
Art. 248 – induzir, confiar, deixar, sem justa causa, de entregar
menor de 18 anos
Art. 249 – Subtração de incapaz
Vamos continuar no estudo dos crimes contra a família hoje. Vamos acompanhar
alguns preceitos associados à família no Código Civil. Temos a regulação do
Direito de Família e do casamento a partir do art. 1511 daquele Código. O que é
casamento, o que é habitação, o que é um grupamento familiar, e todos os
institutos correlacionados.
Revisão da aula
passada
Recapitulando, vamos ver alguns dos deveres da família em
relação aos descendentes e ascendentes, que está no art. 1511. “O casamento estabelece comunhão plena de
vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.” Há os
crimes contra a família constituída pelo casamento ou não.
O Código Civil estabelece algumas diferenças em relação ao
Código Penal, que é mais velho. Se falamos em casamento e cônjuge, não estamos
falando em união estável. Portanto os crimes contra o casamento, a começar pela
bigamia, não podem vitimar o companheiro. São crimes contra o casamento, a instituição formada com
base no vínculo jurídico com habilitação prévia.
Temos que observar os impedimentos que estudamos, quando
falamos no rol do art. 1521 da Lei Civil, que são os vícios estabelecidos pelo
legislador que podem tornar o casamento nulo ou anulável. Os impedimentos que tornam
o casamento nulo são os chamados impedimentos absolutos.
Quem contrai casamento sendo casado comete crime de bigamia.
Quem é casado e contrai união estável não comete o crime, apenas deslealdade.
Além disso vimos a questão do erro. Ele não torna o casamento
nulo de pleno direito, mas pode tornar anulável quando houver vício em relação
à honra da pessoa, reputação, até mesmo quanto à saúde física e mental. No art.
1550 temos as situações que tornam o casamento anulável, além do erro: “É anulável o casamento:
I – de quem não
completou a idade mínima para casar;
II – do menor em idade
núbil, quando não autorizado por seu representante legal;
III – por vício da
vontade, nos termos dos arts. 1.556 a 1.558;
IV – do incapaz de
consentir ou manifestar, de modo inequívoco, o consentimento;
V – realizado pelo
mandatário, sem que ele ou o outro contraente soubesse da revogação do mandato,
e não sobrevindo coabitação entre os cônjuges;
VI – por incompetência
da autoridade celebrante.
Parágrafo único.
Equipara-se à revogação a invalidade do mandato judicialmente decretada.”
O erro está no art. 1557: “Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge:
I – o que diz respeito
à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal que o seu
conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado;
II – a ignorância de
crime, anterior ao casamento, que, por sua natureza, torne insuportável a vida
conjugal;
III – a ignorância,
anterior ao casamento, de defeito físico irremediável, ou de moléstia grave e
transmissível, pelo contágio ou herança, capaz de pôr em risco a saúde do outro
cônjuge ou de sua descendência;
IV – a ignorância,
anterior ao casamento, de doença mental grave que, por sua natureza, torne
insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado.”
Note a correspondência do inciso I do artigo acima com a
norma do art. 236 do Código Penal que estudamos. “Contrair casamento, induzindo em erro essencial o outro contraente, ou
ocultando-lhe impedimento que não seja casamento anterior: pena – detenção, de
seis meses a dois anos.”
Observação: o cônjuge pode até querer assumir um casamento
com alguém doente.
Nunca se esqueçam de que o casamento nulo tem efeitos ex-tunc, e o anulável tem efeitos ex-nunc. Só quem é casado pode
praticá-los, salvo no caso do art. 237: “Contrair
casamento, conhecendo a existência de impedimento que lhe cause a nulidade
absoluta: pena – detenção, de três meses a um ano.”
Nos crimes contra o estado de filiação, importa a relação de
parentesco. Pode ser um vínculo familiar, civil ou legal. O este é o caso de
adoção. Dá-se a família e o nome àquele que foi adotado. Não é um vínculo
biológico mas não deixa de ter importantes efeitos jurídicos. Daí derivarão
ascendentes e descendentes comuns.
Há os crimes de registro de nascimento inexistente, de parto
suposto (art. 241), dar parto alheio como próprio, ocultar ou substituir
recém-nascido, suprimindo ou alterando o direito inerente ao estado civil. Em que
situações os crimes poderiam ocorrer? Entre outras coisas, como uma forma de
lesar o Direito Previdenciário. O registro de filho alheio como próprio pode
inclusive se dar por motivos bons, de nobreza, o que pode afastar a pena, já
que não se trata de comércio ou abandono de crianças, mas sim com o intuito de
constituir uma família. Não há redução à condição análoga à de escravo, nem
prostituição, negociação para enviar ao estrangeiro. A pessoa apenas adota de
forma ilegal a criança para tê-la como filho, sem interesses escusos. Não deixa
de ser crime. Adoção à brasileira pode ser para fins criminosos ou não.
O registro de filho alheio como próprio pode gerar
privilégio em virtude do motivo de reconhecida nobreza, o que é incompatível
com a ação de organizações criminosas. As organizações em geral não visam ao
bem-estar da criança roubada, traficada ou enviada a trabalho forçado. Dever-se-á
aferir, no caso concreto, se a criança estava sendo bem cuidada.
O crime do art. 242 é cumulativo, porque há múltiplos tipos
penais, todos crimes dolosos. Com culpa, só poderá haver indenização, não pena.
A ocultação, por exemplo, precisa de uma ação comissiva, um agir.
Depois teremos o crime de abandono, do art. 243, que é o
abandono em asilo de expostos para alterar o estado de filiação da criança.
Temos que trabalhar com a ideia de que todo crime de abandono no Código Penal,
no capítulo da periclitação da vida e da saúde, é aquele que coloca em risco a
saúde de alguém. Aqui, o abandono é feito em asilo de expostos ou outra
instituição de assistência. Claro que temos que fazer a adaptação do termo
hoje: “asilo de expostos” eram aquelas casas de religiosas que cuidavam de
pessoas que não tinham para onde ir, ou que cometeram crimes, sem noção de quem
seriam seus pais. Esse abandono se dava sem perigo para a vida ou a saúde da
pessoa abandonada. Causava somente a modificação ou substituição do estado de
filiação. Esse era o intuito de quem abandonava o menor. É um direito que também
decorre da personalidade; a vida nova gera direitos e obrigações. A criança
precisa de alimentos e cuidados, dados voluntária ou compulsoriamente, por meio
da justiça. O vínculo jurídico novo que se forma gerará direitos e obrigações.
O bem jurídico tutelado é o estado de
filiação. “Quem são meus pais?” – esta é a pergunta que já constituiu
fundamento de várias ações de reconhecimento de paternidade, muitas vezes sem
pedido de pagamento de alimentos. Buscava-se apenas saber a própria identidade
da criança.
O Código Civil estabelece, quando fala em casamento, os direitos
e deveres que dele decorrem, que se iniciam com ele. Veja o art. 1565: “Pelo casamento, homem e mulher assumem
mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos
da família.
§ 1º Qualquer dos
nubentes, querendo, poderá acrescer ao seu o sobrenome do outro.
§ 2º O planejamento
familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos
educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo
de coerção por parte de instituições privadas ou públicas.”
Há alguns institutos de Direito Civil que refletem questões
sociais e outros que são questões de interesse público. O planejamento familiar
é, por exemplo, uma questão de interesse social, portanto não pode haver
interferência do Estado. Médicos da rede pública, por exemplo, não podem fazer
laqueadura, sob pena de serem considerados criminosos pela sociedade ou pela mídia.
O Estado pode, na melhor das hipóteses, monitorar ou até promover, mas nunca
intervir.
Art. 1566: “São
deveres de ambos os cônjuges:
I – fidelidade
recíproca;
II – vida em comum, no
domicílio conjugal;
III – mútua
assistência;
IV – sustento, guarda
e educação dos filhos;
V – respeito e
consideração mútuos.”
Quando falamos em assistência familiar, portanto, temos que
remeter ao Código Civil. É a fidelidade recíproca, vida em comum, mútua
assistência, sustento, guarda e educação dos filhos e respeito e consideração
mútuos, todos esses valores.
Às vezes as pessoas querem morar em domicílios distintos, e
isso pode inclusive ser considerado um não casamento, mas sim uma união
estável. A lei não fala em “coabitar”, mas vida em comum no domicílio conjugal.
Os crimes contra a família constituem um grupo de normas
penais em branco, então encontramos respaldo no Código Civil. São deveres em
relação à família.
Vamos aos crimes.
O abandono
O que é o abandono, seja material, moral ou intelectual? De
maneira simplista, podemos entendê-lo como “deixar de fazer algo”. O abandono
material é aquele em que recursos, indispensáveis para alguém da família,
deixam de ser providos. Esses recursos devem ou deveriam ser fornecidos por
alguém. Não se esqueçam que os alimentos são devidos em relação ao parentesco
que se forma. Temos, dentro do art. 244, uma hipótese interessante: “Abandono
material – Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho
menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido
ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários
ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada
ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente,
gravemente enfermo:
Pena – detenção, de 1
(um) a 4 (quatro) anos e multa, de uma a dez vezes o maior salário mínimo
vigente no País.
Parágrafo único – Nas
mesmas penas incide quem, sendo solvente, frustra ou ilide, de qualquer modo,
inclusive por abandono injustificado de emprego ou função, o pagamento de
pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada.”
“Sem justa causa” é elemento normativo do tipo, portanto,
matéria de investigação. Aquele que deixa de pagar os alimentos com justa causa
não comente o crime de abandono material.
O artigo tem duas partes. Na primeira parte temos, como
vítima, o cônjuge, o filho menor de 18 anos, o inapto para o trabalho, o idoso
(maior de 60 anos) ou inválido, que não se presta mais ao trabalho. A hipótese
criminosa é deixar de fornecer os recursos necessários à subsistência. É o
dinheiro para se alimentar, para transporte, remédios, o mínimo indispensável
para que se tenha uma vida digna.
O rol de pessoas é fechado. Não se pode falar em
companheiro, só cônjuge. Isso seria analogia in mallam partem. Ascendentes e descendentes podem ser vítimas
também. Por “recursos” entendemos tudo que possa dar sustento àquelas pessoas.
Na segunda parte, o legislador já modifica a vítima e o tipo
de recurso. Sem justa causa ainda é elemento normativo. Agora o sujeito passivo
é o enfermo na família que precisa de socorro. Note que aqui o cônjuge foi
tirado.
Tecnicamente o Código Penal erra pois o cônjuge não é, na
verdade, parente. O vínculo consanguíneo se forma nos descendentes e
ascendentes, mas não entre cônjuges. Os descendentes são quem terão aquela
mistura de genes. O DNA não se confunde entre cônjuges, só entre filhos, netos,
país e avós (e, claro, ascendentes ou descendentes em maior grau). O cônjuge
que ajuíza ação de alimentos dificilmente conseguirá provimento para ele
próprio, mas conseguirá para os filhos, a não ser que esteja passando muita
necessidade. Não será possível fazer analogia entre a primeira e a segunda
parte pois seria em malefício do réu.
Daqui tiramos que o padrasto não poderá pedir alimentos pelo
enteado, a não ser que o adote, momento a partir do qual haverá vínculo
jurídico.
Na segunda parte do art. 244 temos a enfermidade grave. O
abandono, agora, é no sentido de deixar o responsável de providenciar recursos
para a subsistência do enfermo. Não se fala em filhos, mas em descendentes ou
ascendentes, independente da idade. A idade de 18 anos foi posta porque a
partir dela o filho não mais é menor. A regra é de 1940, mas há coincidência
com o Código Civil de 2002. No caso do descendente, pode ser o filho adotado.
Parágrafo único do art. 244: “Nas mesmas penas incide quem, sendo solvente, frustra ou ilide, de
qualquer modo, inclusive por abandono injustificado de emprego ou função, o
pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada.”
Trata do abandono injustificado do emprego para não pagar um débito. Aqui o
legislador fala sobre a parte de recursos alimentícios.
Alimentos podem ser dados voluntariamente ou por força de
decisão judicial. Se o juiz fixou o valor, é porque está havendo ou houve o
descumprimento da decisão, então dizemos que há crime do agente que frustrou ou
ilidiu o pagamento.
O parágrafo é muito importante porque: quem são as vítimas
do caput do artigo? Cônjuge,
ascendente e descendente. Na segunda parte, o gravemente enfermo. E no
parágrafo único? Qualquer pessoa que tenha pedido a pensão e tenha sido
concedida. O cônjuge, por exemplo, pode ter pedido e obtido judicialmente,
apesar de ser algo incomum. Se o pagamento da pensão for frustrada, o cônjuge é
vítima. Até mesmo o parceiro homossexual pode ser vítima se tiver obtido
judicialmente o direito a receber alimentos.
Abandono moral
Art. 245: “Entregar
filho menor de 18 (dezoito) anos a pessoa em cuja companhia saiba ou deva saber
que o menor fica moral ou materialmente em perigo:
Pena – detenção, de 1
(um) a 2 (dois) anos.
§ 1º - A pena é de 1
(um) a 4 (quatro) anos de reclusão, se o agente pratica delito para obter
lucro, ou se o menor é enviado para o exterior.
§ 2º - Incorre,
também, na pena do parágrafo anterior quem, embora excluído o perigo moral ou
material, auxilia a efetivação de ato destinado ao envio de menor para o
exterior, com o fito de obter lucro.”
Aqui o filho menor de 18 anos fica em perigo moral ou
material. O que é perigo moral? Deixar, por exemplo, viver em casa de
prostituição ou com traficantes. Viver em casas de jogos mal afamadas também. Enfim,
tudo que possa levar à corrupção da criança ou adolescente. E o abandono
material? Muito cuidado agora. O artigo anterior tem nome jurídico “abandono
material”, e a redação deste é “...saber que o menor fica moral ou materialmente em perigo: [...]” então
temos aqui, também, um abandono material. A diferença é que, no art. 244, o
abandono é no sentido de deixar de prover os recursos para a subsistência. Enquanto
aqui, fala-se em perigo para a integridade da criança.
Uma mina de carvão é um lugar perigoso por si só. Uma
criança ou adolescente ficará mais em perigo ainda. Quem vai deixá-la lá ou
obriga-a a frequentar tal lugar comete o crime.
Temos o caput, com
a figura do filho menor de 18 anos. “Saiba ou deva saber”: quer dizer dolo
direto ou eventual. O filho deve ficar em perigo, ou não há crime.
§ 1º: “A pena é de 1
(um) a 4 (quatro) anos de reclusão, se o agente pratica delito para obter
lucro, ou se o menor é enviado para o exterior.” Além do perigo, o agente
ainda faz com o intuito de lucro ou de enviá-lo para o exterior. Pode ser um ou outro.
§ 2º: “Incorre,
também, na pena do parágrafo anterior quem, embora excluído o perigo moral ou
material, auxilia a efetivação de ato destinado ao envio de menor para o
exterior, com o fito de obter lucro.” Aqui o Código trata da pessoa que
auxilia o abandono com fim de lucro, ou quem auxilia o envio da criança para o
exterior.
“Materialmente” quer dizer local ou condições, e “moralmente”
é com relação ao vínculo com pessoas que não têm boa fama, presumidamente
criminosas ou desonestas, que podem corromper o menor.
Outro detalhe sobre o art. 245 é
que a vítima deste crime, nas três hipóteses, é o filho menor de 18 anos.
Frisamos isso porque veremos, na aula que vem, a previsão semelhante no
Estatuto da Criança e do Adolescente. Lá há medidas parecidas, no tocante ao
envio para o exterior ou abandono. Mas não se fala, lá, apenas em filho, mas em
criança ou adolescente em geral.
Para concluir, temos o art. 247:
“Permitir alguém que menor de dezoito
anos, sujeito a seu poder ou confiado à sua guarda ou vigilância:
I – frequente casa de jogo ou mal-afamada, ou conviva com pessoa
viciosa ou de má vida;
II – frequente espetáculo capaz de pervertê-lo ou de ofender-lhe o
pudor, ou participe de representação de igual natureza;
III – resida ou trabalhe em casa de prostituição;
IV – mendigue ou sirva a mendigo para excitar a comiseração pública:
Pena – detenção, de um a três meses, ou multa.”
São perigos morais também, mas
neste artigo eles estão definidos e enumerados. Temos, portanto, uma relação de
especialidade deste artigo em relação ao 245. Aqui, falamos na forma do abandono moral.
Abandono intelectual
Art. 246: “Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em
idade escolar:
Pena – detenção, de quinze dias a um mês, ou multa.”
Era insignificante este artigo no
passado; hoje a promotoria da educação observa bastante este crime. O pai que
matricula o filho na escola mas este deixa de frequentar, sem que o pai nada
faça, ou o pai que deixa de matricular o filho comete este crime. Isso sem
dizer que muitas vezes o causador de tudo isso é o próprio Estado. Não se
esqueça da “justa causa” como elemento do tipo. Os pais estão obrigados a
oferecer a instrução primária durante o Ensino Fundamental. Antigamente
falava-se em idade (7 a 14 anos), mas hoje fala-se no período do Ensino
Fundamental, independente da idade da criança.