Crimes contra o poder familiar, tutela e curatela.
Hoje vamos chamar atenção sobre um aspecto, que é o Estatuto
da Criança e do Adolescente. Quando falamos em abandono dentro deste título do
Código Penal, vimos que se trata de um crime diferente dos que temos na
periclitação da vida e da saúde (do Título I). Nestes, há perigo, enquanto aqui
nos crimes contra a assistência familiar não há. Esse abandono, na verdade, é a
entrega de filho menor de 18 anos a pessoa em cuja companhia ele fica moral ou
materialmente em perigo. Não existe o abandono em si que causa perigo à saúde
ou à vida, mas perigo moral ou material que possa colocar em risco a incolumidade
do menor.
Quando nos falamos em abandono moral e material, falamos nos
arts. 245 e 247 do Código. A relação é de especialidade porque no art. 247
temos as formas de cometimento do crime de abandono e locais que possam
corromper o menor: companhia de pessoas de má vida, locais mal afamados, etc. Temos
uma forma de abandono moral especial em relação ao art. 245, artigo em que temos
o abandono moral de forma genérica.
O art. 245 possui duas outras figuras, que é o abandono
moral e material de filho, no caput; no
§ 1º temos o abandono moral seguido da possibilidade de obtenção de lucro ou
envio para o exterior, e na terceira hipótese, no § 2º, temos a conjugação, embora
excluido o perigo moral e material, do fim de lucro e o envio para o
exterior. É neste aspecto que temos que prestar atenção no Estatuto
da Criança e do Adolescente. A Lei 8069, o ECA, foi criada praticamente junto com a Lei de Crimes
Hediondos. No Estatuto, temos crimes e penas, bem como infrações
administrativas. Temos figuras bem parecidas com o Código Penal, então haverá
conflito aparente de normas que irá se resolver pelo princípio da
especialidade. Art. 237 do ECA: “Subtrair
criança ou adolescente ao poder de quem o tem sob sua guarda em virtude de lei
ou ordem judicial, com o fim de colocação em lar substituto:
Pena – reclusão de
dois a seis anos, e multa.”
Art. 238: “Prometer ou
efetivar a entrega de filho ou pupilo a terceiro, mediante paga ou recompensa:
Pena – reclusão de um
a quatro anos, e multa.
Parágrafo único.
Incide nas mesmas penas quem oferece ou efetiva a paga ou recompensa.”
Aqui não tem perigo moral nem material. Pode ser filho ou
pupilo, que é aquele que se tem a guarda, e entrega-se mediante recompensa ou
lucro. É uma figura parecida com esse abandono do art. 245 do Código Penal.
Temos as três figuras do art. 245: abandono moral e material, abandono com a
possibilidade alternativa de lucro ou envio ao exterior, e a última
possibilidade, sem perigo, mas com envio para o exterior com fim de lucro. No Estatuto
da Criança e do Adolescente temos a entrega sem perigo, mas sempre havendo pagamento
ou recompensa. Não é preciso que o menor vá para o exterior, mas o fim lucrativo
é necessário para que se configure o crime. Também dispensa-se, no ECA, o perigo material ou moral. O art. 238 do Estatuto se
apresenta como uma figura mais genérica, apesar de estar numa lei especial. O
princípio da especialidade é aplicado de forma avessa ou indireta, pois o tipo
especial está no Código Penal, que é lei geral, e não na Leiu 8069, que é especial.
É que, no CP, temos perigo moral e material, e tem que ser de filho (no caput do art. 245), e não de criança ou
adolescente em geral. No § 1º do art. 245 do Código Penal temos o perigo moral e material com a possibilidade
de lucro OU envio para o exterior (note a alternatividade); e na terceira
figura sim, que é possibilitar, sem qualquer tipo de perigo, o envio para o
exterior, com o fito de lucro, ou seja, envio E lucro, o que não existe no
Estatuto. Por isso a figura do ECA é genérica, enquanto as do Código Penal são
específicas.
Havendo apenas a paga ou promessa para entrega de filho ou
pupilo para o exterior sem perigo, estamos diante da figura do art. 238 do ECA,
que é a genérica. Se houver perigo material ou moral, voltamos ao art. 245 do
CP. Sem perigo, mas com envio para o exterior e paga ou promessa de
recomepensa, vamos para o § 2º do art. 245 do Código Penal.
O que devemos deixar claro é que, havendo conflito entre
estas duas figuras, devemos resolver pelo princípio da especialidade. Mas qual é
o tipo especial? Os do Código Penal! O ECA é lei especial, então a primeira impressão que temos é que devemos
aplicá-lo porque é especial, entretanto, os dispositivos sobre esta matéria é
que são mais genéricos do que os do Código Penal, portanto aplicamos o Código,
que, neste caso, é especial.
Parágrafo único do art. 238 do ECA: “Incide nas mesmas penas quem oferece ou efetiva a paga ou recompensa.”
Art. 239: “Promover ou
auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para
o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro:
Pena – reclusão de
quatro a seis anos, e multa.
Parágrafo único. Se há
emprego de violência, grave ameaça ou fraude:
Pena – reclusão, de 6
(seis) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.”
Aqui temos uma hipótese de conflito idêntico com o art. 245,
§ 2º do Código Penal: “Incorre, também,
na pena do parágrafo anterior quem, embora excluído o perigo moral ou material,
auxilia a efetivação de ato destinado ao envio de menor para o exterior, com o
fito de obter lucro.” Isso quer dizer que no art. 245, § 2º do CP temos o
envio para o exterior e o lucro. No ECA
temos a inobservância das formalidades legais, que pode levar-nos a entender
que há conflito com a figura do art. 242, que é registrar como seu filho de
outrem. Mas o fim específico aqui no art. 245, § 2º é o envio para o exterior
com lucro, ou seja, conjunto aditiva “e”. No ECA, usa-se a conjunção alternativa
“ou”. Isso poderia sugerir três conflitos: primeiro: registrar como seu o filho
de outrem, já que fala-se “sem observância das formalidades legais”. Mas aqui
se refere ao envio para o exterior. Essa figura, em relação ao registro, é mais
específica. Segundo conflito: com o art. 245, § 1º, quando diz que, havendo perigo
moral e material, a pessoa enviar para o exterior, ou tenha fim
de lucro. É uma outra sugestão de conflito. Só que, no Código Penal, existe a
primeira figura, não do caput, mas do
§ 1º, do perigo moral ou material, que inexiste no ECA. Portanto, não há
conflito. Essa figura do ECA, portanto, é afastada.
Na terceira figura, é excluído o perigo moral e material,
mas lá temos as duas situações conjugadas: envio para o exterior e fim de lucro. Afasta a hipótese do
art. 239 porque nele se usa o OU. Então temos, como regra geral, o Código Penal
como lei especial, que é a lei que detalha as figuras de abandono moral e
material. Por fim, fixem também que alguns crimes do Estatuto se referem a qualquer
criança ou adolescente, e não somente a filho.
Abandono intelectual
Art. 246: "Deixar,
sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade
escolar: pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa."
É a conduta em que os responsáveis pela criança ou que têm a
guarda deixam de prover sua instrução primária, quando em idade escolar. A
idade escolar é o Ensino Fundamental. É uma norma penal em branco, pois agora o
Ensino Fundamental vai até a nona série, não mais até a oitava. O Estado que se
responsabiliza pela instrução das crianças. Todo o ensino obrigatório deve ser
custeado pelo Estado, mesmo que isso não ocorra na realidade. O pai que matricula o
filho na escola mas não o obriga a frequentar responde por abandono
intelectual. Também o que simplesmente não matricula o filho.
Em todos os crimes há o elemento normativo, que é “sem justa
causa”. Se houver problemas de
transporte, isso poderá ser um óbice à
educação. É um crime raramente conhecido pelas autoridades.
Há pouco tempo atrás um homem foi condenado à pena de multa
de R$ 60,00 por não matricular os filhos adolescente no Ensino Médio. É que, na
verdade, o pai praticava “home schooling”, e, de fato, conseguiu capacitar os
filhos melhor do que a própria escola, tanto que eles passaram no vestibular
sem nunca terem ido à escola durante no Ensino Médio. A condenação foi
simbólica, apenas com o objetivo de cumprir a lei. Não houve, na verdade,
nenhuma forma de abandono. Comentaristas alheios ao problema disseram que o
abandono se deveu também ao fato de que os jovens foram privados do convívio
social escolar, reputado como conditio
sine qua non
para a formação. A burocracia e o formalismo educacional
existem com a intenção de evitar a “bagunça”. Ninguém, senão
instituições reconhecidas pelo MEC, têm competência para emitir
certificados de conclusão de curso.
Crimes contra o
pátrio poder, tutela e curatela
O Código Penal não foi modificado em relação ao seu termo,
mas "pátrio poder" deixou de ser usado desde o novo Código Civil. O pai que
determinava os rumos do filho, e a mulher era apenas colaboradora. O pátrio
poder corresponde ao atual poder familiar.
O poder familiar é o instituto pelo qual os pais têm,
em relação aos filhos, o direito e o dever de educá-los, assisti-los, até os 17
anos. Os pais irão gerir a vida deles. Em que sentido? Sobre o aspecto moral,
material, espiritual, intelectual, e os filhos, por sua vez, devem obediência
aos pais.
Hoje temos uma inversão completa. O pai faz o que o filho
quer. Até os 16 anos o filho é representado
pelos pais; entre os 16 e 18 ele é assistido.
Poderá fazer algumas coisas, mas não todas. Quem está sujeito ao poder familiar
não pode querer nada, na verdade. A realidade, infelizmente, não acompanha a
lei. Temos adolescentes que trabalham cuidando da casa, sozinhos. Até crianças.
Vemos também pessoas maiores de 18 anos sem condições psíquicas e educacionais de
trabalhar.
A pessoa só começa a ter independência quando tem
independência financeira. É quando ela passa a ter direito de fato à gestão de sua
própria vida.
Criticamos os pais de países europeus que
"abandonam" os filhos precocemente, aos 17 anos... fato é que eles
“abandonam” mesmo, mas com a condição de que trabalhem. Se distanciam cedo, vão
estudar em outro país, em outra cidade. A pessoa que não vai para outra cidade
depois dos 18 anos é vista com estranheza.
O poder familiar continua sendo o domínio dos pais sobre os
filhos, mas não no sentido autoritário. O pai que deixa o filho se drogar ou se
transformar em michê não trará um caminho de felicidade para a família. A
pessoa está em formação, e quem tem que guiá-lo é alguém que tenha carinho e
vontade de ensinar.
O Código Penal ainda chama de pupilo aquele que está sob tutela. À curatela estão sujeitos os que
têm mais de 18 anos mas não tem o domínio de suas faculdades mentais, e não têm
condições de gerir seu próprio patrimônio. Pródigos, por exemplo. Filho incapaz
estará sujeito ao poder familiar o resto da vida. o curador pode ser designado
quando os pais morrerem sendo o maior de idade portador de problemas mentais.
O crime contra o poder familiar
Chama-se induzimento a fuga, entrega arbitrária ou sonegação
de incapazes. É um tipo misto: são três núcleos, mas dois crimes apenas: um,
induzir, e outro, confiar ou
sonegar. “Induzir menor de dezoito
anos, ou interdito, a fugir do lugar em que se acha por determinação de quem
sobre ele exerce autoridade, em virtude de lei ou de ordem judicial; confiar a outrem sem ordem do pai, do
tutor ou do curador algum menor de dezoito anos ou interdito, ou deixar, sem justa causa, de entregá-lo a quem legitimamente o
reclame:
Pena – detenção, de um
mês a um ano, ou multa.” São duas figuras que podem concorrer em concurso
material. Posso induzir o menor a fugir de casa, e depois entregá-lo
(confiá-lo) a alguém, ou então posso induzi-lo a fugir de casa e escondê-lo
(sonegá-lo).
O crime pode ser praticado pelos pais também, quando em
virtude de decisão judicial a criança fica sob a guarda de um deles, ou de um terceiro.
Art. 249: Subtração de incapazes. “Subtrair menor de dezoito anos ou interdito ao poder de quem o tem sob
sua guarda em virtude de lei ou de ordem judicial:
Pena – detenção, de
dois meses a dois anos, se o fato não constitui elemento de outro crime.
§ 1º - O fato de ser o
agente pai ou tutor do menor ou curador do interdito não o exime de pena, se
destituído ou temporariamente privado do pátrio poder, tutela, curatela ou
guarda.
§ 2º - No caso de
restituição do menor ou do interdito, se este não sofreu maus-tratos ou
privações, o juiz pode deixar de aplicar pena.”
Temos portanto o crime do art. 248, que é o induzimento a
fuga, entrega arbitrária ou sonegação de menor, em que a primeira conduta pode
ser praticada em concurso material com qualquer uma das duas outras, mas não as
duas últimas entre si: pode-se induzir o menor a fugir e confiá-lo a outrem, ou
induzi-lo a fugir e sonegá-lo. No caso da subtração, retira-se-o da esfera de
disponibilidade de quem o tem por direito, sem indução. Comparando grosseiramente,
é como a diferença entre furto e estelionato, em que no primeiro subtrai-se a
coisa, e no segundo mantém-se em erro alguém para que a pessoa entregue algo ao
sujeito ativo.
Caso Pedrinho: foi um caso de subtração na maternidade, com
posterior registro (de filho alheio) como próprio. Não se fala em sequestro, crime
em que é sujeito passivo a pessoa que tem condições de determinar sua própria
liberdade. No crime em tela, quem tem o domínio físico são os pais. Daí o crime
é contra o poder familiar, não contra a liberdade individual.
O § 2º contém uma previsão de arrependimento eficaz. São casos
mais complicados, que demandam ação na Vara da Infância e da Juventude para
detemrinar a apreensão do menor.
Se o pai induz o filho a fugir do CAJE, não há lesão a essa
bem jurídico, mas sim à Administração Pública.