Direito Penal

terça-feira, 11 de maio de 2010

Crimes contra a fé pública


Generalidades

 

Crimes em espécie

 

Vamos pular os crimes contra a incolumidade pública. Nossa última prova será antecipada por causa da Copa.

Hoje vamos falar dos crimes contra a fé pública. Os crimes contra a incolumidade pública são importantes, mas a importância prática deles é menor, salvo o crime de falsificação de medicamentos, que é hediondo.

Depois leremos um texto sobre os crimes de falsidade. Este é o Título X da Parte Especial do Código Penal. Em algumas ocasiões já falamos que não temos a fraude como elemento conceituado no Código Penal. É um modo de execução dos crimes, mas não é conceituada como a grave ameaça ou a violência. Estamos diante de um título em que a fé pública traz a expressão de uma das espécies de fraude que temos na legislação brasileira. Pode ser erro, falsificação, engodo, vários modos. Temos fraude no homicídio, nos crimes sexuais, no próprio estelionato, e agora vamos ver os crimes que atingem a fé pública. Naqueles crimes, a fraude é modo de execução, enquanto aqui é crime autônomo.

Vejam que, quando falamos em crimes contra a fé pública, temos que o objeto jurídico é a... fé pública! O que é essa fé pública? É a confiança que depositamos em coisas, documentos, objetos que nos dão segurança jurídica. Pode ser internamente ou no plano internacional. Passaporte, por exemplo, que nos permite a viajar a para qualquer país, a princípio. Não se fala aqui, por outro lado, na confiança que cada indivíduo em particular deposita nas coisas, pessoas, documentos ou objetos. Posso fazer a importação de um livro por um site de compras internacional e fornecer meu CPF, minha identidade. Daí temos a confiança depositada naqueles documentos.

Blitz: quando somos parados numa, poderemos ter a confiança de que nossos documentos, como o documento do veículo e nossa CNH atestarão a regularidade de nossa situação. 

A fé pública é a confiança geral da sociedade. Não ficamos em pé diante do caixa eletrônico conferindo se o dinheiro tirado é falso. A presunção é que o dinheiro é bom.

A fé pública da qual tratamos neste título é a fé que todos depositamos em todas as coisas e pessoas. É que podemos ser enganados por uma fraude grosseira. Se somente um sujeito for enganado, não temos crime contra a fé pública, que são aqueles em que qualquer pessoa mediana seria enganada. Poderá, no primeiro caso, se tratar de estelionato, que não é crime contra a fé pública, mas contra o patrimônio, contra o indivíduo.

Aqui cabe falar do golpe do bilhete, aquele em que um sujeito com boa aparência abordar alguém na rua dizendo portar um bilhete premiado de loteria, porém que não terá condições de sacar o dinheiro por estar com pressa para voltar a sua cidade natal, daí pedir que a vítima retire no banco o dinheiro e lhe dê metade do valor do prêmio em troca do bilhete. Se o bilhete for grosseiro e de facilmente reconhecido como falso, isso será uma tentativa de estelionato, pois a vítima poderia ainda assim ser enganada. É um crime contra o patrimônio. A fraude é modo de execução. Os crimes contra a fé pública são tais que a fraude é crime autônomo. Essa é a primeira diferente: os bens jurídicos atingidos.

Imagine que, se em todos locais que fôssemos, precisássemos comprovar quem somos. A vida em sociedade seria inviável. Teríamos que viver nos justificando a todo momento.

 

Características

Fé pública é um bem jurídico não individual, mas coletivo. Traz a mesma regra dos crimes vagos, pois são bens desprovidos de personalidade jurídica, não são personificados, são abstratos.

Outra característica é que só existe crime contra a fé pública doloso. Se existe somente culpa, não há crime. Pode ser, na pior das hipóteses, uma infração administrativa.

São crimes formais e de perigo. Não precisam de um resultado exterior. A cédula falsificada não precisa ser posta em circulação para que o crime se configure. Existe uma simples possibilidade de causar instabilidade na sociedade, independentemente de se fazer circular aquela moeda.

Suponha que alguém vai comprar um carro e, na loja, apresenta documentos falsos. Isso gera instabilidade, mesmo que tudo confira e a loja não venha a, naquele caso, experimentar prejuízo. Estes crimes não precisam causar dano. Claro que teremos a possibilidade de o resultado se concretizar, daí falaremos nas figuras equiparadas. A utilização efetiva do documento falso ou moeda falsa não é obrigatória, mas é uma figura equiparada ao crime de falso. Quem falsificou vai para o caput, quem usou vai para o § 1º.

O que mais podemos levantar? Em geral, teremos duas hipóteses de falsificação. Quando alguém alega que tal peça é uma réplica, o que ela fez foi copiar, imitar. Pega-se o original e faz-se uma cópia. Se faço uma cópia para meu uso, não há crime. Mas se faço copia para vender, para distribuir ou expor à venda, pratico o crime vulgarmente conhecido como pirataria. Ele tem várias formas, que não são essas descritas no título dos crimes contra a fé pública do Código; estão no Título III do Código, nos crimes contra a propriedade imaterial, também no Código de Propriedade Industrial e em mais diplomas específicos. Todos os que tratam de propriedade imaterial incluem a pirataria. Inclusive há lojas com direito de exclusividade de alguns produtos. Quem vende produto não autorizado e/ou replica ou imita pratica crime contra a propriedade industrial. O tratamento jurídico é que será diferente. Tudo que puder ser copiado ou “furtado” terá alguma espécie de proteção. plágio de obra literária, por exemplo.

Outra forma é não produzir algo novo, mas alterar o original. Ao falar em fraude, falamos em nova criação ou alteração. Rasura, corretivo e outras alterações similares em documentos também caracterizam crime contra a fé pública. Qualquer coisa mudada caracterizará a fraude, independente de ser a data, o nome, o valor, trocar fotografia, impressão digital, etc. Mandar fabricar carimbo falso do Ministério da Agricultura para usar no açougue também é crime.

Sonegação fiscal, crimes previdenciários e outros constituem fraude.

Vender “gato por lebre”, como a falsificação de uma bolsa de marca, constitui crime de fraude, além de crime contra a propriedade industrial e, como é dirigido a um indivíduo visando ferir seu patrimônio, é também estelionato.  O gato por lebre é fraud que também pode ser crime contra o consumidor, contra as relações tributárias, sonegação fiscal, crime contra a fé pública, qualquer um dos crimes. O que temos que saber é qual é o objeto jurídico.

E como será o tratamento pelo Judiciário em caso de concurso de crimes? Há quatro correntes: concurso formal, concurso material, o crime fim absorver o crime meio, ou o mais grave absorver o menos grave. A única coisa inadmissível é a absorção do crime mais grave pelo menos grave. Encontramos decisões em todos os sentidos. Apenas alguns exemplos: se falsifico documento público com o intuito de enganar alguém, respondo pela falsificação de documento público mais o estelionato, sendo aquele mais grave que este. Ou também alguém pode ser ludibriado com moeda falsa, neste caso, o agente responderá pela moeda falsa e pelo estelionato. Note que, nos dois pares de crimes, cada crime tem uma objetividade jurídica diferente. Se envolver moeda falsa (em curso legal no país ou no estrangeiro), a competência será da justiça federal.

Há discussão na doutrina sobre qual deve ser a consequência para o agente, defendendo alguns autores que deve prevalecer o entendimento do concurso formal, que abate a pena, sendo portanto mais benéfico ao réu.

As quatro possibilidades são possíveis. O princípio da consunção é o que domina; temos que saber se há relação de meio e fim entre os crimes.

Dentro das características, o que mais podemos falar? Vimos dos elementos, falamos que é crime doloso, e também que não é necessário que os crimes contra a fé pública provoquem mudança material no mundo exterior, justamente porque são crimes formais, de perigo, de consumação antecipada. A objetividade jurídica é a fé pública, e a norma penal visa proteger as relações de confiabilidade. Se era claramente perceptível a tentativa de fraude, não há que se falar em fraude pois tratar-se-á de crime impossível.

 

Falsidade documental

Temos falso de documento público e falso de documento particular.

Falso de documento é aquele que recai sobre um papel que tenha relevância. O que é o falso de documento público? Aliás, o que é um documento público? A escritura pública é um exemplo. Por quem é feito? Por um preposto do Estado. Ele poderá ser público tendo ou não forma solene. Alguns documentos públicos têm forma prevista em lei, como escritura pública, certidão de óbito, de nascimento, de casamento, de separação, de divórcio, etc. São feitos com a interferência de um agente do Estado. Médico da rede pública pode emitir atestado falso, e este será documento público. A solenidade não importa.

Art. 297 – Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro:

Pena – reclusão, de dois a seis anos, e multa.

§ 1º - Se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do cargo, aumenta-se a pena de sexta parte.

§ 2º - Para os efeitos penais, equiparam-se a documento público o emanado de entidade paraestatal, o título ao portador ou transmissível por endosso, as ações de sociedade comercial, os livros mercantis e o testamento particular.

§ 3º Nas mesmas penas incorre quem insere ou faz inserir:

I – na folha de pagamento ou em documento de informações que seja destinado a fazer prova perante a previdência social, pessoa que não possua a qualidade de segurado obrigatório;

II – na Carteira de Trabalho e Previdência Social do empregado ou em documento que deva produzir efeito perante a previdência social, declaração falsa ou diversa da que deveria ter sido escrita;

III – em documento contábil ou em qualquer outro documento relacionado com as obrigações da empresa perante a previdência social, declaração falsa ou diversa da que deveria ter constado.

§ 4º Nas mesmas penas incorre quem omite, nos documentos mencionados no § 3º, nome do segurado e seus dados pessoais, a remuneração, a vigência do contrato de trabalho ou de prestação de serviços.

Temos também os documentos particulares. Se o público é feito por um agente do Estado, no privado não há essa interferência. Moeda, por exemplo, tem forma solene, há um ritual ao se prepará-la. Por outro lado, posso fazer uma declaração à mão, um recibo, e nada tem forma solene. Graças ao antigo Ministério da Desburocratização que não existe mais o “atestado de bons antecedentes”.

Falsificação de documento particular

“Art. 298 – Falsificar, no todo ou em parte, documento particular ou alterar documento particular verdadeiro:

Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa.

Temos ainda o falso ideológico e o falso material. Não vamos entrar em muitos detalhes. O que é o falso ideológico? De ideia, de conteúdo. O ideológico é sobre a ideia contida, enquanto a falsidade material é feita na forma do documento, mediante remoção de retrato, colocação de impressão digital de pessoa diversa, ou montagem de carteira de identidade completamente falsa. Pratico falsidade ideológica quando quero vantagem para mim, alterar a verdade sobre fatos jurídicos relevantes, ou causar prejuízo para outrem. Simulação de autoridade para celebração de casamento, que dispensa carteira, é falso ideológico.

Os dois falsos podem recair sobre qualquer documento, público ou particular.

 

Folha de papel em branco

É um problema que podemos viver a partir de uma folha assinada. Há os exemplos clássicos, como os contratos de cento e sete páginas. Folha de papel em branco para o Direito Penal é o mesmo que nada. Quando ela ganha relevância, desde que assinada? Quando nela é elaborado um documento. É como um cheque. Há os espaços que já vêm impressos, e os em branco: valor, numeral, por extenso, nominal a quem se paga, data e assinatura. Cheque em branco, mas assinado, só será título de crédito e relevante para o Direito Penal quando estiver preenchido.

Como saberemos se é falso ideológico ou material? Vejamos. Posso ir até Karina, dar-lhe um cheque assinado, e pedir que ela preencha no valor de R$ 5.000,00. Ela preenche a folha de cheque no valor de R$ 7 mil. Outro caso é aquele em que peço para Eneida guardar meu talonário de cheque, que percebe que todas as cártulas estão assinadas, então ela destaca uma, preenche no valor de R$ 7 mil e apresenta contra o banco sacado. Qual a diferença entre essas duas situações? Karina recebeu uma folha em branco já sabendo qual deveria ser o valor a ser preenchido. Esse é um caso de falso ideológico, pois ela desnaturou o valor, quebrando a confiança. Ela saberia o que deveria ser inserido no documento. Ela tomou conhecimento do conteúdo a ser inserido. O segundo caso é de falso material, o documento foi construído a partir dali, mesmo que já estivesse assinado. O valor ou o conteúdo todo será inventado.

Furtar bloco de atestados médicos, preencher e vender é falso ideológico. O documento era verdadeiro, bem como o carimbo e a assinatura. O conteúdo inserido que era desconhecido da vítima.

 

Crimes em espécie

No capítulo da moeda falsa, temos a falsidade de moeda, figuras equiparadas à moeda, que são utilização, recebimento de boa-fé, e uma figura qualificada. São figuras equiparadas porque eu eu falsifico, eu fabrico, e fabricar, alterando moeda de curso legal no país ou no estrangeiro. Só cabe para moeda que esteja circulando. Moeda é a unidade monetária estabelecida pelo Estado. Moeda, aqui, refere-se à moeda metálica ou ao papel-moeda. Moeda que não está em circulação ou moeda verdadeira, mas cuja circulação foi desautorizada e recolhida são figuras atípicas.

Art. 289: “Falsificar, fabricando-a ou alterando-a, moeda metálica ou papel-moeda de curso legal no país ou no estrangeiro:

Pena – reclusão, de três a doze anos, e multa.

§ 1º - Nas mesmas penas incorre quem, por conta própria ou alheia, importa ou exporta, adquire, vende, troca, cede, empresta, guarda ou introduz na circulação moeda falsa.

§ 2º - Quem, tendo recebido de boa-fé, como verdadeira, moeda falsa ou alterada, a restitui à circulação, depois de conhecer a falsidade, é punido com detenção, de seis meses a dois anos, e multa.

§ 3º - É punido com reclusão, de três a quinze anos, e multa, o funcionário público ou diretor, gerente, ou fiscal de banco de emissão que fabrica, emite ou autoriza a fabricação ou emissão:

I – de moeda com título ou peso inferior ao determinado em lei;

II – de papel-moeda em quantidade superior à autorizada.

§ 4º - Nas mesmas penas incorre quem desvia e faz circular moeda, cuja circulação não estava ainda autorizada.

Quais as figuras equiparadas? § 1º. É a do sujeito que emprega a moeda falsa. Pode ser que um sujeito falsifique e outro utilize.

O que utilizou responde pelo § 1º, enquanto o que fabricou (falsificou) responde pelo caput. Quando responderão por um crime somente? Dois responderão pela mesma figura quando houver ajuste prévio: os dois combinam de um deles falsificar e outro derramar no mercado. A figura equiparada será usada quando não houver vínculo subjetivo entre aquele que fabrica e aquele que utiliza.

Temos um tipo misto alternativo: importar, exportar, adquirir, vender, trocar, ceder, emprestar, guardar e introduzir na circulação moeda falsa. Ele poderá praticar várias condutas, mas responderá por uma apenas. A única que enseja crime permanente é a de guardar. Está preso em flagrante o agente na hora em que foi encontrada a moeda falsa sob seu colchão.

Recebimento de boa-fé: é o caso do § 2º. É um crime de menor potencial ofensivo, que é aquele praticado pelo agente que recebe a moeda falsa de boa-fé, em outras palavras, sem dolo. Descoberta que é falsa, ele reintroduz à circulação, com o intuito de não ficar no prejuízo. Neste caso, ele responderá. É o art. 289, § 2º.

Se o sujeito recebe a moeda falsa e nunca souber que o é, não há dolo. Não há crime porque previsão de crime culposo aqui. O conhecimento posterior de que é falsa e a reintrodução na circulação são necessários.

Por fim, temos a figura qualificada, em que na verdade temos um desdobramento. Alguns autores criticam porque acreditam que deveria ser somente uma infração administrativa. É o gerente, diretor, administrador que manda fabricar a moeda em quantidade maior do que a autorizada. Ou então fabricar com metal em quantidade abaixo do que foi estabelecido em lei. A moeda metálica tem que estar dentro das especificações técnicas.

Por que é crime? Se eu pegar uma moeda fora das especificações, acharei que ela é falsa imediatamente. Se está havendo troca de moedas, o Banco Central recolhe as velhas para evitar a insegurança.

É um crime próprio pois só pode praticar quem está na Casa da Moeda.

Para fechar, o § 4º: “Nas mesmas penas incorre quem desvia e faz circular moeda, cuja circulação não estava ainda autorizada.” A moeda é boa, não falsa, mas não havia sido autorizada sua circulação.