Os crimes contra a fé pública atingem a confiança de um
número indeterminado de pessoas, que atenta contra a segurança jurídica interna
e internacional. Vimos que são crimes formais, não exigem resultado no mundo
exterior, são sempre dolosos, podem ser praticados na forma de imitar ou
alterar a verdade; estão ligados ao conceito de fraude, vimos que não existe
fraude como crime único, mas sim como elementar, qualificadora, modo de
execução ou crime autônomo. O que não temos é a definição de fraude.
A fraude, aqui, se personifica como o falso, de documento
público ou particular, dependendo da interferência ou não do agente do Estado
na confecção do documento. O documento pode ou não ser solene, quando exige
formalidade para sua elaboração. E vimos, por último, que o falso pode ser
ideológico ou material. Ideológico quando contamina-se, falsifica-se a ideia já
conhecida, ou material quando algo novo é fabricado ou imitado.
Vamos ver os casos concretos e veremos como o legislador
disciplinou a fraude como falso ideológico. O falso ideológico se diferencia do
falso material por outras circunstâncias, a princípio, com a colocação de um
conteúdo em cima de outro.
Na fraude do papel em
branco, não se considera um papel em branco como se fosse documento. Para o
Direito Penal a folha de papel em branco não tem relevância. Só passa a ter
relevância quando o documento é fabricado. Feito o documento e assinada a folha,
temos algo. O exemplo que demos em sala foi uma cártula de cheque em branco. Se
peço que o terceiro insira um valor e ele insere outro, há falso ideológico. Se
ele tem acesso ao documento em branco para construir algo, temos o falso
material.
E então começamos a estudar os crimes contra a fé pública em
espécie, a começar pela moeda falsa. A norma dispõe sobre falsificação da moeda
de curso legal no país ou no estrangeiro. É o que está no Capítulo I deste
Título X.
Dentro dos quatro capítulos que estão contidos na fé pública
temos a moeda falsa, que é a unidade monetária com curso legal no país, ficando
protegida não só a moeda brasileira, mas também a moeda de curso legal no
estrangeiro. Esse é o primeiro bem jurídico tutelado. O segundo, que
estudaremos em breve, são os títulos e outros papéis públicos que, mesmo não
sendo moeda, têm valor monetário. Exemplo: alvará para recebimento de
importância, matéria do do Capítulo II. Os dois primeiros são os capítulos com
os crimes mais graves deste título. Todos os crimes que existem para a moeda
falsa existem também para os demais títulos de crédito.
Depois vamos para a falsidade documental e outras falsidades.
Na primeira, temos apenas documentos que não têm expressão monetária, mas que
podem ter, eventualmente, caso em que teremos conflito aparente de leis. Atestado
ou certidão falsa é um documento, mas não tem expressão monetária, apesar de
ser um papel público. O princípio é: falsidade documental é gênero, enquanto
falsidade de títulos e outros documentos públicos é espécie. Princípio da
especialidade.
E as outras falsidades? Estão no Capítulo IV. Até poderiam
estar no Capítulo III, mas, por sua especificidade, o legislador resolveu dar
totalmente especifico. Temos a falsidade de sinal atribuído a fiscal da saúde,
a peso, medidas, alteração de sinal de identificação de veículo automotor, e
teremos o art. 304, que será próprio e se referirá somente à falsidade
documental trazendo o uso desses documentos. É uma regra geral de uso de
documento falso. No Capítulo I, que trata da falsificação de moeda, temos a
falsificação no caput do art. 289 e o uso logo em seguida como figura
equiparada, no § 1º. Nos Capítulos III e IV, temos a previsão das falsidades
nos artigos e o uso criminalizado somente no art. 304, não em respectivos
parágrafos dos arts. 297 a 302 como figuras equiparadas.
Objeto jurídico tutelado é a moeda. A unidade monetária do
país é fixada pelo Estado. Ela também está protegida pela Constituição, no art.
22, incisos VI e VII. Ao BACEN cabe estabelecer a cor, os símbolos, os valores
e as marcas de identificação de cada moeda.
Na doutrina podemos ver o termo “contrafação”, que é o mesmo
que falsificar ou alterar.
Lembrem-se que também haverá o crime de estelionato se
houver o induzimento a erro de alguém com o uso de moeda falsa. Se a moeda era grosseiramente
falsificada não há crime contra a fé pública, pois temos crime impossível.
Até podemos ter culpa, mas não haverá crime. O crime de
menor potencial ofensivo é o recebimento da moeda falsa de boa-fé e restituí-la
à circulação, e há dolo quando do momento da reintrodução à circulação
consciente de que a moeda é falsa.
Aplicaremos, em regra, o princípio da consunção, que veremos
que pode tratar do crime complexo, formado por dois ou mais crimes, como roubo,
extorsão, estupro ou latrocínio; o crime progressivo (diferente de progressão
criminosa), como o caso do homicídio, crime em que a lesão corporal é
obrigatória para se chegar ao crime fim. É um crime-meio necessário, em que o
menos grave está embutido, e não há que se falar em dois crimes. Bigamia requer
a falsificação anterior. E progressão criminosa, que é, por exemplo, o ato de fabricar
e em seguida usar a moeda falsa. O uso posterior, pelo mesmo agente, da moeda
falsa, constitui post factum impunível, por razão de política
criminal.
Em concurso de pessoas, se Eneida passa moeda falsa para Enádia
que passa para Enilda, há o concurso de pessoas, e quem de qualquer modo
concorre para o crime incidirá nas penas a ele cominadas, na medida da
culpabilidade de cada um. A rigor, haveria três crimes, mas aplica-se a
consunção por causa da política criminal que norteou o legislador. É a corrente
majoritária. Dependerá também da situação, dos antecedentes, das circunstâncias
judiciais. Mas hoje temos as quatro situações jurisprudenciais: concurso formal
de crimes, concurso material de crimes, como no caso em que falsifica-se a
moeda para praticar estelionato em seguida, absorção do crime meio pelo crime
fim, ou absorção do crime menos grave pelo mais grave.
Crimes em espécie
Sempre que o princípio da consunção aparecer, precisaremos
ter atenção.
Objetividade jurídica: moeda de curso legal no país ou no
estrangeiro.
A falsificação pode ser dar com fabricação ou alteração.
Esse é o caput da conduta, da ação
criminosa. É a partir de onde gerar-se-ão todas as outras figuras equiparadas. Exemplo:
todo aquele que não falsificou mas é destinatário da moeda falsa, como o sujeito
que importa ou exporta, que são condutas materiais (precisam de resultado).
Adquirir é a título gratuito ou oneroso é outra figura equiparada. Guardar é a
figura que admite a forma permanente. Os efeitos se prolongam no tempo, assim,
existe a possibilidade de flagrante.
Introdução na circulação: não precisa ser uma maleta de
dinheiro. Pode ser uma única cédula. O que variará é a dosimetria feita pelo
juiz. Uma coisa é introduzir um derrame de cédulas em todos os estados da
Federação e outra é trocar uma única cédula numa barraca num show noturno.
Temos também o tipo misto alternativo no § 1º do art. 289.
No concurso de pessoas, respondem todos os agentes pelo caput, pelo princípio da consunção.
Receber de boa-fé não é crime, pois não há dolo, e não existe
este crime na forma culposa. Boa-fé e má-fé são figuras mais de Direito Civil,
mas aqui a terminologia é aplicável.
§ 3º: temos um crime próprio. O agente tem que ter condições
de mando dentro da Casa da Moeda. A doutrina critica a presença dessa figura no
Código Penal porque seria apenas um ilícito administrativo. A moeda é boa, mas
o sujeito fabricou além do que tinha autorização para fazer.
Se se fabrica uma moeda diferente em peso e forma, isso
gerará desconfiança geral sobre a idoneidade daquela moeda e de todas que
venham a parar na mão de quem vir essa moeda deformada. É uma figura
qualificada. Se houve coautoria, não se comunicam as circunstâncias de caráter
pessoal, salvo quando elementares do crime, e esta é uma figura circunstancial.
Outras pessoas, estranhas à Casa da Moeda, não responderão por este crime.
Moeda que é posta a circular antes da data divulgada para
início da circulação também constitui crime. Este pode ser cometido por
qualquer pessoa que teve acesso.
Crimes assimiladosao de moeda falsa estão no art. 290: “Formar cédula, nota ou bilhete
representativo de moeda com fragmentos de cédulas, notas ou bilhetes
verdadeiros; suprimir, em nota, cédula ou bilhete recolhidos, para o fim de restituí-los à
circulação, sinal indicativo de sua inutilização; restituir à circulação
cédula, nota ou bilhete em tais condições, ou já recolhidos para o fim de inutilização:
Pena – reclusão, de
dois a oito anos, e multa.
Parágrafo único – O máximo
da reclusão é elevado a doze anos e multa, se o crime é cometido por
funcionário que trabalha na repartição onde o dinheiro se achava recolhido, ou
nela tem fácil ingresso, em razão do cargo.”. Vejam só: a segunda e a
terceira figura: prestem atenção em “para o fim” e “com o fim”. Elas exigem um
elemento subjetivo do tipo, um dolo específico. Se o sujeito remove o carimbo
de inutilização para provar que é bom falsário, não há crime, pois carece o
elemento subjetivo do tipo.
Voltando à primeira parte do caput do art. 290: “Formar
cédula, nota ou bilhete representativo de moeda com fragmentos de cédulas,
notas ou bilhetes verdadeiros [...]” então, pegarei moedas, cédulas ou
bilhetes representativos da moeda e partir dos fragmentos eu farei uma nova. Faria
sentido eu criar uma moeda que já foi recolhida? Só poderia ser para
estelionato, de pessoa muito despreparada. Aqui, portanto, temos o conflito
direto com o art. 289, caput. Como a
jurisprudência tem resolvido esse conflito? Vejam só: montarei uma cédula nova,
de maior valor. Quando se forma uma cédula nova, pratica-se o crime do art.
289. Para que se enquadre no art. 290, inciso I, temos que verificar se os
fragmentos são de cédulas já recolhidas.
Essa é a diferença. Ao tomar fragmentos de uma cédula verdadeira em curso, caímos
no 289.
Parágrafo único do art. 290: “O máximo da reclusão é elevado a doze anos e multa, se o crime é
cometido por funcionário que trabalha na repartição onde o dinheiro se achava
recolhido, ou nela tem fácil ingresso, em razão do cargo.” É um crime equiparado ao do art. 290, caput. No parágrafo único, não podemos
falar de concurso de pessoas, porque não é uma figura elementar, mas uma figura
equiparada.
Petrechos para
falsificação de moeda
Questão de prova: comprei petrecho
para falsificar moedas. Depois convido dois amigos para me auxiliarem na
campanha de disseminação de moedas falsas em todo o território nacional. Eles
dois viajam para diferentes estados e começam o derrame. Quais crimes nós
praticamos? Lembrem-se que eu tinha o petrecho, falsificamos, e meus amigos
viajaram para soltar as moedas falsas. Um único crime, do art. 289, caput. Princípio da consunção. A falsificação
é, neste caso, um ato preparatório punível. Em regra, os atos preparatórios são
impuníveis.
Fazer circular a moeda posteriormente é post factum impunível.
Por fim, temos o crime de emissão de título ao portador, sem permissão legal. Art. 292: “Emitir, sem permissão legal, nota, bilhete, ficha, vale ou título que
contenha promessa de pagamento em dinheiro ao portador ou a que falte indicação
do nome da pessoa a quem deva ser pago:
Pena – detenção, de um
a seis meses, ou multa.
Parágrafo único – Quem
recebe ou utiliza como dinheiro qualquer dos documentos referidos neste artigo
incorre na pena de detenção, de quinze dias a três meses, ou multa.”. Houve
um prefeito que queria imperar numa cidade, então recolheu, para ele,
praticamente todas as cédulas de dinheiro da cidade e começou a emitir títulos
ao portador de uma cooperativa. Todos na cidade eram obrigados a aceitar esses
títulos, ou não fariam compras. O prefeito aboliu a moeda. O que ele não
poderia ter feito é substituir a moeda por um outro documento. Quem quisesse,
teria que trocar o título no banco e utilizar as moedas dali resultantes.
É um crime quase que inédito.