Direito Penal

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Crimes contra a fé pública - continuação


Os crimes contra a fé pública atingem a confiança de um número indeterminado de pessoas, que atenta contra a segurança jurídica interna e internacional. Vimos que são crimes formais, não exigem resultado no mundo exterior, são sempre dolosos, podem ser praticados na forma de imitar ou alterar a verdade; estão ligados ao conceito de fraude, vimos que não existe fraude como crime único, mas sim como elementar, qualificadora, modo de execução ou crime autônomo. O que não temos é a definição de fraude.

A fraude, aqui, se personifica como o falso, de documento público ou particular, dependendo da interferência ou não do agente do Estado na confecção do documento. O documento pode ou não ser solene, quando exige formalidade para sua elaboração. E vimos, por último, que o falso pode ser ideológico ou material. Ideológico quando contamina-se, falsifica-se a ideia já conhecida, ou material quando algo novo é fabricado ou imitado.

Vamos ver os casos concretos e veremos como o legislador disciplinou a fraude como falso ideológico. O falso ideológico se diferencia do falso material por outras circunstâncias, a princípio, com a colocação de um conteúdo em cima de outro.

Na fraude do papel em branco, não se considera um papel em branco como se fosse documento. Para o Direito Penal a folha de papel em branco não tem relevância. Só passa a ter relevância quando o documento é fabricado. Feito o documento e assinada a folha, temos algo. O exemplo que demos em sala foi uma cártula de cheque em branco. Se peço que o terceiro insira um valor e ele insere outro, há falso ideológico. Se ele tem acesso ao documento em branco para construir algo, temos o falso material.

E então começamos a estudar os crimes contra a fé pública em espécie, a começar pela moeda falsa. A norma dispõe sobre falsificação da moeda de curso legal no país ou no estrangeiro. É o que está no Capítulo I deste Título X.

Dentro dos quatro capítulos que estão contidos na fé pública temos a moeda falsa, que é a unidade monetária com curso legal no país, ficando protegida não só a moeda brasileira, mas também a moeda de curso legal no estrangeiro. Esse é o primeiro bem jurídico tutelado. O segundo, que estudaremos em breve, são os títulos e outros papéis públicos que, mesmo não sendo moeda, têm valor monetário. Exemplo: alvará para recebimento de importância, matéria do do Capítulo II. Os dois primeiros são os capítulos com os crimes mais graves deste título. Todos os crimes que existem para a moeda falsa existem também para os demais títulos de crédito.

Depois vamos para a falsidade documental e outras falsidades. Na primeira, temos apenas documentos que não têm expressão monetária, mas que podem ter, eventualmente, caso em que teremos conflito aparente de leis. Atestado ou certidão falsa é um documento, mas não tem expressão monetária, apesar de ser um papel público. O princípio é: falsidade documental é gênero, enquanto falsidade de títulos e outros documentos públicos é espécie. Princípio da especialidade.

E as outras falsidades? Estão no Capítulo IV. Até poderiam estar no Capítulo III, mas, por sua especificidade, o legislador resolveu dar totalmente especifico. Temos a falsidade de sinal atribuído a fiscal da saúde, a peso, medidas, alteração de sinal de identificação de veículo automotor, e teremos o art. 304, que será próprio e se referirá somente à falsidade documental trazendo o uso desses documentos. É uma regra geral de uso de documento falso. No Capítulo I, que trata da falsificação de moeda, temos a falsificação no caput do art. 289 e o uso logo em seguida como figura equiparada, no § 1º. Nos Capítulos III e IV, temos a previsão das falsidades nos artigos e o uso criminalizado somente no art. 304, não em respectivos parágrafos dos arts. 297 a 302 como figuras equiparadas.

 

Objeto jurídico tutelado é a moeda. A unidade monetária do país é fixada pelo Estado. Ela também está protegida pela Constituição, no art. 22, incisos VI e VII. Ao BACEN cabe estabelecer a cor, os símbolos, os valores e as marcas de identificação de cada moeda.

Na doutrina podemos ver o termo “contrafação”, que é o mesmo que falsificar ou alterar.

Lembrem-se que também haverá o crime de estelionato se houver o induzimento a erro de alguém com o uso de moeda falsa. Se a moeda era grosseiramente falsificada não há crime contra a fé pública, pois temos crime impossível.

Até podemos ter culpa, mas não haverá crime. O crime de menor potencial ofensivo é o recebimento da moeda falsa de boa-fé e restituí-la à circulação, e há dolo quando do momento da reintrodução à circulação consciente de que a moeda é falsa.

Aplicaremos, em regra, o princípio da consunção, que veremos que pode tratar do crime complexo, formado por dois ou mais crimes, como roubo, extorsão, estupro ou latrocínio; o crime progressivo (diferente de progressão criminosa), como o caso do homicídio, crime em que a lesão corporal é obrigatória para se chegar ao crime fim. É um crime-meio necessário, em que o menos grave está embutido, e não há que se falar em dois crimes. Bigamia requer a falsificação anterior. E progressão criminosa, que é, por exemplo, o ato de fabricar e em seguida usar a moeda falsa. O uso posterior, pelo mesmo agente, da moeda falsa, constitui post factum impunível, por razão de política criminal.

Em concurso de pessoas, se Eneida passa moeda falsa para Enádia que passa para Enilda, há o concurso de pessoas, e quem de qualquer modo concorre para o crime incidirá nas penas a ele cominadas, na medida da culpabilidade de cada um. A rigor, haveria três crimes, mas aplica-se a consunção por causa da política criminal que norteou o legislador. É a corrente majoritária. Dependerá também da situação, dos antecedentes, das circunstâncias judiciais. Mas hoje temos as quatro situações jurisprudenciais: concurso formal de crimes, concurso material de crimes, como no caso em que falsifica-se a moeda para praticar estelionato em seguida, absorção do crime meio pelo crime fim, ou absorção do crime menos grave pelo mais grave.

 

Crimes em espécie

Sempre que o princípio da consunção aparecer, precisaremos ter atenção.

Objetividade jurídica: moeda de curso legal no país ou no estrangeiro.

A falsificação pode ser dar com fabricação ou alteração. Esse é o caput da conduta, da ação criminosa. É a partir de onde gerar-se-ão todas as outras figuras equiparadas. Exemplo: todo aquele que não falsificou mas é destinatário da moeda falsa, como o sujeito que importa ou exporta, que são condutas materiais (precisam de resultado). Adquirir é a título gratuito ou oneroso é outra figura equiparada. Guardar é a figura que admite a forma permanente. Os efeitos se prolongam no tempo, assim, existe a possibilidade de flagrante.

Introdução na circulação: não precisa ser uma maleta de dinheiro. Pode ser uma única cédula. O que variará é a dosimetria feita pelo juiz. Uma coisa é introduzir um derrame de cédulas em todos os estados da Federação e outra é trocar uma única cédula numa barraca num show noturno.

Temos também o tipo misto alternativo no § 1º do art. 289.

No concurso de pessoas, respondem todos os agentes pelo caput, pelo princípio da consunção.

Receber de boa-fé não é crime, pois não há dolo, e não existe este crime na forma culposa. Boa-fé e má-fé são figuras mais de Direito Civil, mas aqui a terminologia é aplicável.

§ 3º: temos um crime próprio. O agente tem que ter condições de mando dentro da Casa da Moeda. A doutrina critica a presença dessa figura no Código Penal porque seria apenas um ilícito administrativo. A moeda é boa, mas o sujeito fabricou além do que tinha autorização para fazer.

Se se fabrica uma moeda diferente em peso e forma, isso gerará desconfiança geral sobre a idoneidade daquela moeda e de todas que venham a parar na mão de quem vir essa moeda deformada. É uma figura qualificada. Se houve coautoria, não se comunicam as circunstâncias de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime, e esta é uma figura circunstancial. Outras pessoas, estranhas à Casa da Moeda, não responderão por este crime.

Moeda que é posta a circular antes da data divulgada para início da circulação também constitui crime. Este pode ser cometido por qualquer pessoa que teve acesso.

 

Crimes assimiladosao de moeda falsa estão no art. 290: “Formar cédula, nota ou bilhete representativo de moeda com fragmentos de cédulas, notas ou bilhetes verdadeiros; suprimir, em nota, cédula ou bilhete recolhidos, para o fim de restituí-los à circulação, sinal indicativo de sua inutilização; restituir à circulação cédula, nota ou bilhete em tais condições, ou já recolhidos para o fim de inutilização:

Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa.

Parágrafo único – O máximo da reclusão é elevado a doze anos e multa, se o crime é cometido por funcionário que trabalha na repartição onde o dinheiro se achava recolhido, ou nela tem fácil ingresso, em razão do cargo.”. Vejam só: a segunda e a terceira figura: prestem atenção em “para o fim” e “com o fim”. Elas exigem um elemento subjetivo do tipo, um dolo específico. Se o sujeito remove o carimbo de inutilização para provar que é bom falsário, não há crime, pois carece o elemento subjetivo do tipo.

Voltando à primeira parte do caput do art. 290: “Formar cédula, nota ou bilhete representativo de moeda com fragmentos de cédulas, notas ou bilhetes verdadeiros [...]” então, pegarei moedas, cédulas ou bilhetes representativos da moeda e partir dos fragmentos eu farei uma nova. Faria sentido eu criar uma moeda que já foi recolhida? Só poderia ser para estelionato, de pessoa muito despreparada. Aqui, portanto, temos o conflito direto com o art. 289, caput. Como a jurisprudência tem resolvido esse conflito? Vejam só: montarei uma cédula nova, de maior valor. Quando se forma uma cédula nova, pratica-se o crime do art. 289. Para que se enquadre no art. 290, inciso I, temos que verificar se os fragmentos são de cédulas já recolhidas. Essa é a diferença. Ao tomar fragmentos de uma cédula verdadeira em curso, caímos no 289.

Parágrafo único do art. 290: “O máximo da reclusão é elevado a doze anos e multa, se o crime é cometido por funcionário que trabalha na repartição onde o dinheiro se achava recolhido, ou nela tem fácil ingresso, em razão do cargo.” É um crime equiparado ao do art. 290, caput. No parágrafo único, não podemos falar de concurso de pessoas, porque não é uma figura elementar, mas uma figura equiparada.

 

Petrechos para falsificação de moeda

Questão de prova: comprei petrecho para falsificar moedas. Depois convido dois amigos para me auxiliarem na campanha de disseminação de moedas falsas em todo o território nacional. Eles dois viajam para diferentes estados e começam o derrame. Quais crimes nós praticamos? Lembrem-se que eu tinha o petrecho, falsificamos, e meus amigos viajaram para soltar as moedas falsas. Um único crime, do art. 289, caput. Princípio da consunção. A falsificação é, neste caso, um ato preparatório punível. Em regra, os atos preparatórios são impuníveis.

Fazer circular a moeda posteriormente é post factum impunível.

Por fim, temos o crime de emissão de título ao portador, sem permissão legal. Art. 292: “Emitir, sem permissão legal, nota, bilhete, ficha, vale ou título que contenha promessa de pagamento em dinheiro ao portador ou a que falte indicação do nome da pessoa a quem deva ser pago:

Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.

Parágrafo único – Quem recebe ou utiliza como dinheiro qualquer dos documentos referidos neste artigo incorre na pena de detenção, de quinze dias a três meses, ou multa.”. Houve um prefeito que queria imperar numa cidade, então recolheu, para ele, praticamente todas as cédulas de dinheiro da cidade e começou a emitir títulos ao portador de uma cooperativa. Todos na cidade eram obrigados a aceitar esses títulos, ou não fariam compras. O prefeito aboliu a moeda. O que ele não poderia ter feito é substituir a moeda por um outro documento. Quem quisesse, teria que trocar o título no banco e utilizar as moedas dali resultantes.

É um crime quase que inédito.