Vamos rapidamente concluir os crimes contra o casamento, que
iniciamos na aula passada. Estudamos esses crimes porque estão no Código Penal.
Mas são tão raros que a própria professora, na vida profissional dela, só viu
um único caso de bigamia. São crimes que não costumam chegar ao conhecimento da
autoridade, por isso são crimes que pouco vemos. Mas, de qualquer forma, a
família é um ente importante, então também deveriam ser os crimes contra ela.
Vimos que se estabelecerá um conflito aparente de normas na
medida em que temos bigamia, induzimento a erro, ocultação de impedimento, e
casamento com conhecimento de impedimento que o torne nulo.
O legislador penal se equivocou na redação do Art. 237: “Contrair casamento, conhecendo a existência
de impedimento que lhe cause a nulidade absoluta: [...]” ou é nulidade ou é
anulabilidade. A expressão “nulidade absoluta” não está usada no sentido do
Direito Civil. Anulabilidade tem efeitos ex-nunc.
Aplicamos o princípio da especialidade, pois, se for o impedimento de ser casado,
aplicamos a bigamia, que é o art. 235, caput.
Tem que haver, portanto, dois casamentos. A bigamia tem a forma privilegiada,
no § 1º, com pena alternativa, pois a pessoa solteira pode sim contrair
casamento, desde que com pessoa não casada.
Quando alguém se casa novamente, sendo já casado, o juiz de
família poderá, de repente, tornar nulo um dos casamentos, ou o primeiro ou o
segundo. Se foi o primeiro, como não há dois vínculos jurídicos, não há
bigamia. Ou então anulou-se o segundo casamento: desfeito o vínculo jurídico, também
não há que se falar em bigamia.
Para o Direito Penal
surtir efeito, pode-se alegar qualquer motivo em relação ao primeiro casamento,
mas não se pode alegar
bigamia no segundo, porque a norma que criminaliza a bigamia protege o primeiro casamento, o que significa que
pode haver uma fraude: a pessoa se casou sabendo que era casada, só para
desconstituir o primeiro vínculo e ficar com o marido da outra, ou com a mulher
do outro. Isso seria um artificio fraudulento. Vejam que o casamento é pelo
legislador penal, sem obstar que o juiz cível anule tudo, seja o primeiro ou o
segundo. Como o casamento é um impedimento absoluto, o efeito da sentença
anulatória no cível é ex-tunc,
retroagindo à época da celebração. 1
A figura mais grave é a bigamia, e nos artigos seguintes temos
o induzimento a erro e a ocultação de impedimento. Muda um pouco a figura do caput, pois falamos em ocultar, que
demandam ações no sentido de esconder da outra o impedimento. Ser irmão na
noiva, por exemplo. Tem-se que induzir a pessoa a erro, que pode se reduzir a
erro quanto à: honra, boa fama, saúde física e mental.
A terceira figura é a contração
de casamento com conhecimento de impedimento que o torne nulo. Toda
nulidade é absoluta, e em especial se trata de um impedimento público ou
absoluto.
Temos, portanto, uma gradação. Art. 235 é a bigamia, em que
o impedimento é ser casado. Isso tornará nulo o casamento. É também o crime
mais grave deste capítulo. O art. 236, por sua vez, tem uma relação com o art.
235, com a ocultação de impedimento. Esses impedimentos são os que tornam o
casamento nulo ou anulável. O que é isso foi deixado em aberto. No art. 235 a
regra é fechada: ser casado. No art. 237, temos a contração de casamento
conhecendo impedimento que o torne nulo, causando nulidade absoluta. Deve ser
um impedimento que torne o casamento nulo. Só no art. 236 que se oculta o
impedimento ou erro, o que é uma situação que torna o casamento não
necessariamente nulo, podendo ser também anulável. Nos outros dois não, basta a
contração do casamento em tais circunstâncias.
Temos normas penais em branco nos arts, 235 e 237, com
elementos a serem preenchidos pelo Código Civil. A única conduta de ação penal
privada é a do art. 236, por causa do erro. Aqui, o erro ao qual foi induzida pode
expor a pessoa, então o legislador deixou ao arbítrio da parte interessada a promoção
da ação penal. O erro essencial pode ser a mulher descobrir, depois do
casamento, que o marido é homossexual. É ação penal privada personalíssima,
pois só caberá ao cônjuge enganado.
São crimes materiais: contrair
casamento, que é celebrar o ato. Há incidência do princípio da especialidade e
da consunção (da fraude). Isso porque para se consumar o ato é necessária uma
anterior conduta fraudulenta na fase de habilitação dos cônjuges, como a
falsificação de documentos. Consumada a bigamia ou a contração de casamento com
ocultação de erro essencial, responde-se por um crime só, pois a falsificação é
o crime obrigatório para se chegar ao casamento. Lembre-se que todo casamento é
precedido de habilitação. Quem, casado, se habilita para novo casamento e se
casa é porque praticou uma fraude grande. Neste caso o cônjuge será vítima.
Impedimentos absolutos são aqueles relacionados ao vínculo
de parentesco, consanguíneo ou jurídico. Adotante não pode se casar com adotado,
mesmo que não seja pai biológico. Pai com filha, mãe com filho, etc. Ou casar uma
mulher com o amante com quem conspirara para matar o marido.
O erro causa a anulabilidade, que é uma nulidade relativa.
Só gera efeitos depois de declarado. Os impedimentos podem ser absolutos ou
relativos. O idoso tem que fazer o inventário de seus bens para se casar. Isso
impedirá a comunicação de bens, por conta da idade, mas não impedirá o
casamento.
Quais as hipóteses de término da relação conjugal?
Seguramente, morte e divórcio. Declaração judicial da nulidade de casamento
permite o novo casamento a partir da sentença. Só o que não permite a contração
de novo casamento é a separação judicial, pois o vínculo matrimonial não é
dissolvido, podendo ser reatado a qualquer momento. 2
Tudo que diga respeito ao estado civil das pessoas é feito
no cível. Exemplos: certidão de nascimento ou casamento. É Um resquício do
sistema, da certeza legal. Só faz prova a certidão.
Para fechar, vemos duas
espécies de falsidade que estão no capítulo: simulação de autoridade para celebrar casamento e simulação do próprio casamento. Ela
pode servir para a posterior prática de violação sexual mediante fraude. Alguém pode simular um casamento
para então ter a posse de uma mulher (ou homem). E ai teremos a simulação do
casamento servindo como crime meio para chegar-se à violação sexual. Entretanto
aqui não funcionará o princípio da consunção, pois o agente poderia ter
escolhido outra fraude. O princípio, aqui, é da subsidiariedade. Esses delitos
podem ser subsidiários em relação a crimes mais graves ou crimes fins. Pode-se
simular casamento para depois praticar estelionato. Qual a natureza da
simulação do casamento? Um crime meio, também.
Aqui, a única coisa que temos que ver são os vícios do
consentimento. Um deles é a simulação, que enseja a participação de pelo menos
duas pessoas. Nada estranho no casamento, que requer pelo menos os nubentes. Pode-se
omitir ou inserir um dado falso em documento, talvez para declarar-se solteiro
sendo casado; omitir-se quanto a essa informação é simulação.
Certamente a simulação pode ser praticada na forma de falso
ideológico.
Não confunda a simulação, que é crime, com o casamento
puramente religioso, que não tem efeito civil.
O crime é simples, autônomo, mas em geral será meio para o
cometimento de outros crimes. O fim pode ser ganhar dinheiro. Neste caso,
poderá ser crime contra a Administração Pública, que é usurpação de função
pública, do art. 328. Ou, então, o agente pode ser um autoridade que foi
destituída da função e não se conformou.
No art. 238, basta indicar-se como autoridade. É crime de
menor potencial ofensivo. Daí falamos em subsidiariedade e não consunção.
Art. 239: “Simular casamento mediante engano de outra
pessoa: Pena – detenção, de um a três anos, se o fato não constitui elemento de
crime mais grave.” A simulação pressupõe a existência de pelo menos duas
pessoas enganando uma terceira.
Art. 240 foi infelizmente
revogado em 2005 com a Lei 11106.
Sem casamento, não há crime contra o casamento.
Crimes contra o
estado de filiação
Temos, agora, mais três capítulos nos crimes contra a
família.
Estado de filiação, pátrio poder (poder familiar), tutela e
curatela.
Nos primeiros, podemos ter um dos pais sendo vítima e o
próprio recém nascido. Hoje é considerado direito fundamental da pessoa saber
quem são seus pais e sua origem. Antigamente não se dava muito valor a isso até
porque a medicina estava pouco evoluída. Hoje importa saber para o transplante
de medula, por exemplo.
Hoje se fala em abandono afetivo, em vínculo por afeto.
Pensam-se nas sequelas, mesmo que o Código Penal ainda não tenha sido
atualizado em relação a isso. Abandono material ou intectual é que são
importantes para o legislador penal brasileiro.
Dentro do estado de filiação, temos três crimes. Registro de nascimento inexistente, parto
suposto/supressão ou alteração de direito inerente ao estado civil de
recém-nascido e sonegação do estado de filiação.
No art. 241, que é o primeiro crime, temos o registro de
nascimento inexistente. Esse crime segue a mesma regra: o princípio da
consunção. Como é que alguém registra um nascimento que não existe sem praticar
falsificação? A importância dessa previsão legal se verifica quando o sujeito
ativo morre. Aconteceu de um homem aceitar pressão da mulher com quem vivia,
que por sua vez teve filho com outro homem ao trair o companheiro, e registrar
como dele o filho que ela teve com outro homem, fora da relação. A criança
recebeu o sobrenome do pai "falso", e aí importou pois ela pediu no
juízo cível a imissão na posse de bens do "pai" morto, por força do
princípio da saissine. Na realidade, o menino era ilegítimo para receber
herança.
A prescrição começa a correr desde o dia em que se descobre
a falsidade.
Quem será a vítima no art. 241? O Estado, a princípio. O
Estado pretende que se promova no registro competente o nascimento de pessoas.
O segundo crime é o de parto suposto e supressão ou
alteração de direito inerente ao estado civil de recém-nascido. Uma mulher pode
chegar com barrigão na maternidade (com roupas cheias de almofadas para simular
uma gravidez) e sair de lá com o bebê de outra mulher. Não precisa do conluio
do médico ou da enfermeira. Alguém autenticará esse ato. Daí que se comete a
fraude.
Note que aqui não é o nascimento, mas parto.
O registro de filho alheio como próprio também passa pelo
crime de falsificação. A consequência é a supressão ou alteração de direito
referente ao estado civil. A descendência e ascendência dele foi alterada.
Terceira figura: ocultar recém-nascido ou substituí-lo,
suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil. Ocultar quer dizer o
quê? Esconder literalmente, para que outras pessoas não saibam da existência da
nova criança.
Todos esses crimes poderão ser cumulados. A alternatividade
só é possível no tocante à supressão ou alteração e só existe em relação ao
dolo específico.
Privilégio do art. 242: o que é motivo de reconhecida
nobreza? Solidariedade, altruísmo, cuidar da criança.
Por fim, temos a sonegação
do estado de filiação.
Lembram dos crimes de periclitação da vida e da saúde? O
abandono de recém nascido poderia ser praticado para ocultar desonra própria.
Aqui, busca-se causar uma modificação no estado de filiação, e fica claro o
dolo específico.
Art. 243: “Deixar em
asilo de expostos ou outra instituição de assistência filho próprio ou alheio,
ocultando-lhe a filiação ou atribuindo-lhe outra, com o fim de prejudicar
direito inerente ao estado civil: Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa.”
Note a clareza do dolo específico no art. 243. O asilo de expostos, que existia
antigamente, era aquela casa em que religiosos recebiam pessoas que não tinham
onde morar.
Para quê? Ocultar-lhe a filiação atribuindo-lhe outra. Esse elemento
subjetivo deve estar presente: deixar no asilo de expostos, lugar onde o
abandonado não corre perigo.
Abandonar crianças para morrer
na rua é abandono de incapaz, conduta que pode ser preterdolosa, com resultado
morte ou lesão corporal grave. Note o paralelo com o crime que estamos estudando
aqui, em que há também o abandono. A diferença é que aqui a criança é deixada
em estabelecimento onde ela será cuidada. A mãe não quer se identificar como
tal e deixava o filho lá. Acontecia muito quando a mulher era solteira e não
seria bem vista tendo filho sem pai, no século XX. Acontecia, inclusive, de os
pais da jovem mãe, temendo que a filha ficasse marginalizada com a imagem
pública de ter tido um filho sem se casar, acabavam registrando como deles o
bebê da filha, para fazer parecer que a criança era irmã da mãe. Assim, viam-se
mulheres de 27 anos que surgiam com o “irmão” recém nascido. 3