Direito Penal

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Conclusão dos crimes contra o casamento e crimes contra o estado de filiação


 

Vamos rapidamente concluir os crimes contra o casamento, que iniciamos na aula passada. Estudamos esses crimes porque estão no Código Penal. Mas são tão raros que a própria professora, na vida profissional dela, só viu um único caso de bigamia. São crimes que não costumam chegar ao conhecimento da autoridade, por isso são crimes que pouco vemos. Mas, de qualquer forma, a família é um ente importante, então também deveriam ser os crimes contra ela.

Vimos que se estabelecerá um conflito aparente de normas na medida em que temos bigamia, induzimento a erro, ocultação de impedimento, e casamento com conhecimento de impedimento que o torne nulo.

O legislador penal se equivocou na redação do Art. 237: “Contrair casamento, conhecendo a existência de impedimento que lhe cause a nulidade absoluta: [...]” ou é nulidade ou é anulabilidade. A expressão “nulidade absoluta” não está usada no sentido do Direito Civil. Anulabilidade tem efeitos ex-nunc. Aplicamos o princípio da especialidade, pois, se for o impedimento de ser casado, aplicamos a bigamia, que é o art. 235, caput. Tem que haver, portanto, dois casamentos. A bigamia tem a forma privilegiada, no § 1º, com pena alternativa, pois a pessoa solteira pode sim contrair casamento, desde que com pessoa não casada.

Quando alguém se casa novamente, sendo já casado, o juiz de família poderá, de repente, tornar nulo um dos casamentos, ou o primeiro ou o segundo. Se foi o primeiro, como não há dois vínculos jurídicos, não há bigamia. Ou então anulou-se o segundo casamento: desfeito o vínculo jurídico, também não há que se falar em bigamia.

Para o Direito Penal surtir efeito, pode-se alegar qualquer motivo em relação ao primeiro casamento, mas não se pode alegar bigamia no segundo, porque a norma que criminaliza a bigamia protege o primeiro casamento, o que significa que pode haver uma fraude: a pessoa se casou sabendo que era casada, só para desconstituir o primeiro vínculo e ficar com o marido da outra, ou com a mulher do outro. Isso seria um artificio fraudulento. Vejam que o casamento é pelo legislador penal, sem obstar que o juiz cível anule tudo, seja o primeiro ou o segundo. Como o casamento é um impedimento absoluto, o efeito da sentença anulatória no cível é ex-tunc, retroagindo à época da celebração. 1

 

A figura mais grave é a bigamia, e nos artigos seguintes temos o induzimento a erro e a ocultação de impedimento. Muda um pouco a figura do caput, pois falamos em ocultar, que demandam ações no sentido de esconder da outra o impedimento. Ser irmão na noiva, por exemplo. Tem-se que induzir a pessoa a erro, que pode se reduzir a erro quanto à: honra, boa fama, saúde física e mental.

A terceira figura é a contração de casamento com conhecimento de impedimento que o torne nulo. Toda nulidade é absoluta, e em especial se trata de um impedimento público ou absoluto.

Temos, portanto, uma gradação. Art. 235 é a bigamia, em que o impedimento é ser casado. Isso tornará nulo o casamento. É também o crime mais grave deste capítulo. O art. 236, por sua vez, tem uma relação com o art. 235, com a ocultação de impedimento. Esses impedimentos são os que tornam o casamento nulo ou anulável. O que é isso foi deixado em aberto. No art. 235 a regra é fechada: ser casado. No art. 237, temos a contração de casamento conhecendo impedimento que o torne nulo, causando nulidade absoluta. Deve ser um impedimento que torne o casamento nulo. Só no art. 236 que se oculta o impedimento ou erro, o que é uma situação que torna o casamento não necessariamente nulo, podendo ser também anulável. Nos outros dois não, basta a contração do casamento em tais circunstâncias.

Temos normas penais em branco nos arts, 235 e 237, com elementos a serem preenchidos pelo Código Civil. A única conduta de ação penal privada é a do art. 236, por causa do erro. Aqui, o erro ao qual foi induzida pode expor a pessoa, então o legislador deixou ao arbítrio da parte interessada a promoção da ação penal. O erro essencial pode ser a mulher descobrir, depois do casamento, que o marido é homossexual. É ação penal privada personalíssima, pois só caberá ao cônjuge enganado.

São crimes materiais: contrair casamento, que é celebrar o ato. Há incidência do princípio da especialidade e da consunção (da fraude). Isso porque para se consumar o ato é necessária uma anterior conduta fraudulenta na fase de habilitação dos cônjuges, como a falsificação de documentos. Consumada a bigamia ou a contração de casamento com ocultação de erro essencial, responde-se por um crime só, pois a falsificação é o crime obrigatório para se chegar ao casamento. Lembre-se que todo casamento é precedido de habilitação. Quem, casado, se habilita para novo casamento e se casa é porque praticou uma fraude grande. Neste caso o cônjuge será vítima.

Impedimentos absolutos são aqueles relacionados ao vínculo de parentesco, consanguíneo ou jurídico. Adotante não pode se casar com adotado, mesmo que não seja pai biológico. Pai com filha, mãe com filho, etc. Ou casar uma mulher com o amante com quem conspirara para matar o marido.

O erro causa a anulabilidade, que é uma nulidade relativa. Só gera efeitos depois de declarado. Os impedimentos podem ser absolutos ou relativos. O idoso tem que fazer o inventário de seus bens para se casar. Isso impedirá a comunicação de bens, por conta da idade, mas não impedirá o casamento.

Quais as hipóteses de término da relação conjugal? Seguramente, morte e divórcio. Declaração judicial da nulidade de casamento permite o novo casamento a partir da sentença. Só o que não permite a contração de novo casamento é a separação judicial, pois o vínculo matrimonial não é dissolvido, podendo ser reatado a qualquer momento. 2

Tudo que diga respeito ao estado civil das pessoas é feito no cível. Exemplos: certidão de nascimento ou casamento. É Um resquício do sistema, da certeza legal. Só faz prova a certidão.

Para fechar, vemos duas espécies de falsidade que estão no capítulo: simulação de autoridade para celebrar casamento e simulação do próprio casamento. Ela pode servir para a posterior prática de violação sexual mediante fraude. Alguém pode simular um casamento para então ter a posse de uma mulher (ou homem). E ai teremos a simulação do casamento servindo como crime meio para chegar-se à violação sexual. Entretanto aqui não funcionará o princípio da consunção, pois o agente poderia ter escolhido outra fraude. O princípio, aqui, é da subsidiariedade. Esses delitos podem ser subsidiários em relação a crimes mais graves ou crimes fins. Pode-se simular casamento para depois praticar estelionato. Qual a natureza da simulação do casamento? Um crime meio, também.

Aqui, a única coisa que temos que ver são os vícios do consentimento. Um deles é a simulação, que enseja a participação de pelo menos duas pessoas. Nada estranho no casamento, que requer pelo menos os nubentes. Pode-se omitir ou inserir um dado falso em documento, talvez para declarar-se solteiro sendo casado; omitir-se quanto a essa informação é simulação.

Certamente a simulação pode ser praticada na forma de falso ideológico.

Não confunda a simulação, que é crime, com o casamento puramente religioso, que não tem efeito civil.

O crime é simples, autônomo, mas em geral será meio para o cometimento de outros crimes. O fim pode ser ganhar dinheiro. Neste caso, poderá ser crime contra a Administração Pública, que é usurpação de função pública, do art. 328. Ou, então, o agente pode ser um autoridade que foi destituída da função e não se conformou.

No art. 238, basta indicar-se como autoridade. É crime de menor potencial ofensivo. Daí falamos em subsidiariedade e não consunção.

Art. 239:  Simular casamento mediante engano de outra pessoa: Pena – detenção, de um a três anos, se o fato não constitui elemento de crime mais grave.” A simulação pressupõe a existência de pelo menos duas pessoas enganando uma terceira.

Art. 240 foi infelizmente revogado em 2005 com a Lei 11106.

Sem casamento, não há crime contra o casamento.

 

 

Crimes contra o estado de filiação

Temos, agora, mais três capítulos nos crimes contra a família.

Estado de filiação, pátrio poder (poder familiar), tutela e curatela.

Nos primeiros, podemos ter um dos pais sendo vítima e o próprio recém nascido. Hoje é considerado direito fundamental da pessoa saber quem são seus pais e sua origem. Antigamente não se dava muito valor a isso até porque a medicina estava pouco evoluída. Hoje importa saber para o transplante de medula, por exemplo.

Hoje se fala em abandono afetivo, em vínculo por afeto. Pensam-se nas sequelas, mesmo que o Código Penal ainda não tenha sido atualizado em relação a isso. Abandono material ou intectual é que são importantes para o legislador penal brasileiro.

Dentro do estado de filiação, temos três crimes. Registro de nascimento inexistente, parto suposto/supressão ou alteração de direito inerente ao estado civil de recém-nascido e sonegação do estado de filiação.

No art. 241, que é o primeiro crime, temos o registro de nascimento inexistente. Esse crime segue a mesma regra: o princípio da consunção. Como é que alguém registra um nascimento que não existe sem praticar falsificação? A importância dessa previsão legal se verifica quando o sujeito ativo morre. Aconteceu de um homem aceitar pressão da mulher com quem vivia, que por sua vez teve filho com outro homem ao trair o companheiro, e registrar como dele o filho que ela teve com outro homem, fora da relação. A criança recebeu o sobrenome do pai "falso", e aí importou pois ela pediu no juízo cível a imissão na posse de bens do "pai" morto, por força do princípio da saissine. Na realidade, o menino era ilegítimo para receber herança.

A prescrição começa a correr desde o dia em que se descobre a falsidade.

Quem será a vítima no art. 241? O Estado, a princípio. O Estado pretende que se promova no registro competente o nascimento de pessoas.

O segundo crime é o de parto suposto e supressão ou alteração de direito inerente ao estado civil de recém-nascido. Uma mulher pode chegar com barrigão na maternidade (com roupas cheias de almofadas para simular uma gravidez) e sair de lá com o bebê de outra mulher. Não precisa do conluio do médico ou da enfermeira. Alguém autenticará esse ato. Daí que se comete a fraude.

Note que aqui não é o nascimento, mas parto.

O registro de filho alheio como próprio também passa pelo crime de falsificação. A consequência é a supressão ou alteração de direito referente ao estado civil. A descendência e ascendência dele foi alterada.

Terceira figura: ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil. Ocultar quer dizer o quê? Esconder literalmente, para que outras pessoas não saibam da existência da nova criança.

Todos esses crimes poderão ser cumulados. A alternatividade só é possível no tocante à supressão ou alteração e só existe em relação ao dolo específico.

Privilégio do art. 242: o que é motivo de reconhecida nobreza? Solidariedade, altruísmo, cuidar da criança.

 

Por fim, temos a sonegação do estado de filiação.

Lembram dos crimes de periclitação da vida e da saúde? O abandono de recém nascido poderia ser praticado para ocultar desonra própria. Aqui, busca-se causar uma modificação no estado de filiação, e fica claro o dolo específico.

Art. 243: “Deixar em asilo de expostos ou outra instituição de assistência filho próprio ou alheio, ocultando-lhe a filiação ou atribuindo-lhe outra, com o fim de prejudicar direito inerente ao estado civil: Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa.” Note a clareza do dolo específico no art. 243. O asilo de expostos, que existia antigamente, era aquela casa em que religiosos recebiam pessoas que não tinham onde morar.

Para quê? Ocultar-lhe a filiação atribuindo-lhe outra. Esse elemento subjetivo deve estar presente: deixar no asilo de expostos, lugar onde o abandonado não corre perigo.

Abandonar crianças para morrer na rua é abandono de incapaz, conduta que pode ser preterdolosa, com resultado morte ou lesão corporal grave. Note o paralelo com o crime que estamos estudando aqui, em que há também o abandono. A diferença é que aqui a criança é deixada em estabelecimento onde ela será cuidada. A mãe não quer se identificar como tal e deixava o filho lá. Acontecia muito quando a mulher era solteira e não seria bem vista tendo filho sem pai, no século XX. Acontecia, inclusive, de os pais da jovem mãe, temendo que a filha ficasse marginalizada com a imagem pública de ter tido um filho sem se casar, acabavam registrando como deles o bebê da filha, para fazer parecer que a criança era irmã da mãe. Assim, viam-se mulheres de 27 anos que surgiam com o “irmão” recém nascido. 3

  1. Neste momento a professora falou algo sobre a interferência da sentença no cível quanto à extinção da punibilidade na esfera penal.
  2. Capez, com adaptações.
  3. Nosso colega Bruno suspeita que cairá um caso deste na prova.