Hoje
vamos terminar a parte
introdutória do programa. Vamos falar um pouco sobre a história do
Direito
Administrativo, entrelaçando com algumas particularidades de nosso
sistema administrativo
comparando-os com os de outros países que nos influenciaram.
Não
se pode falar em história do
Direito Administrativo se falar em história do Estado. O Direito
Administrativo
está ligado à constituição do Estado, e também ao Estado Democrático de
Direito
em fase posterior à Revolução Francesa. Desde os mais remotos períodos
podemos
falar na existência do Estado, em uma organização estatal, inicialmente
regida
pelo jus civile, que depois foi
evoluindo até alcançar a Idade Média, em que surgiram períodos
monárquicos, do
soberano, e paralelamente da Igreja. Isso teve uma consequência com o
aparecimento da teoria da irresponsabilidade do Estado, ligada ao fato
de que o
imperador ou monarca jamais poderia errar.
Se
olharmos a Constituição
Imperial de 1824, que tem normas curiosíssimas, para comprarmos o que
era a Monarquia
com a República, podemos ver no art. 99 a figura da irresponsabilidade
do
imperador:
Art.
99. A
Pessoa do Imperador é inviolavel, e Sagrada: Elle não está sujeito a
responsabilidade alguma.
O
Estado não era laico, e a
Religião Católica era a religião oficial do Estado. Havia coisas
curiosas na
época da Idade Média, como a proibição da cobrança de juros. Há até um
filósofo
inglês que dizia que “o financista era um homem mais que maduro, frio,
[...]
quando finalmente morre acabam no inferno.” 1
Costuma-se
dizer que o que foi
decisivo para a formação do Estado de Direito foi a obra de
Montesquieu, Do
Espírito das Leis (1748). Pugnou pela tripartição de poderes, o que foi
feito
depois da Revolução Francesa, e, especificamente na França, começaram a
surgir
os sistemas de contencioso administrativo. (É inclusive o que está na
sequência
de nosso conteúdo programático.) Criaram tribunais administrativos para
controle dos atos ilegais ou ilegítimos praticados pelo Estado.
O
sistema de contencioso criado
na França naquele tempo e que subsiste até hoje era exercido através de
um
conselho de Estado. No Brasil, durante o império, também tivemos um,
mas o
conselho tinha função consultiva, e não cogente. Isso, de certa
maneira, passou
a ser regido por um Direito que depois foi chamado Direito
Administrativo.
Nesse contexto dos sistemas administrativos no Brasil, durante o
período do Império,
foi criado um conselho de Estado diferente do francês, com função
somente
administrativo-consultiva. O sistema francês, na realidade, não foi
adotado no
Brasil. Lá, existe até hoje o duplo grau de jurisdição administrativa,
para
apreciação de atos. Aqui, a partir da Constituição de 1891, adotamos um
sistema
de jurisdição única – controle administrativo pela justiça comum, com
fulcro no
inciso V do art. 5º da atual Constituição:
XXXV - a lei
não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a
direito; [...]
Não
significa que se tirou da
Administração Pública a possibilidade de ela mesma anular atos que
entenda
ilegais ou ilegítimos. A própria Administração pode revogar atos
inconvenientes
ou inoportunos, ou considerados ilegais. Há também a Lei do Processo
Administrativo, 9784/99 que regula o processo administrativo na área
federal. O
Estado de São Paulo também tem uma Lei de Processo Administrativo, sem
contar
que existem as demais leis que regulam processo administrativos
específicos,
como as decisões dos Tribunais de Contas. Há lei específica que
disciplina suas
decisões. Mencione-se, também, o processo administrativo na área
previdenciária.
A
manutenção da faculdade da
Administração Pública rever seus próprios atos é a tutela, que
aprendemos
recentemente. Os atos eivados de ilegalidade ou
ilegitimidade podem ser revistos diretamente pela Administração.
Existem,
por outro lado,
situações em que, mesmo dentro da realidade brasileira, se exige que a
pessoa
ingresse necessariamente pela via administrativa para depois ir a
juízo, ou
situações em que sequer existe possibilidade da apreciação judicial.
Que casos
são esses em que se exige o esgotamento da via administrativa para que
se vá à
via judicial? Justiça desportiva, habeas
data, e reclamação junto ao Supremo contra ato contrario às
Súmulas
Vinculantes. No caso da justiça desportiva temos o art. 217, § 1º da
Constituição:
Seção III
DO DESPORTO
Art. 217. É
dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais,
como
direito de cada um, observados:
I - a
autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a
sua
organização e funcionamento;
II - a
destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto
educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto
rendimento;
III - o
tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não-
profissional;
IV - a
proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.
§
1º - O Poder Judiciário só admitirá ações relativas
à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as
instâncias da
justiça desportiva, regulada em lei.
§ 2º - A
justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da
instauração do processo, para proferir decisão final.
§ 3º - O
Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.
“Justiça
desportiva” é o nome que
se usa, mas não quer dizer que a instância é judicial; é um órgão de
jurisdição
administrativa.
A
Lei 11417/2004 trata das
Súmulas Vinculantes.
Art. 7o Da decisão judicial ou do
ato administrativo
que contrariar enunciado de súmula vinculante, negar-lhe vigência ou
aplicá-lo
indevidamente caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal, sem
prejuízo dos
recursos ou outros meios admissíveis de impugnação.
§ 1o Contra omissão ou
ato da administração
pública, o uso da reclamação só será admitido após esgotamento das vias
administrativas. [...]
A
terceira situação se refere à
impetração de habeas data. A
fundamentação é uma decisão do Supremo. O Ministro Celso de Mello fixou
o
entendimento em que se deve esgotar a via administrativa para ir a
juízo. O STJ
pensa da mesma maneira:
Súmula 2 –
não cabe o habeas data (CF, art. 5., LXXII, letra "a") se não houve
recusa de informações por parte da autoridade administrativa.
No
processo tributário, nosso
Código Tributário Nacional tem uma regra interessante: se houver
mandado de
segurança para anular dívida, ou ação anulatória de dívida, isso
implica
automaticamente na desistência do processo administrativo, e o recurso
por
acaso interposto. A Lei 6830/80 determina essa regra. Art. 38:
Art. 38 - A
discussão judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública só é admissível
em
execução, na forma desta Lei, salvo as hipóteses de mandado de
segurança, ação
de repetição do indébito ou ação anulatória do ato declarativo da
dívida, esta
precedida do depósito preparatório do valor do débito, monetariamente
corrigido
e acrescido dos juros e multa de mora e demais encargos.
Parágrafo
Único - A propositura, pelo contribuinte, da ação prevista neste artigo
importa
em renúncia ao poder de recorrer na esfera administrativa e desistência
do
recurso acaso interposto.
Há
outras situações também em que
não existe sequer a possibilidade do recurso ao Poder Judiciário. O
aspecto
jurisdicional não pode ser intentado. Exemplo: punições disciplinares
de
militares.
142. As Forças
Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica,
são
instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na
hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da
República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes
constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
[...]
§ 2º - Não
caberá "habeas-corpus" em relação a punições disciplinares militares.
Também
não são possíveis de
ingresso no Poder Judiciário os chamados atos políticos, como sanção e
veto,
diretrizes de políticas públicas, e ainda os crimes de responsabilidade
do
Presidente da República, cujo julgamento compete ao Senado Federal. Não
são
atos administrativos propriamente ditos.
Julgamentos
de contas proferidos
pelos tribunais de contas não são recorríveis ao Poder Judiciário em
relação ao
mérito das decisões, como “julgar regulares as contas, mas com
ressalvas”. Se
fosse possível, o tribunal de contas não teria função.
Não
há, na realidade, no Brasil,
de forma absoluta, a observância à regra da jurisdição única. O sistema
brasileiro é de jurisdição única observado que não cabe apreciação
judicial de
alguns atos e, nalguns casos, deve haver esgotamento da via
administrativa para
que se inicie a apreciação judicial.
Vamos resumir os casos que falamos logo acima.
Admitem
iscussão pelo Judiciário, porém somente depois de esgotada a via
administrativa:
N
Com
isso adiantamos o item 2 de
nosso programa, até para falar dos sistemas administrativos, cuja
origem
histórica é um sistema de dupla jurisdição na França, adotado pelo
Brasil desde
1891. Na realidade, há uma combinação de aspectos que têm que ser
considerados
em relação a essa matéria.
Em
suma: nosso sistema não é puro
de jurisdição única. Mesmo assim, é importante observar que a pessoa
deve
escolher qual é a via mais conveniente para sanar atos de ilegalidade.
Observação:
se houver cerceamento
da segurança jurídica ou ampla defesa, contraditório, caberá mandado de
segurança contra decisão de mérito do Tribunal de Contas. Vencida na
via
administrativa, cessa o interesse de ir a juízo, pela desnecessidade.
Vamos
voltar à história.
O
Brasil sofre larga influência
do Direito Francês, no qual é comum dizer que passou a existir o ramo
do
Direito Administrativo com a edição da Lei do 28 PLUVIOSO do ano VII
(1800), mês
do calendário instalado logo após a revolução. A Lei organizou a
Administração
Pública Francesa. Dezessete anos depois se criou, na Universidade de
Paris, a
disciplina de Direito Administrativo. No campo doutrinário, aponta-se
como
referencial a obra do Barão de Gerando, que foi o primeiro responsável
pela
regência da disciplina citada na Universidade de Paris, o qual lançou
em 1829 A
OBRA Institutes Du Droit Français,
considerada um mero repositório de leis, mas pioneira no assunto. 2
Aqui
no Brasil, o Direito
Administrativo surge na época da monarquia. Naquele tempo, a jurisdição
administrativa era exercida por um Conselho de Estado, que, como já
dissemos,
não tinha poder sancionatório, só consultivo. Balizava-se por
instituições do
direito privado.
A
Constituição de 1891 é a
primeira em que vemos os crimes de responsabilidade do Presidente da
República.
O Imperador não era responsável por nada, mas os ministros eram. São
normas que
conservam a mesma redação da Constituição de 1891, por influência da
Constituição
Americana.
Além
do Direito Francês, outras
influências sobre o Direito Administrativo brasileiro vêm do Direito
Italiano, Alemão
e Norte-Americano. Em sua maior parte é de origem francesa. A teoria
dos atos
administrativos, por exemplo, que se baseia na teoria dos atos do
Direito
Civil. Há também a legalidade e os contratos administrativos, também de
origem
francesa.
As
componentes que modelaram o
Direito Administrativo brasileiro foram, em resumo:
Até
que, ao final do século XIX e
início do XX, já tínhamos algumas ideias, obras e legislações que
versavam, no
todo ou em parte, sobre Direito Administrativo. uma delas foi a Lei
4536/22, editada
sob a Constituição de 1891, batizada de Código de contabilidade
pública, que passou
a ser o diploma de Direito Administrativo e financeiro no Brasil. O
nome de “Código”
pode ter se dado por influência do Código Civil de 1916. Tinha regras
sobre
licitação mas, na época, só se falava em “concorrência pública”. As
“cláusulas
necessárias” da Lei 8.666/93 eram chamadas de “cláusulas essenciais”
nesse antigo
Código.
Isso
foi o primórdio do Direito
Administrativo brasileiro.
Nas
Constituições de 1934 e 1937
tivemos como característica principal o avanço do Estado na economia
brasileira
em razão da grande depressão resultante da crise de 1929 nos Estados
Unidos.
Surgiram movimentos sociais, a necessidade de proteção do trabalhador,
a CLT de
1943, as entidades que começam a cuidar das categorias profissionais,
os
sindicatos, em função da necessidade de atender às reinvindicações dos
trabalhadores, a marca do governo de Getulio Vargas.
Com
o Estado Novo veio um
renovado ânimo de modificar a Administração Pública. Foi criado o
Departamento
Administrativo, que veio pelo objetivo de mais eficiência na
Administração. Esse
departamento veio a ser criado depois com o nome de Departamento
Administrativo
do Serviço Público, o DASP. Teve grande influência na vida pública
brasileira,
mas não existe mais. A “elite” da área federal que trabalhava na área
de
orçamento trabalhava no DASP.
Essas
Constituições anteriores,
tirando a criação do DASP, não tiveram muita repercussão em matéria de
assuntos
administrativos exceto quanto à regulagem do orçamento. A Constituição
de 1946
foi a primeira a estabelecer um título específico sobre os funcionários
públicos, e inclusive estabeleceu a responsabilidade jurídica das
pessoas
jurídicas de direito público e danos causados a terceiros. Está até
hoje em
nossa legislação brasileira e nossa Constituição atual. É a
responsabilidade
objetiva do Estado, a responsabilidade extracontratual (ou aquiliana).
Em
decorrência dessas disposições
sobre funcionários públicos, foi editada a Lei 1711, o primeiro regime
jurídico
do funcionário público, precedido só pela Consolidação das Leis do
Trabalho.
Agora se tinha um regramento jurídico único, que vigeu até a edição da
Lei
8.112/90.
Na
Constituição de 1967 com sua Emenda
Constitucional nº 1/69 tivemos a criação de um dispositivo legal com o
Decreto-lei 200/67, que provocou ampla reforma administrativa pelo
governo
federal. Estabeleceu licitações, ampliou as modalidades, criou
princípios, foi
muito bem redigido, e subsiste parcialmente até os dias atuais.
Na
década de 70, a Emenda
Constitucional nº 7 de 1977 tentou estabelecer no Brasil o contencioso
administrativo, nos moldes franceses, para decisões sobre litígios em
relações
trabalhistas. Isso não chegou a prosperar, mas estava nos arts. 110 e
111 da
Constituição de 1967:
Art. 111. A
lei poderá criar contencioso administrativo e atribuir-lhe competência
para o
julgamento das causas mencionadas no artigo anterior (Artigo 153, § 4º).
Havia
outro dispositivo que
alterou o ADCT, prevendo a possibilidade de se criarem contenciosos
administrativos. Não foi levado adiante na prática.
Antes
e depois da Constituição de
1988 tivemos uma evolução grande até os dias atuais.
É bom lembrar que a Constituição de 1967 se caracterizava por um
binômio:
Estado promotor do desenvolvimento econômico e social e provedor da
segurança
nacional. O governo tinha a Filosofia de desenvolver. Hoje houve uma
mudança de
foco na Constituição atual, com intervenção em algumas áreas apenas.
As
principais modificações que
observamos na Constituição de 1988, principalmente depois da Emenda
Constitucional nº 19/98 foram modificações na própria Administração
Pública,
com a introdução do princípio da eficiência, a flexibilização das
empresas
estatais, a necessidade de haver regras próprias de licitações e
contratos
observados os princípios da Administração Pública direta e indireta, o
aparecimento de agências sociais, que celebram contratos de gestão com
o
Estado, as organizações de sociedade civil de interesse público,
terceirização
da mão de obra, parcerias público-privadas, com retração do Estado,
talvez em
função da indisponibilidade de recursos, já que se vai mais de trilhão
de reais
com pagamento da dívida pública. Criação de fundações de apoio, pessoas
jurídicas de direito privado criadas para fomentar o desenvolvimento
científico
e tecnológico nas universidades, como a Finatec na Universidade de
Brasília.
As
modificações na Administração
Pública começaram com o governo Collor, com medidas moralizadoras. Em
outros
casos, causou desastres. Fusão de Ministérios, demissão em massa de
servidores
públicos, planos econômicos; mas criou o regime jurídico único dos
servidores
públicos.
As
leis editadas desde a
Constituição de 1988 em matéria administrativa foram, principalmente:
1
– O professor citou o nome do
filósofo, cujo primeiro nome provavelmente é “Herbert”, e o segundo
rima com
“Culpert”, e a frase é mais extensa do que isso, mas a ideia essencial
é essa.
2
– Dos apontamentos de aula do
professor.