Direito Administrativo

terça-feira, 22 de março de 2010

Evolução histórica do Direito Administrativo


Hoje vamos terminar a parte introdutória do programa. Vamos falar um pouco sobre a história do Direito Administrativo, entrelaçando com algumas particularidades de nosso sistema administrativo comparando-os com os de outros países que nos influenciaram.

Não se pode falar em história do Direito Administrativo se falar em história do Estado. O Direito Administrativo está ligado à constituição do Estado, e também ao Estado Democrático de Direito em fase posterior à Revolução Francesa. Desde os mais remotos períodos podemos falar na existência do Estado, em uma organização estatal, inicialmente regida pelo jus civile, que depois foi evoluindo até alcançar a Idade Média, em que surgiram períodos monárquicos, do soberano, e paralelamente da Igreja. Isso teve uma consequência com o aparecimento da teoria da irresponsabilidade do Estado, ligada ao fato de que o imperador ou monarca jamais poderia errar.

Se olharmos a Constituição Imperial de 1824, que tem normas curiosíssimas, para comprarmos o que era a Monarquia com a República, podemos ver no art. 99 a figura da irresponsabilidade do imperador:

Art. 99. A Pessoa do Imperador é inviolavel, e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma.

O Estado não era laico, e a Religião Católica era a religião oficial do Estado. Havia coisas curiosas na época da Idade Média, como a proibição da cobrança de juros. Há até um filósofo inglês que dizia que “o financista era um homem mais que maduro, frio, [...] quando finalmente morre acabam no inferno.” 1

Costuma-se dizer que o que foi decisivo para a formação do Estado de Direito foi a obra de Montesquieu, Do Espírito das Leis (1748). Pugnou pela tripartição de poderes, o que foi feito depois da Revolução Francesa, e, especificamente na França, começaram a surgir os sistemas de contencioso administrativo. (É inclusive o que está na sequência de nosso conteúdo programático.) Criaram tribunais administrativos para controle dos atos ilegais ou ilegítimos praticados pelo Estado.

O sistema de contencioso criado na França naquele tempo e que subsiste até hoje era exercido através de um conselho de Estado. No Brasil, durante o império, também tivemos um, mas o conselho tinha função consultiva, e não cogente. Isso, de certa maneira, passou a ser regido por um Direito que depois foi chamado Direito Administrativo. Nesse contexto dos sistemas administrativos no Brasil, durante o período do Império, foi criado um conselho de Estado diferente do francês, com função somente administrativo-consultiva. O sistema francês, na realidade, não foi adotado no Brasil. Lá, existe até hoje o duplo grau de jurisdição administrativa, para apreciação de atos. Aqui, a partir da Constituição de 1891, adotamos um sistema de jurisdição única – controle administrativo pela justiça comum, com fulcro no inciso V do art. 5º da atual Constituição:

XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; [...]

Não significa que se tirou da Administração Pública a possibilidade de ela mesma anular atos que entenda ilegais ou ilegítimos. A própria Administração pode revogar atos inconvenientes ou inoportunos, ou considerados ilegais. Há também a Lei do Processo Administrativo, 9784/99 que regula o processo administrativo na área federal. O Estado de São Paulo também tem uma Lei de Processo Administrativo, sem contar que existem as demais leis que regulam processo administrativos específicos, como as decisões dos Tribunais de Contas. Há lei específica que disciplina suas decisões. Mencione-se, também, o processo administrativo na área previdenciária.

A manutenção da faculdade da Administração Pública rever seus próprios atos é a tutela, que aprendemos recentemente. Os atos eivados de ilegalidade ou ilegitimidade podem ser revistos diretamente pela Administração.

Existem, por outro lado, situações em que, mesmo dentro da realidade brasileira, se exige que a pessoa ingresse necessariamente pela via administrativa para depois ir a juízo, ou situações em que sequer existe possibilidade da apreciação judicial. Que casos são esses em que se exige o esgotamento da via administrativa para que se vá à via judicial? Justiça desportiva, habeas data, e reclamação junto ao Supremo contra ato contrario às Súmulas Vinculantes. No caso da justiça desportiva temos o art. 217, § 1º da Constituição:

Seção III

DO DESPORTO

Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:

I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;

II - a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;

III - o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não- profissional;

IV - a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.

§ 1º - O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.

§ 2º - A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.

§ 3º - O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.

“Justiça desportiva” é o nome que se usa, mas não quer dizer que a instância é judicial; é um órgão de jurisdição administrativa.

A Lei 11417/2004 trata das Súmulas Vinculantes.

Art. 7o  Da decisão judicial ou do ato administrativo que contrariar enunciado de súmula vinculante, negar-lhe vigência ou aplicá-lo indevidamente caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal, sem prejuízo dos recursos ou outros meios admissíveis de impugnação.

§ 1o  Contra omissão ou ato da administração pública, o uso da reclamação só será admitido após esgotamento das vias administrativas. [...]

A terceira situação se refere à impetração de habeas data. A fundamentação é uma decisão do Supremo. O Ministro Celso de Mello fixou o entendimento em que se deve esgotar a via administrativa para ir a juízo. O STJ pensa da mesma maneira:

Súmula 2 – não cabe o habeas data (CF, art. 5., LXXII, letra "a") se não houve recusa de informações por parte da autoridade administrativa.

No processo tributário, nosso Código Tributário Nacional tem uma regra interessante: se houver mandado de segurança para anular dívida, ou ação anulatória de dívida, isso implica automaticamente na desistência do processo administrativo, e o recurso por acaso interposto. A Lei 6830/80 determina essa regra. Art. 38:

Art. 38 - A discussão judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública só é admissível em execução, na forma desta Lei, salvo as hipóteses de mandado de segurança, ação de repetição do indébito ou ação anulatória do ato declarativo da dívida, esta precedida do depósito preparatório do valor do débito, monetariamente corrigido e acrescido dos juros e multa de mora e demais encargos.

Parágrafo Único - A propositura, pelo contribuinte, da ação prevista neste artigo importa em renúncia ao poder de recorrer na esfera administrativa e desistência do recurso acaso interposto.

Há outras situações também em que não existe sequer a possibilidade do recurso ao Poder Judiciário. O aspecto jurisdicional não pode ser intentado. Exemplo: punições disciplinares de militares.

142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

[...]

§ 2º - Não caberá "habeas-corpus" em relação a punições disciplinares militares.

Também não são possíveis de ingresso no Poder Judiciário os chamados atos políticos, como sanção e veto, diretrizes de políticas públicas, e ainda os crimes de responsabilidade do Presidente da República, cujo julgamento compete ao Senado Federal. Não são atos administrativos propriamente ditos.

Julgamentos de contas proferidos pelos tribunais de contas não são recorríveis ao Poder Judiciário em relação ao mérito das decisões, como “julgar regulares as contas, mas com ressalvas”. Se fosse possível, o tribunal de contas não teria função.

Não há, na realidade, no Brasil, de forma absoluta, a observância à regra da jurisdição única. O sistema brasileiro é de jurisdição única observado que não cabe apreciação judicial de alguns atos e, nalguns casos, deve haver esgotamento da via administrativa para que se inicie a apreciação judicial.

Vamos resumir os casos que falamos logo acima.

Admitem iscussão pelo Judiciário, porém somente depois de esgotada a via administrativa:

Não admitem discussão pelo Judiciário de forma alguma: 

Com isso adiantamos o item 2 de nosso programa, até para falar dos sistemas administrativos, cuja origem histórica é um sistema de dupla jurisdição na França, adotado pelo Brasil desde 1891. Na realidade, há uma combinação de aspectos que têm que ser considerados em relação a essa matéria.

Em suma: nosso sistema não é puro de jurisdição única. Mesmo assim, é importante observar que a pessoa deve escolher qual é a via mais conveniente para sanar atos de ilegalidade.

Observação: se houver cerceamento da segurança jurídica ou ampla defesa, contraditório, caberá mandado de segurança contra decisão de mérito do Tribunal de Contas. Vencida na via administrativa, cessa o interesse de ir a juízo, pela desnecessidade.

 

Vamos voltar à história.

O Brasil sofre larga influência do Direito Francês, no qual é comum dizer que passou a existir o ramo do Direito Administrativo com a edição da Lei do 28 PLUVIOSO do ano VII (1800), mês do calendário instalado logo após a revolução. A Lei organizou a Administração Pública Francesa. Dezessete anos depois se criou, na Universidade de Paris, a disciplina de Direito Administrativo. No campo doutrinário, aponta-se como referencial a obra do Barão de Gerando, que foi o primeiro responsável pela regência da disciplina citada na Universidade de Paris, o qual lançou em 1829 A OBRA Institutes Du Droit Français, considerada um mero repositório de leis, mas pioneira no assunto. 2

Aqui no Brasil, o Direito Administrativo surge na época da monarquia. Naquele tempo, a jurisdição administrativa era exercida por um Conselho de Estado, que, como já dissemos, não tinha poder sancionatório, só consultivo. Balizava-se por instituições do direito privado.

A Constituição de 1891 é a primeira em que vemos os crimes de responsabilidade do Presidente da República. O Imperador não era responsável por nada, mas os ministros eram. São normas que conservam a mesma redação da Constituição de 1891, por influência da Constituição Americana.

Além do Direito Francês, outras influências sobre o Direito Administrativo brasileiro vêm do Direito Italiano, Alemão e Norte-Americano. Em sua maior parte é de origem francesa. A teoria dos atos administrativos, por exemplo, que se baseia na teoria dos atos do Direito Civil. Há também a legalidade e os contratos administrativos, também de origem francesa.

As componentes que modelaram o Direito Administrativo brasileiro foram, em resumo:

Até que, ao final do século XIX e início do XX, já tínhamos algumas ideias, obras e legislações que versavam, no todo ou em parte, sobre Direito Administrativo. uma delas foi a Lei 4536/22, editada sob a Constituição de 1891, batizada de Código de contabilidade pública, que passou a ser o diploma de Direito Administrativo e financeiro no Brasil. O nome de “Código” pode ter se dado por influência do Código Civil de 1916. Tinha regras sobre licitação mas, na época, só se falava em “concorrência pública”. As “cláusulas necessárias” da Lei 8.666/93 eram chamadas de “cláusulas essenciais” nesse antigo Código.

Isso foi o primórdio do Direito Administrativo brasileiro.

Nas Constituições de 1934 e 1937 tivemos como característica principal o avanço do Estado na economia brasileira em razão da grande depressão resultante da crise de 1929 nos Estados Unidos. Surgiram movimentos sociais, a necessidade de proteção do trabalhador, a CLT de 1943, as entidades que começam a cuidar das categorias profissionais, os sindicatos, em função da necessidade de atender às reinvindicações dos trabalhadores, a marca do governo de Getulio Vargas.

Com o Estado Novo veio um renovado ânimo de modificar a Administração Pública. Foi criado o Departamento Administrativo, que veio pelo objetivo de mais eficiência na Administração. Esse departamento veio a ser criado depois com o nome de Departamento Administrativo do Serviço Público, o DASP. Teve grande influência na vida pública brasileira, mas não existe mais. A “elite” da área federal que trabalhava na área de orçamento trabalhava no DASP.

Essas Constituições anteriores, tirando a criação do DASP, não tiveram muita repercussão em matéria de assuntos administrativos exceto quanto à regulagem do orçamento. A Constituição de 1946 foi a primeira a estabelecer um título específico sobre os funcionários públicos, e inclusive estabeleceu a responsabilidade jurídica das pessoas jurídicas de direito público e danos causados a terceiros. Está até hoje em nossa legislação brasileira e nossa Constituição atual. É a responsabilidade objetiva do Estado, a responsabilidade extracontratual (ou aquiliana).

Em decorrência dessas disposições sobre funcionários públicos, foi editada a Lei 1711, o primeiro regime jurídico do funcionário público, precedido só pela Consolidação das Leis do Trabalho. Agora se tinha um regramento jurídico único, que vigeu até a edição da Lei 8.112/90.

Na Constituição de 1967 com sua Emenda Constitucional nº 1/69 tivemos a criação de um dispositivo legal com o Decreto-lei 200/67, que provocou ampla reforma administrativa pelo governo federal. Estabeleceu licitações, ampliou as modalidades, criou princípios, foi muito bem redigido, e subsiste parcialmente até os dias atuais.

Na década de 70, a Emenda Constitucional nº 7 de 1977 tentou estabelecer no Brasil o contencioso administrativo, nos moldes franceses, para decisões sobre litígios em relações trabalhistas. Isso não chegou a prosperar, mas estava nos arts. 110 e 111 da Constituição de 1967:

Art. 111. A lei poderá criar contencioso administrativo e atribuir-lhe competência para o julgamento das causas mencionadas no artigo anterior (Artigo 153, § 4º).

Havia outro dispositivo que alterou o ADCT, prevendo a possibilidade de se criarem contenciosos administrativos. Não foi levado adiante na prática.

Antes e depois da Constituição de 1988 tivemos uma evolução grande até os dias atuais. É bom lembrar que a Constituição de 1967 se caracterizava por um binômio: Estado promotor do desenvolvimento econômico e social e provedor da segurança nacional. O governo tinha a Filosofia de desenvolver. Hoje houve uma mudança de foco na Constituição atual, com intervenção em algumas áreas apenas.

As principais modificações que observamos na Constituição de 1988, principalmente depois da Emenda Constitucional nº 19/98 foram modificações na própria Administração Pública, com a introdução do princípio da eficiência, a flexibilização das empresas estatais, a necessidade de haver regras próprias de licitações e contratos observados os princípios da Administração Pública direta e indireta, o aparecimento de agências sociais, que celebram contratos de gestão com o Estado, as organizações de sociedade civil de interesse público, terceirização da mão de obra, parcerias público-privadas, com retração do Estado, talvez em função da indisponibilidade de recursos, já que se vai mais de trilhão de reais com pagamento da dívida pública. Criação de fundações de apoio, pessoas jurídicas de direito privado criadas para fomentar o desenvolvimento científico e tecnológico nas universidades, como a Finatec na Universidade de Brasília.

As modificações na Administração Pública começaram com o governo Collor, com medidas moralizadoras. Em outros casos, causou desastres. Fusão de Ministérios, demissão em massa de servidores públicos, planos econômicos; mas criou o regime jurídico único dos servidores públicos.

As leis editadas desde a Constituição de 1988 em matéria administrativa foram, principalmente:


1 – O professor citou o nome do filósofo, cujo primeiro nome provavelmente é “Herbert”, e o segundo rima com “Culpert”, e a frase é mais extensa do que isso, mas a ideia essencial é essa.

2 – Dos apontamentos de aula do professor.