Começamos hoje a falar sobre
filiação. A filiação diz
respeito às relações que se criam entre um ser humano e as pessoas que
o
geraram. No conceito clássico, tínhamos que essa relação entre uma
pessoa e
aqueles que o geraram era o parentesco biológico, consanguíneo, de
primeiro
grau em linha reta. Tínhamos pais e filhos. Mas é evidente que, com a
evolução
de nosso Direito de Família, esse conceito já não cabe para definir
filiação.
Primeiro porque surgiu a filiação civil, isto é, aquela que surge a
partir da
adoção, formando o parentesco civil entre o adotante e o adotado.
Adotado
assume a posição de absoluta igualdade com os filhos biológicos do
adotante.
Depois porque surgiu a paternidade socioafetiva, e, a partir da
Constituição de
1988, o afeto passou a presidir as relações familiares.
Nesse momento, alguns doutrinadores
pretendem aprofundar
esse tema. Além da paternidade socioafetiva ou da filiação
socioafetiva, a
pergunta é: existe socioafetividade entre irmãos? Se são, teriam os
mesmos
direitos? Não poderiam ser discriminados? Ainda não chegamos nesse
ponto. Ainda
há divergências doutrinárias. De qualquer forma temos socioafetividade.
De qualquer modo temos o caminho dado
pela Constituição de
1988 em que o afeto se torna um elemento determinante para a relação
familiar.
No passado tínhamos que a família se formava somente através do
casamento. Essa
era a família legítima. E a união
sem
casamento constitua uma família ilegítima.
Então o casamento era o pressuposto fático da formação de uma família.
Essa
família, dentro do casamento, fazia pressupor que teríamos filhos
legítimos,
bem como filhos ilegítimos na união fora do casamento. Havia, portanto,
uma
discriminação entre filhos; o ilegítimo não podia ser reconhecido pelo
pai. Só
poderia ser reconhecido se o pai fosse solteiro. A ilegitimidade
constava da
certidão de nascimento. Também não poderia suceder o pai, e era
discriminado
nas escolas. As escolas não aceitavam, entre seus alunos, filhos
ilegítimos.
Essas exceções foram caindo uma a uma; por exemplo, a lei do divórcio
de 1977
admitiu o reconhecimento de filho ilegítimo desde que esse
reconhecimento se
fizesse em testamento cerrado. Isto é, morto o marido, deixado o
testamento
fechado, reuniu-se a família, abriu-se o testamento e ali estava o
reconhecimento do filho ilegítimo. Aí vemos as dificuldades.
A Constituição de 88, mais uma vez,
igualou todos os filhos.
Não pode mais haver discriminação entre eles. A Constituição
estabeleceu a família
através da união estável: a família sem casamento não era mais
ilegítima; mas
sim uma entidade familiar protegida pelo Estado. Os filhos já não
poderiam mais
ser considerados ilegítimos ou legítimos, e todos passaram a ter
igualdade. E
mais ainda: não pode haver discriminação nem mesmo entre filhos
incestuosos. O
pai tem direito a reconhecer o filho incestuoso, e o filho tem direito
a ser
reconhecido por um pai incestuoso. Vejam a relação que temos: um
casamento, marido
e mulher, dois filhos daí nascidos, o pai tem uma relação afetiva com
outra
mulher, e nasce outro filho. Esses filhos não podem mais ser
discriminados. São
iguais em seus direitos e deveres com relação aos seus pais. Pode
acontecer
também, e essa é uma situação mais dramática, de o casal ter uma filha,
o pai
manter relações sexuais com ela, e dessa relação nasce uma criança.
Reparem que
surge a questão de ser a criança filha ou irmã dessa mulher, e de ser
filha ou
neta desse homem. Aqui vêm as divergências de correntes. Alguns acham
que é
irmã, portanto não pode haver discriminação entre elas, e outros acham
que é
filha, daí não poderia ser igualada aos outros filhos, porque estaria
embaixo
na árvore genealógica. Essa teoria de que é filha e mãe tem como
fundamento a
maior proximidade consanguínea de parentesco. Filho é parente
consanguíneo em
primeiro grau. Irmão é parente consanguíneo colateral em segundo grau.
Por isso
essa proximidade colocaria o filho espúrio como filho, e não como
irmão. Mas é
uma corrente doutrinária.
De qualquer maneira, tínhamos então
que, como não se faz
mais discriminação entre filho legítimo e ilegítimo, a nova
nomenclatura a
partir da Constituição de 1988 é filho
havido no casamento, substituindo o filho legítimo, e filho havido fora do casamento, para
qualquer outra circunstância. A
doutrina também diverge aqui.¹ O que é importante é que, no casamento
ou fora
dele, a igualdade deve existir entre filhos. Aquilo tudo ainda é
doutrina. Os
filhos não podem ser discriminados.
A diferença que vamos encontrar entre
filhos havidos no
casamento e filhos havidos fora do casamento é que os últimos precisam
ser
reconhecidos. Deve haver o ato de reconhecimento. Enquanto que os
filhos
havidos no casamento são presumidos. Presumem-se filhos do marido
aqueles que
nasceram na constância do casamento.
Essa presunção, e o professor chama
atenção, surge como se
fosse um jogo de presunções. Ela
surge do modelo cristão de casamento, mais uma vez. Monogamia, um só
homem, uma
só mulher. Se temos um só homem e uma só mulher, as relações sexuais
devem ser praticadas
somente entre esse homem e essa mulher. As relações fora desse modelo
levam ao
adultério, à quebra do dever de fidelidade. “Um homem, uma mulher”
pressupõe
fidelidade, do homem à esposa, da mulher ao marido. Ter relações
sexuais fora
do casamento significa adultério. Eis o jogo de presunções: casamento é
monogâmico. Logo, um só homem, uma só mulher. Logo, o homem e a mulher
são
fiéis entre si, e não têm relações sexuais com outras pessoas. Portanto
criança
havida no casamento presume-se filha do marido.
Esse é um jogo lógico de presunções.
Temos a relação
monogâmica, presume-se fidelidade, logo a criança que nasce é
presumidamente
filha do marido. E é por isso que nós conhecemos aquele ditado: “a
maternidade
é uma certeza; a paternidade é uma presunção.” Sabemos quem é a mãe, e
presumimos quem é o pai. Isso dentro do casamento.
Dentro desse jogo de presunções temos
o art. 1597:
Art. 1597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. |
Voltemos à presunção, que é o início
do tema da filiação no
casamento. Vejamos os incisos do artigo. Presumem-se concebidos na
constância
do casamento os filhos...
I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; |
Convivência
conjugal,
e não casamento em si. Cuidado. É a convivência entre marido e mulher.
O marido
se casa por procuração e somente depois de um mês começa a conviver com
a
esposa. Contam-se 180 dias a partir do início da convivência, mesmo que
formalmente casados há mais tempo. Vimos essa figura quando tratamos da
confusão de sangue, dos impedimentos impedientes. Lembrem-se dos prazos
de 180
dias, 9 meses e 10 meses. Nos 180 dias, a criança geneticamente já tem
condições de sobreviver. O parto é prematuro mas ela tem condições de
sobrevivência. Nos 9 meses, ou 270 dias aproximadamente, a criança já
está
plenamente desenvolvida e pronta para nascer.
Nessa linha de raciocínio, o
nascimento da criança remete-nos
às teorias sobre a personalidade jurídica do nascituro. Em que momento
o ser
humano adquire personalidade jurídica? Temos três correntes que
discutem esse
tema. A corrente concepcionista, a natalista, e a da personalidade
condicionada.
Temos um homem e uma mulher grávida.
Em que momento esse ser
humano no ventre da mulher adquire personalidade jurídica? De acordo
com a
corrente concepcionista, ele adquire personalidade jurídica a partir da
concepção; isto é, é um ser, a partir da concepção, capaz de direitos,
mas não
deveres.
A corrente natalista diz que o ser
humano só terá
personalidade jurídica depois do nascimento, e antes é considerado mero
feto.
Faz parte do organismo materno, apesar de ter vida própria.
A corrente da personalidade
condicionada diz que deve nascer
com vida para assumir direitos e obrigações, mas, caso nasça, seus
direitos
retroagem ao momento da concepção. A corrente da personalidade
condicionada
reúne as duas outras isto é, art. 2º do Código Civil:
Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. |
Muito bem. Essas três posições tem
efeitos práticos sim. Se
temos mais dois filhos, o pai falece, a mãe está grávida, abre-se o
processo de
sucessão, quem serão os herdeiros? Pela corrente concepcionista, o
nascituro é
herdeiro desde o momento da morte do pai. Pela natalista, o nascituro
será
herdeiro somente se tiver nascido no momento do falecimento do pai.
Neste caso
os únicos herdeiros serão os filhos; o nascituro não entraria. E a
corrente da
personalidade condicionada afirma que morre o pai, o inventário
esperará o
nascimento dessa criança. Se nascer com vida, retroage-se até o momento
da
concepção os direitos do nascituro. Isso significa que essa criança, se
nascer
com vida e já fora concebida quando da morte do pai, ela será herdeira.
Outra consequência é a seguinte: na
corrente concepcionista,
se o nascituro nasce morto, mas houve momento em que ele estava vivo e
ativo,
isso significa que, mesmo nascendo morto, como era detentor de direito
sucessório enquanto na barriga, a mãe herdaria seus direitos. Pela
corrente
natalista, o nascituro não teria assumido nenhum direito, então não
importariam
efeitos sucessórios em benefício da mãe. Na corrente da personalidade
condicionada ninguém herdaria, pois não foi satisfeita a condição de
nascer com
vida para a retroação dos direitos.
Esse tema está sendo discutido no
momento dos alimentos
gravídicos. Quem é o titular dos alimentos gravídicos? A mãe. Mas
existem
divergências. Ontem mesmo o professor estava numa banca e a posição
dele era de
que a mãe era titular. É a mãe quem tem direito a pedir. O aluno disse
que
seriam os dois os titulares: mãe e nascituro. E um dos membros da
banca, um professor
de nome Einstein Taquary, com quem já tivemos o prazer de ter aula de
Direito
Processual Civil III – Execução e Cautelar, disse que sua posição é a
concepcionista. Tivemos dentro de uma única banca de monografia as três
posições. A maioria ainda está pelo direito da mãe, tanto que se admite
o
pedido de indenização contra ela se ficar comprovado que a mãe agiu de
má-fé
quando pediu alimentos acusando de paternidade uma pessoa que não era
pai do
filho que estava para nascer. Se fosse a criança, não se poderia
acioná-la.
De qualquer maneira, esse momento da
concepção, na
personalidade condicionada, nos leva, então, à presunção: “presumem-se
concebidos na constância do casamento”. É uma derivação da teoria da
personalidade condicionada. Nascidos 180 dias pelo menos depois da
convivência
conjugal.
Inciso II:
II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; |
A ideia é parecida, mas, se temos um
divórcio e nos 300 dias
posteriores nasce uma criança, presumimos também concebido na
constância do
casamento.
Essa regra dos 300 dias remete-nos ao
art. 1598:
Art. 1598. Salvo prova em contrário, se, antes de
decorrido o prazo previsto no inciso II do art. 1523, a mulher contrair
novas núpcias e lhe nascer algum filho, este se presume do primeiro
marido, se nascido dentro dos trezentos dias a contar da data do
falecimento deste e, do segundo, se o nascimento ocorrer após esse
período e já decorrido o prazo a que se refere o inciso I do art. 1597. Art. 1523. Não devem casar: [...] II - a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal; [...] |
Continuando o art. 1597:
Art. 1597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: [...] III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; |
Continuando:
Art. 1597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: [...] IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; |
A questão de “o que fazer com os
embriões excedentários” é
uma questão que movimenta a discussão em torno das células-tronco
embrionárias.
Movimenta toda a sociedade. Há uma corrente forte que diz que embrião
excedentário é ser humano, e não pode ser morto. São congelados, e
ficam ali
por algum tempo. Podem ficar dois anos de acordo com a legislação
brasileira, e
sete de acordo com a inglesa. Não há uma uniformização na fixação do
tempo do
congelamento. O certo é que vamos, a cada inseminação, juntar mais
três,
quatro, dez embriões excedentários. O que faz com esse “povo”? Há
teorias
visionárias. Alguns mandam pôr fogo. Outra ala da Igreja sugere a
adoção dos
embriões! Cada vez que se toca nesse assunto é como aquela urtigueira
que dá no
corpo inteiro: mexeu nela, esparrama.
Dizem os cientistas, e essa é a
posição da legislação
francesa, acatando o pensamento científico, que os embriões só adquirem
vida
depois do 14º dia de existência. Depois da fecundação, antes dos 14
dias, os
embriões não são nada segundo eles. Depois desses 14 dias começam a
surgir as
primeiras células nervosas. E aí teríamos vida. E, por isso, até os 14
dias
pode-se fazer o que quiser, inclusive aborto, e o Estado Francês não
tomará
conhecimento.
Inciso V:
Art. 1597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: [...] V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. |
Reparem: na homóloga presume-se, na
presume-se; na
heteróloga deve haver prévia autorização do marido. Na homóloga, quando
se faz
a fecundação de um óvulo, usa-se o material genético do marido e da
esposa; na
heteróloga usa-se da esposa e de um terceiro, desde que autorizado pelo
marido.
Ou ela teve autorização do marido, ou não teve. Se ela teve autorização
do
marido, vimos pelo Código que o filho gerado a partir dessa inseminação
artificial heteróloga será considerado como havido no casamento. Não
importa quem
seja o pai biológico. E se ela não tem autorização do marido, o que ela
praticou com relação ao casamento foi uma figurinha jurídica chamada injúria grave. O casamento pode até ser
desfeito por isso. art. 1566, inciso V.
Art. 1566. São deveres de ambos os cônjuges: I - fidelidade recíproca; II - vida em comum, no domicílio conjugal; III - mútua assistência; IV - sustento, guarda e educação dos filhos; V - respeito e consideração mútuos. |
Para terminar a aula, há discussão
ainda quanto ao filho
havido ou não no casamento. Temos o seguinte: o marido pode não
acreditar que
aquela criança havida da esposa seja sua. Um dia a mulher aparece
grávida, e
nasce um menininho. O pai desconfia. Esse pai tem direito a propor uma
ação
contra a esposa que se chama ação
negatória de paternidade. Muito bem: tem essa ação
imprescritível. Pode ser
proposta a qualquer tempo.
Não poderá fazer isso se assistiu o
parto ou se fez o
registro da criança, o que acontece em 90% das vezes. Percebeu, sendo
ocidental, que o menino tem olhos puxados, por exemplo.
Art. 1599:
Art. 1599. A prova da impotência do cônjuge para gerar, à época da concepção, ilide a presunção da paternidade. |
Ilidir é afastar. Se provar que não
podia gerar filhos à
época da concepção, ele não será considerado pai.
Art. 1600:
Art. 1600. Não basta o adultério da mulher, ainda que confessado, para ilidir a presunção legal da paternidade |
Mulher confessa ao marido que concebeu o filho numa relação fora do casamento. Não bastará isso para tirar a criança do ambiente da família? Não, pois o marido pode aceitar. Registra a criança, e cria.